Totalmente Inocentes,
de Rodrigo Bittencourt (Brasil, 2012)
por Andrea Ormond
Choque
e espanto
Existem várias
maneiras de se constranger uma cidade. Em 1906, um gigantesco
terremoto virou do avesso San Francisco, a pérola da Califórnia,
muitos anos antes da Ashbury e da Haight tornarem-se vitrines
do universo GLS. Pois bem: o mesmo torpor, a mesma desolação,
o mesmo quadro também se aplica às ruínas cariocas de 2012. Para
constranger o Rio de Janeiro, fez-se um bárbaro Totalmente
Inocentes.
A
perda de tempo e a vontade de aterrorizar o público alcançam graus
incríveis no longa-metragem de Rodrigo Bittencourt. Nesta hora
da noite, nesta metafísica caverna, começamos a ouvir os profetas
da relativização. Aparecem desse jeito, como quem não quer nada.
Tocam a campainha, giro a maçaneta, abro a porta. Ruminam um longo
e cravejado sorriso. Já se sabe o que vão dizer, mas estendo a
toalha na mesa. Sirvo o cordial café, o cordial pedaço de bolo.
“Pega leve, entenda. Totalmente Inocentes: é divertimento
sincero, é coisa de quem não quer se preocupar com nada. Apenas
curtição.” Negativo. O raciocínio funciona em outros casos – o
que é evidente –, mas não aqui.
Como
todos sabemos, o gênero popular é um contingente imenso da produção
brasileira e estão soltas as estrelas e os diálogos que não nos
deixam mentir. Puxem pela memória e vejam aquele sorriso-maroto,
aquele sorriso-moleque, aquele sorriso-invenção. Aquele arregaçar
de dentes, que não está restrito às santificadas chanchadas da
Atlântida ou à brejeirice dos anos 70. Totalmente Inocentes
poderia ter tiradas sacanas, do tipo que fazem a glória no trabalho,
na
escola, no hall do elevador, entre os pacotes de compras
e os carnês do banco. Poderia ser o convite para os memes,
para a toda a siderada camaradagem que invade a existência online.
No entanto, nada funciona. As piadas produzem um nefasto suadouro,
um rubor que esquenta a nuca, a ponto de sugerir-se o subtítulo
“vergonha alheia”. Há um desconforto visível, pois o cidadão que
investe uma tarde no multiplex está pleno, besuntado em mel, aceitando
o que vier pela frente para poder rir. A mão boba de uma chefe
de revista (Ingrid Guimarães) roça as nádegas de uma estagiária.
Alvíssaras, chegamos perto. O chinês vendedor de pastéis faz uma
careta e chifrinhos. O empregado surdo-mudo entende: pastel de
carne para o freguês. Chegamos perto de novo. Mas tudo pára. Nada
continua. As duas gags praticamente resumem as esperanças,
as vagas do roteiro que não crescem, dormem no beleléu.
Um
slide do Youtube opera milagres, arrebanha legiões de fãs e momentos
antológicos. Justamente por esse fato, Totalmente Inocentes
apostou em Fábio Porchat na pele
do protagonista. Conhecido pelos esquetes na internet, Porchat
encarna o traficante “Do Morro”, dono de uma comunidade nos moldes
da Cidade de Deus – DDC, ao invés de CDD. Uma década depois, o
defunto longa-metragem de Fernando Meirelles (2002) serve de nostalgia
e paródia em Totalmente Inocentes.
Idem Tropa de Elite, volumes 1 (2007)
e 2 (2010). Indicativos de que o cinema brasileiro precisa de
novos alvos para o seu bestialógico.
Aos
iniciados no thriller policial, uma boa notícia: um traficante
pederasta. Diaba Loira (Kiko Mascarenhas) joga as tábuas
em que nos agarramos por um segundo, lembrando do beicinho doce
da Rainha Diaba (Milton Gonçalves) – e do filme dirigido por Antonio
Carlos Fontoura (1975), no sangue e na folia da contracultura.
Coincidência ou não, mas sem o fogo de Milton e com a cara de
guitarrista do Kiss, Diaba Loira também carrega um séquito de
colegas-marginas. Claro que não temos a vinheta do ódio, coisa
e lousa, porque ela está na proposta de Fontoura e longe da temática
de Bittencourt. Ei-nos, portanto, na carrancuda divagação: não
se tem isto, mas não se tem aquilo. Não se percebe nem mesmo a
metralhadora verbal e visual, que seria da essência do filme.
Da essência da tal comédia ligeira, feita para brilhar. Resta
a fraqueza, a lerdeza. Resta o espanto.
No
carnaval das ilusões, Muita Calma Nessa Hora (2010) se
eleva à categoria de estado de arte, quiçá fonte de inspiração.
Quando menos se espera, o hit de Gonzaguinha aparece de
novo. “O que é, o que é?”, vulgo “Viver e não ter a vergonha de
ser feliz”. A apoteose premeditada, o recurso do (agora erudito)
Muita Calma retorna numa boa. “Ardendo”, como diria o chapa
Da Fé – inimigo de Do Morro. Somos todos alegres, gente que não
desiste nunca, que olha de esquiva para as agruras e se refaz,
mitômanos do limão à limonada. Havia sinceridade na letra de Gonzaguinha,
dissipada pelo uso coxinha, que cansa pra danar. Continuarei abrindo
a porta. Refeita do susto, percebo na plenitude dos meus dias
que deixei a sala de cinema e, ainda bem, já estou em casa.
Setembro de 2012
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