Transeunte,
de Eryk Rocha (Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Uma
solidão compartilhada
Inevitavelmente, Transeunte vai levantar o cadáver
insepulcro da discussão "ficção X documentário".
A questão aqui, porém, é menos de tensão
de registros, e mais de estilo: a câmera solta passeia pelos
ambientes sem decupagem definida, e se ocupa apenas de dar conta
de Expedito (Fernando Bezerra), um senhor de idade avançada
que, sozinho no mundo em estado de luto, cumpre as tarefas diárias
acompanhado de seu radinho de pilha e seus fones de ouvido. O
filme começa com um passeio ao lado do cemitério.
A câmera corre paralelamente às grades que isolam
o local, e as breves interrupções das barras de
metal se aproximam do flickering de um rolo de película
rodando. Ao fundo, o barulho das hélices de um helicóptero
faz pensar no ruído do motor de um projetor de cinema.
Expedito sai do mundo dos mortos para adentrar o filme, sensação
que permanece pela impressão de invisibilidade da personagem
ao longo da primeira metade de projeção. Se essa
breve sinopse poderia se configurar como anúncio de uma
odisséia piedosa e, por isso mesmo, pessimista pela vida
de um pobre diabo, aos poucos (e tudo neste filme acontece aos
poucos) Transeunte se revela algo bastante diferente
disso. Antes de mais nada por o filme ser, à sua própria
maneira, uma adaptação (talvez inconsciente) de
Ulisses, de James Joyce: a cidade se desdobra em uma
polifonia caótica de vozes, ruídos e rostos, com
uma montagem que organiza - por rimas, ritmos ou significado -
o caos do próprio mundo, sem aniquilar sua irregularidade.
Mas ao contrário de Harold Bloom, pária passivo
por natureza, Expedito é o editor ativo de sua própria
vida. É ele quem decide quando interromper uma conversa
entreouvida recolocando os fones no ouvido que promove a montagem
do cotidiano, criando associações significativas
mesmo quando aleatórias. Uma canção dá
continuidade a uma frase, como um plano é montado com um
contraplano. Expedito é solitário, mas não
sozinho; sua solidão é ativa, seu olhar é
soberano e suas decisões determinam seus próprios
sentidos. Ele é vivo como poucos personagens do cinema
brasileiro contemporâneo o são.
Essa
solidão, porém, é compartilhada. Se os fones
de ouvido se tornaram um símbolo fácil de recolhimento
e alienação, esse sentido é invertido radicalmente
em uma única cena do filme: após andar por toda
a cidade ouvindo músicas pelo rádio, Expedito pára
em um bar onde um conjunto de seresta se apresenta. Naquele momento,
o gesto de colocar os fones de ouvido (agora desnecessários)
é absolutamente re-significado: vemos as pessoas que cantam
e tocam as canções. Escutar cada música,
cada locutor, cada ouvinte que liga para compartilhar causos e
experiências com seu programa de rádio favorito é,
para Expedito, travar uma relação. A edição
de sua própria vida depende do acaso, das falas do locutor
de rádio, das músicas que o programador decidiu
tocar. Depende, principalmente, que haja alguém do outro
lado. Toda memória é questão de convivência.
Transeunte se firma, assim, como o
trajeto do virtual para o concreto; a percepção de
que, assim como as canções só existem se cantadas
por alguém, Expedito só se torna personagem quando
observado pelo filme - como os vários refletores do estádio
de futebol se tornam uma única faixa de luz com um simples
desfoque de câmera. Eryk Rocha cria um filme que, em sua imperfeição,
consegue se reconfigurar continuamente ao longo da projeção,
demonstrando candura onde parecia haver dureza, vontade de vida
no que já parecia morto, e desejo de ficção
quando todos os índices superficiais parecem apontar o contrário.
Como em Contagem, curta de Gabriel Martins e Maurílio
Martins, o cinema é a busca do universal no particular, mas
também o seu reverso: Expedito sai da massa difusa de velhinhos
solitários do Centro do Rio de Janeiro e se torna protagonista
de um filme; mas seu protagonismo só faz sentido se o filme
lhe devolver à universalidade, lhe fizer reconhecível,
lhe fizer estampa de seu próprio anonimato. Não à
toa, as grades do cemitério serão retomadas bem mais
à frente no filme, com o mesmo flickering dos primeiros
planos; mas dessa vez, são as grades de um parque, com árvores
que resplandecem vivas na composição. Expedito sai
do mundo dos mortos e, na cintilação dos fotogramas
a correr frente à luz do projetor, ganha vida, se torna "um",
para então - montador de sua própria vida - seguir,
com o último plano, caminhando para dentro do filme, permanecendo
indivíduo além da inevitabilidade dos créditos
finais.
Novembro de 2010
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