Transamérica (Transamerica),
de Duncan Tucker (EUA, 2005)
por Marcus Mello
Transgêneros
Nas diversas coletâneas reunindo parte de sua
extensa produção para a revista New Yorker, a crítica Pauline
Kael costumava selecionar textos nos quais se restringia a elogiar
o trabalho de determinado ator ou atriz em algum filme menor.
Sempre com o mesmo título (“Sobre John Candy em Splash”,
“Sobre Meryl Streep em Lembranças de Hollywood”, “Sobre
Nicolas Cage em O Beijo do Vampiro”), estes textos curtos
são saborosas reflexões sobre a arte da interpretação no contexto
de uma cinematografia pródiga em exibir grandes atores dando o
seu sangue em filmes medíocres (Meryl Streep e sua carreira marcada
por escolhas equivocadas constituindo-se o melhor exemplo disso).
A lembrança desses textos de Kael foi inevitável assim que comecei
a pensar em escrever algo sobre Transamérica, afinal todos
os comentários sobre o longa de estréia de Tucker têm sido direcionados
para a espantosa caracterização da atriz Felicity Huffman como
o transexual Bree. Parece ser consenso o fato de que o valor de
Transamérica se resume ao trabalho virtuosístico de Huffman
(mais conhecida como uma das Desperate Housewives do seriado
de TV). Até aí, nenhum problema, só que toda a atenção depositada
em Huffman de certa forma esconde várias das qualidades demonstradas
por Tucker em seu filme de estréia.
O primeiro – e mais óbvio – feito do diretor é
justamente extrair de sua protagonista esta atuação que tanto
tem dado o que falar. Quem faz cinema sabe muito bem o quanto
é difícil montar um elenco e fazê-lo render a contento. A simples
aposta de Tucker no nome da atriz (que vinha de várias pontas
em telefilmes e seriados e apenas começava a despontar em Desperate
Housewives), e a decisão de não escolher um ator para o papel,
já deveriam valer alguns pontos ao diretor. Mas também é importante
lembrar que Transamérica é o primeiro filme de um realizador
pouco experiente. Antes, Tucker havia feito apenas um curta em
35mm, The Mountain King (1999), que conheceu certo sucesso
no circuito internacional de festivais (participou de mais de
30, sendo um deles o Festival de Curtas de São Paulo, em 2000).
Também ambientado no universo gay, o curta mostrava o encontro
de um homem com um garoto de programa, em uma praia, e já refletia
a preocupação do diretor com um dos temas centrais de Transamérica:
a tensão provocada pela fragilidade dos papéis sexuais assumidos
pelos indivíduos.
A
idéia do filme de estrada gay não é nova, já tendo até
seu pequeno “clássico”, Priscilla, a Rainha do Deserto
(1994), do australiano Stephen Elliot. No entanto, a viagem através
da América, que vai provocar a transformação desse transexual
prestes a fazer sua tão sonhada cirurgia de mudança de sexo, e
do filho adolescente que ele não sabia existir, apesar de conter
vários clichês típicos do gênero, ganha força e se diferencia
pela habilidade e sutileza com que o diretor vai apresentando
uma relação que se encaminha, a passos largos, para o incesto.
Perplexa e indecisa diante de Toby (Kevin Zegers), o jovem (e
belo) garoto de programa que descobre ser seu filho, Bree, além
de ter de lidar com a gradual tensão sexual insinuada entre os
dois, claramente não sabe como se posicionar diante dele: como
pai? como mãe? A cena em que Toby tira a roupa e se oferece a
Bree é um momento perturbador, que expõe sentimentos cuja ambigüidade
nos remete aos temas ancestrais da tragédia grega. Ali fica exposta
tanto a fragilidade dos papéis familiares quanto dos papéis sexuais,
flagrados enquanto meras construções culturais, constantemente
ameaçadas pela complexidade da condição humana e seus sentimentos
muitas vezes contraditórios e inomináveis.
Um espectador mais exigente poderia, não sem razão,
pedir uma dose um pouco maior de inventividade na encenação. Mas
também não é todo dia que vemos os nebulosos laços de família
sendo desenredados com tamanha disposição por um diretor iniciante,
com a ajuda de um elenco em grande inspiração – de Huffman todo
mundo já falou, mas não ignoremos o quanto ela está bem amparada
por Zegers e Fionnula Flanagan, irreconhecível como a mãe que
ama o filho, mas é incapaz de respeitá-lo. Some-se a isso a idéia
bastante feliz de contar uma história sobre um transexual ora
no registro da comédia, ora no registro do melodrama, mimetizando
no próprio andamento do filme o conflito do(a) personagem central
– perfeitamente traduzido no ótimo cartaz de divulgação, que traz
uma foto de Bree de costas, entre as portas de um banheiro masculino
e de um banheiro feminino.
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