Trair e Coçar É Só Começar,
de Moacyr Góes (Brasil, 2006)
por Cléber Eduardo

Retrocesso estético

Logo nos primeiros minutos, Trair e Coçar é Só Começar já se esgota. Adaptação da peça de enorme sucesso de Marcos Caruso e Jandira Ferrari, a comédia produzida por Diler Trindade, depois de apresentar suas cartas, apenas repete o mesmo jogo: planos médios e planos próximos, intercalados sem medo da tosquidão, aprisionam a imagem em uma “cela” – como se a mise-en-scène estivesse algemada na solitária. Uma sucessão de acontecimentos e imprevistos, à moda dos vaudevilles, telegrafa seus próximos passos, explicitando o artifício de compartimentar o desfecho da narrativa em um espaço para onde tudo converge (no caso, um apartamento – como em A Partilha, de Daniel Filho, e Sexo, Amor e Traição, de Jorge Fernando). Tudo está dado logo de cara, e será repetido ao longo do filme. Mais do que nenhuma preocupação com a linguagem na qual se trabalha, o filme demonstra não ter nenhum desejo por ela – independentemente dela estar a serviço de um material empenhado em atrair centenas, milhares ou milhões de espectadores.

Para dar alguma vida a essa ausência de estilo (ou a esse estilo 3x4) com cenário de SBT, a montagem instala um ritmo ligeiro, optando por resolver seqüências simples com uma variedade de planos, com o corte sempre pautado pelo texto, sempre endereçado ao rosto do ator. Em nome de um cinema supostamente popular, joga-se qualquer noção de rigor na lixeira e, para plantar bananeira para o público, recorre-se a um humor regido por caretas, alterações de vozes e de sotaques, diálogos quase berrados, setas indicativas sobre o caráter cômico das situações, com os atores levantando cartazes para nos lembrar do registro de humor em cena. Em vez da graça produzida pelas situações, por uma performance interpretativa ou por um achado verbal, temos somente a força constrangedora em direção à graça, que parece estar sendo extraída esperneando das situações.

Com todo o respeito, diante de uma sucessão de imagens como as apresentadas, é preciso salientar que, em Trair e Coçar, o joguinho é sem vergonha sim. Em nome de manter o sucesso da peça no filme-franquia, comete-se um atentado contra o cinema, repetindo, de certa maneira, a operação recorta e cola do Irma Vap, de Carla Camurati, com resultado igualmente prodigioso em nos fazer coçar os olhos, afetados pela infecção estética – que tem se mostrado contagiosa. Essa deixa de ser uma peculiaridade singular de Trair e Coçar para se tornar um sintoma das comédias brasileiras nos últimos anos. A quantidade crescente de matéria-prima teatral nas experiências com humor tem acenado para um retrocesso estético, com a superfície da tela desperdiçada pela ausência de imaginação cênica e pela falta de vergonha no tratamento do cinema. Nada contra derivados de teatro, mas eles reivindicam uma adaptação do material, não apenas reprodução. O cinema parece não ter saído da chanchada dos anos 40 nessas imagens teleteatralizadas. Diante da dimensão da tela, colocar a câmera nos lugares onde ela é colocada, enquadrando da cintura ou do pescoço para cinema, tem ares de terrorismo reacionário contra a linguagem. Seria mais ou menos como escrever um livro com apenas um quarto das letras do alfabeto. 

Nessa típica piada da burguesia cultural sobre uma tipologia popular, voltada para os patrões e para a classe média rir do patético de seus serviçais, temos o mesmo olhar categorizante de Domésticas, de Fernando Meirelles e Nando Olival, mas não o poder afiado de uma personagem como a de A Diarista. Pelo contrário. A doméstica Olímpia, defendida com toda sorte de exageros estereotipantes por Adriana Esteves (substituta de Denise Fraga, a força motriz da peça), não é uma personagem, mas uma categoria social, trabalhista, que, na relação com os patrões, incorpora a condição de prestadora de serviços – ideologicamente até, já que ela os ama, como se fossem ídolos. Só não é operária-padrão porque, oportunista, atrapalhada e incompetente, ela se parece muito com o filme: topa tudo por dinheiro e não faz nada direito.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta