ensaios O
triângulo amoroso, ontem e hoje por Fabio
Diaz Camarneiro O entrevistador de TV pergunta
o que mais assusta o escritor Charles Saint-Denis na sociedade francesa. A resposta:
o puritanismo. A cena está em Uma Garota Dividida em Dois, de Claude Chabrol
– mas poderia estar também em A Última Amante, de Catherine Breillat. Pois,
apesar de todas as suas diferenças e dos estilos distintos dos cineastas, os filmes
parecem reflexos um do outro. Dois triângulos amorosos: em Breillat, um jovem
aristocrata francês se divide entre o amor de uma cortesã e o prometido casamento
com uma virginal donzela nas primeiras décadas do século XIX; em Chabrol, uma
apresentadora de TV se divide entre um homem mais velho, o escritor, e um playboy
mimado e desequilibrado.
Chabrol
parece fazer troça com os desgastados papéis do melodrama, o “velho depravado”
e o “jovem vingador”, ambos sempre no percalço da mocinha. Aqui, a depravação
possui um certo código de conduta (nem sempre louvável, mas mesmo assim um código
de conduta). Trata-se de uma sociedade à parte, organizada, da qual fazem parte
pessoas cultas e, acima de tudo, discretas. Por outro lado, os ímpetos de “honra”
e “justiça” do playboy Paul Gaudens parecem apenas um jogo para impressionar,
um ato de arrogância e auto-afirmação. Paul exibirá seus valores feridos da mesma
maneira que pede um vinho caro à mesa do restaurante. Em
Breillat, o pivô do triângulo é Ryno de Marigny, jovem aristocrata que se envolve
com a cortesã interpretada por Asia Argento. Ela é a sensualidade encarnada. Diferentemente
de Chabrol, Breillat faz um filme físico, em que importa o corpo dos personagens.
Vellini, a amante, possui uma beleza latina, longe da perfeição clássica: os dentes
são tortos, as contorções de seu corpo durante o sexo têm algo de animal. Já a
futura esposa, Hermangarde, quando se mostra nua, revela a aparência de uma pintura
pré-rafaelita: a pele alva, o rosto quase infantil, o corpo de curvas delicadas.
A amante e a esposa, sensualidade versus idealização. Chabrol
prescinde de qualquer idealização. O escritor e o playboy são, cada qual à sua
maneira, pessoas falhas, decepcionantes até. Em sua ingenuidade, a apresentadora
de TV Gabrielle Deneige acredita que encontrará o amor ideal e, mais tarde, acreditará
que “dizer a verdade” pode ser uma boa solução para os problemas. Gabrielle é
uma versão sem glamour de Hermangarde, uma personagem de contos de fada
fora do seu contexto (em seu texto sobre
o filme, Eduardo Valente já apontou para seu caráter de contos de fadas).
A maior ingenuidade de Gabrielle, porém, talvez seja se deixar levar pela aristocracia
francesa. A ironia de Chabrol ao lidar com os aristocratas é completa. A fleuma
da matriarca Gaudens, os indícios de ninfomania da irmã mais jovem, o jeito desmiolado
de Paul... Toda a família se presta à caricatura, e Chabrol se empenha em ressaltar
essas características. É uma aristocracia fria, interesseira e, em último caso,
insana. Insano
também é o amor de Ryno por sua amante, Vellini. Uma relação que caminha do ódio
ao amor, que possui toques de exagero, como quando Vellini bebe o sangue do ferimento
de seu amado. Nas mãos de outro diretor, talvez a cena resultasse cômica, mas
Breillat mantém um espírito sempre elevado, com cada plano parecendo anunciar
a tragédia. Da paisagem da casa para onde os noivos se mudam, com as ondas do
mar batendo contra a encosta, até o exagero kitsch do apartamento da cortesã,
passando pela interpretação de Asia Argento, tudo parece respirar a atmosfera
do romantismo, onde amor e morte se tocam. A
tragédia, aqui, é apenas a carne, o desejo inescapável que Ryno sente por Vellini.
Já em Chabrol, a tragédia se insinua aos poucos e surge num momento inesperado.
Mas, como um dos motes do filme é a aristocracia e as relações de classe, pior
que a tragédia é o escândalo. O problema passa a ser minimizar a repercussão do
ocorrido. Os dois filmes
possuem também um quarto personagem, que funciona como testemunha e cúmplice das
histórias. Em A Última Amante, a Marquesa de Flers, avó de Hermangarde,
é a confidente de Ryno sobre sua relação com Vellini. Ela ouve com prazer a narração
do rapaz, de como a relação começou, de como a tragédia se abateu sobre eles.
A velha marquesa pede detalhes íntimos, e diz fazer parte de outro tempo, a época
de Laclos (o autor de As Ligações Perigosas). Com isso, ela quer dizer
que não pertence ao século XIX, um tempo que viu a consolidação da classe média
burguesa e seu profundo conservadorismo moral. Ela entende os desvios de caráter,
as paixões da carne, os ímpetos da juventude. Talvez ela mesma tenha sido uma
libertina. Em Chabrol,
a personagem-confidente é Capucine, belíssima mulher, misto de amante e parceira
de trabalho do escritor Charles Denis, que a chama de “uma de suas duas mulheres”
(a outra seria sua esposa). Denis almoça com suas duas mulheres e se diz seguro
quando ambas estão em casa. Sua esposa, segundo ele, é uma “santa”. Uma frase
que abre espaço para especulação: será que ela conhece e aceita os desvios sexuais
do marido? Ou será que ela fica de fora desse mundo, protegida entre as paredes
do casamento burguês? Se Ryno fosse Saint-Denis, todos os seus problemas estariam
terminados. O
tema, tanto em Chabrol como em Breillat é a luta entre os desejos da carne e as
imposições sociais. Mas enquanto Chabrol prefere explorar os meandros das imposições
sociais, Breillat está atenta para as questões da carne. A diretora acaba reutilizando
dois velhos estereótipos femininos: a moça pura e virgem (a esposa ideal) e a
mulher passional, amante insaciável, meio demoníaca. Em outras palavras, um ideal
cristão. Se Ryno encontrasse sua paz com Hermangarde, tudo estaria salvo... Já
Gabrielle não tem uma escolha tão segura. Entre Charles e Paul, qual será menos
pior? O primeiro, que apesar de todos os predicados, não a ama? Ou o outro, que
apesar de todos os defeitos, a ama? Além disso, há outro problema: a sociedade,
que jamais poderá compreender o que aconteceu de “proibido” entre ela e o escritor.
Os meandros da paixão devem permanecer privados porque só fazem sentido para os
amantes. Não se trata de pudor, mas de respeito, algo que os meios de comunicação
de massa parecem não conhecer. Quando os segredos de alcova se tornam públicos,
cria-se uma explicação “lógica” para acontecimentos que passam ao largo dessa
palavra. Podemos pensar
que, se a depravação, no século XIX, tinha algo a ver com o corpo e o sexo, hoje
em dia tem mais a ver com canais de TV, tribunais e a opinião pública. A palavra
“devassar” não passou a ser usada normalmente no jornalismo como sinônimo de “investigar
a fundo”? Bem sabe disso o bon vivant Charles Saint-Denis, aquele que aproveita
a vida ao máximo e teme o puritanismo acima de todas as coisas. Talvez devesse
temer ainda mais as câmeras de TV e os telespectadores. O que as imposições sociais
foram para o século XIX, estes são para o século XXI. Agosto
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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