A Música Segundo
Tom Jobim,
de Nelson Pereira dos Santos (Brasil, 2011)
por Fábio Andrade
Desescrevendo
a História
Desde
os primeiros planos de A Música Segundo Tom Jobim
– uma montagem de resplandecente material de arquivo dos
tempos áureos do Rio de Janeiro – fica bastante claro
que Nelson Pereira dos Santos não chega a Tom Jobim com
a intenção de fazer um documentário musical-biográfico
“comum”, em ser apenas mais um exemplar de um gênero
que já merece prateleira própria dentro das quase
sempre magras seções dedicadas ao cinema brasileiro
nas locadoras. De fato, o diretor está a falar não
só de um artista ou de sua biografia. Dele, propriamente,
não se “fala” de fato coisa alguma. Por outro
lado, Tom Jobim tampouco é aqui apenas a escavadeira que
revira as pedras do passado, em um esforço arqueológico
do país e do próprio cinema. Não há
espaço para anedotas, discursos legitimadores de nossas
autoridades em lugares comuns, devassamento de intimidade ou aquela
velha inflamação do complexo de inferioridade que
tenta humanizar o mito, insistindo em conquistar algo que já
é ponto de partida e nunca deveria ter sido posto em crise.
A Música Segundo Tom Jobim é, de certa
forma, um pouco de tudo isso, mas “pouco” aqui é
palavra importante. Estamos diante de um filme de absoluta depuração,
onde a História é colocada em tina d’água
para decantar, até que permaneça somente o que lhe
é essencial, as pequenas pedras que, solapadas pela erosão
do tempo, cristalizam a matéria que lhes dá consistência.
Após as imagens do Rio de Janeiro, o que fica é
um grande trabalho de articulação e montagem de
trechos de apresentações das músicas de Tom
Jobim. São canções que viajaram o mundo,
passando por alguns dos corpos mais importantes da música
de sua época, decolando daquele primeiro Rio de Janeiro
para, ao fim, retornar já com status de autor, de quem
criava, fixava e propagava mundo afora aquela mesma mitologia.
Mas há retorno?
Há
algo particularmente expressivo na opção por um
“filme de gabinete”, um documentário que evita
as ruas e se dedica a extrair seu todo de um material já
existente: a história, na verdade, já foi escrita.
As imagens já foram registradas e, partindo disso, o verdadeiro
trabalho historiográfico do diretor não é
somente o de extrair um sentido determinado de um recorte dessa
história, mas de perceber que, nesse almoxarifado sufocado
de pontas de película e fitas magnéticas, o que
era realmente essencial se perdeu. Ao cinema – arte que
parte sempre de uma dupla condição: sua inevitabilidade
histórica, e sua impossibilidade de ser a História
– cabe a percepção dessa perda e a proposição
de uma determinada restauração de um projeto de
arte e, conseqüentemente, de país interrompido naqueles
primeiros flashes, em preto e branco tão presente
quanto as pedras portuguesas das calçadas da cidade.
Tom Jobim é este elo perdido, símbolo de um momento
em que a arte brasileira era uma vontade de país ao mesmo
tempo em que se colocava em pleno diálogo com o que de
mais interessante era feito fora daqui – momento que inclui
a própria geração de Nelson Pereira dos Santos.
Mas algo descarrilou de lá pra cá, impedindo que
aquela cidade, aquela primeira cidade, retorne viva, quiçá
em cores, ao final do filme. Se algo na arte brasileira foi irremediavelmente
perdido entre, digamos, 1960 e 2012, em algum desvio que nos voltou
feito gado ao nosso próprio umbigo, não há
metáfora mais potente para esse mau agouro do que o Rio
de Janeiro. Por outro lado, não há figuras mais
aptas a desatar este nó do que Tom Jobim e Nelson Pereira
dos Santos. De corte em corte, a História vai perdendo
pedaços, deixando para trás parte do que se tornou
seu corpo, até se livrar de toda uma tralha que, pesando
para um dos lados, nos fez tomar o caminho errado. A grande contribuição
do cineasta é perceber o que havia ali de “em si”,
escolher quais eram as pedras que não compunham a História,
pois já a carregavam escrita no próprio corpo, e
fazer as operações, as cirurgias necessárias
para que não sobre nada além disso: a música
segundo Tom Jobim.
A
Música Segundo Tom Jobim é um filme sobre este
gênio do craft, de como a techné é
curvada e recurvada até expressar uma verdade do mundo
no qual ela
se insere. A necessidade de recorrer ao inglês e ao grego
para se expressar algo tão básico à realização
artística é ilustrativa das preocupações
que foram sacrificadas ao longo dos anos, e de toda uma forma
de pensar do Brasil-novo que não consegue enxergar a arte
como mais do que um fenômeno, seja ele cultural, social,
mercadológico ou industrial. Ainda assim, foi por meio
da música – da exímia manipulação
da escala musical, dos gêneros e das convenções
ocidentais, senão universais – que Tom Jobim percebeu
e reconstituiu aquelas primeiras imagens, aquele primeiro Brasil
hoje perdido em um prólogo de um filme. Esse esmero artístico,
tão cuidadosamente solapado e desestimulado por décadas
de falácia em torno do “gênio intuitivo”
tropical, encontra em Tom Jobim uma expressão cabal e em
vias de desaparecimento. E justamente por isso, seguimos cada
vez mais carentes de uma História: a digna do H maiúsculo
será sempre a que for melhor contada.
A montagem do filme será guiada, portanto,
não pela linguagem – deformada e reformada sempre que
a música de Tom Jobim embarca para algum novo palco, viagem
que é sempre sem volta e se espalha feito cura – mas
pelos três pontos também essenciais: melodia, harmonia
e ritmo. A melodia é a unidade maior, que determina a escolha
das imagens e a maneira como elas serão articuladas, criando
padrões, estampas, repetições e contrastes;
a harmonia justamente como a articulação, o contraponto
de sentido estabelecido
entre uma imagem e outra, entre uma voz e um vibrafone, entre um
palco e outro, entre um vermelho e um verde; e o ritmo como andamento,
como instância percussiva dos cortes e das suturas, como amarração
bruta da melodia e da harmonia. E
se falamos de montagem, de melodia, harmonia e ritmo, é inevitável
pensarmos em Eisenstein. “Eu não toco piano; eu só
toco o rádio e a manivela do gramofone”, escreveu Eisenstein
em suas “Memoirs”. A Música Segundo Tom Jobim
não é somente uma colcha de retalhos, um greatest
hits de um dos nossos maiores compositores, pois a todo tempo
esses três fatores – melodia, harmonia e ritmo –
estão norteando os cortes, produzindo sentidos que nos levam
do Rio de Janeiro a Tóquio, com a mesma lisura que sai dos
arranjos intricados de uma orquestra para o vibrafone solo de Gary
Burton, reduzindo tudo às notas mais básicas da canção,
sem com isso perder nada de sua complexidade. Diante de uma obra
como a de Tom Jobim, não é necessário mais
do que a própria obra. É dela que tudo nasce e é
nela que tudo morre uma bela morte. E justamente despida, exposta
em sua armação mais primordial, é que essa
obra reencontra todo o significado que traz, inevitavelmente, incrustado
em sua própria existência.
Abril de 2012
editoria@revistacinetica.com.br |