Turnê
(Tournée), de Mathieu Amalric (França, 2010)
por Eduardo Valente
Choque
de performances
É raro ver um filme que deixa tão evidente quanto esse Tournée,
mesmo enquanto se assiste a ele, cada um dos seus elementos de
motivação e o quanto estes são caros a ele. Só que, ao mesmo tempo,
o porquê o filme não consegue dar conta exatamente de tudo que
gostaria de conseguir atingir também ficava dolorosamente claro
ao longo de toda a projeção. Amalric monta aqui uma celebração
(ainda que não sem dureza e melancolia) da ideia de performance
e da luta para escapar dos entraves mais comezinhos da “vida normal”.
Há uma idealização (de novo, doída) da vida “on the road”, de
artista, mas acima de tudo a partir da noção de trupe, de trabalho
(e vida) em conjunto.
Uma das boas idéias do filme, ao buscar esta
condição performática, é pensá-la a partir do choque entre dois
modelos bem distintos: de um lado, encarnado no corpo do próprio
Amalric, que interpreta um produtor/empresário, a performance
da atuação deste que é um dos maiores de sua geração de atores;
do outro lado, 5 mulheres e um homem que vêm da tradição da performance
musical teatral (mais especificamente de um movimento chamado
de “new burlesque”), que compõem os membros do grupo que Amalric
leva em turnê pela França no filme. Enquanto estes segundos se
apresentam para nós, mais do que atuam, Amalric está no ápice
da sua condição de “ator-ator” (às vezes tocando as raias da caricatura
de algumas coisas que já fez, principalmente para Despleschin).
Este choque entre meios distintos de lidar com a performance fica
claro já nos créditos iniciais do filme, onde os 6 atores teatrais
são identificados por suas personas de palco, enquanto o nome
de Amalric surge tradicionalmente, como o do ator de cinema que
é.
Mas,
infelizmente, se a idéia é boa (aliás, ótima), conseguir compor
estes dois estilos distintos de espetáculo num mesmo filme se
mostra uma missão maior do que a capacidade de Amalric resolvê-la
entre a filmagem e a montagem. Resulta que muitas vezes parece
que assistimos a dois filmes, que apenas eventualmente conversam
entre si – um, sobre o personagem de Amalric, que leva a cenas
de ação dramática e questões psicológico-narrativas na medida
em que o passado dele vem à tona; e outro com o grupo de atores,
que funcionam individualmente apenas no palco, mas que fora dele
acabam sendo caracterizados como um grupo bastante homogêneo e
pouco marcante. Pior ainda, porém, é quando precisamos acreditar
na interação entre os dois lados do filme (como no caso da relação
de atração-repulsa entre Amalric e uma das performers),
porque aí sim os dois estilos de performance mais se chocam do
que se entendem/complementam – o que poderia ser interessante,
mas o diretor não consegue fazer do choque muito mais do que uma
estranheza pouco instigante.
Não é por acaso que os artistas em tour
pela França são americanos: além do “new burlesque” ser típico
dos EUA, há aí toda uma herança de cinema com a qual Amalric dialoga,
que passa principalmente por Cassavetes e Altman (não por acaso,
os ecos mais próximos que sintamos são do Go Go Tales de
Ferrara, que já tinha muito dos dois – embora aqui seja o exato
oposto porque se briga pela possibilidade da excursão, enquanto
lá pela manutenção de um lugar fixo no mundo). Mas ao lidar com
sombras tão fortes, o que esta herança acaba ressaltando, mais
do que tudo, é o domínio extremo destes dois cineastas da forma
dos seus trabalhos com a câmera, os atores, os espaços. Pois se
de toda orquestração montada por Altman e Cassavetes (completamente
diversa nos dois, é bom que se diga) o que sobressaía era o sentimento
de uma fluidez extrema nas idas e vindas dos atores no espaço,
no drama, e da câmera ante eles, no filme de Amalric essa magia
(típica do melhor que o cinema consegue atingir) não se materializa,
e acabamos sentindo demais o desejo dele de nos conquistar para
a beleza do que se dá em frente a câmera – ao invés de simplesmente
sentirmos a beleza por si. Tanto assim que ele cai refém, por
exemplo, de algumas falas e situações explicativas que parecem
especialmente deslocadas no filme.
Maio de 2010
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