Tokyo!
(idem), de Michel Gondry, Leos Carax e Bong Joon-ho (França/Japão/Coréia do Sul/Alemanha,
2008) por Paulo Santos Lima
A
imagem ou a política no espaço
Impossível deixar
de se levar em conta a questão do lugar num filme chamado Tokyo!. Assim
como Paris, Te Amo, Bem-Vindo a São Paulo e outros afins, a cidade
parece ser o que justifica o amálgama entre episódios que não cumprem necessariamente
qualquer diálogo estilístico. É mais um argumento. E, por isso, talvez seja mais
interessante ver como cada um dos três diretores de Tokyo! lida com o próprio
espaço da capital japonesa – ou, mais que isso, como intervém nesse espaço. De
pronto, pode-se dizer que Michel Gondry, Leos Carax e Bong Joon-ho levaram em
expressiva conta a cidade: a questão da despersonalização em Interior Design,
de Gondry; o palco de selvageria e desumanidades em Merde, de Carax; e
o isolamento que se faz quase irônico numa cidade tão povoada em Shaking Tokyo,
de Bong – questões bem desenvolvidas e que visitam a localidade. Tóquio, assim,
não é um mero panô onde a cena ocorre à frente. Pelo menos nos dois primeiros
episódios, há uma considerável instalação da câmera no espaço metropolitano, mostrando-o. Quanto
ao primeiro trabalho, antes de tudo, vale dar uma olhada no esmiúço ligeiro, mas
bem preciso, que João Cândido Zacharias fez
em Cannes. Já aqui, o que há a dizer é que Gondry consegue um belo feito até
o terço final de sua história sobre um casal interiorano que tenta a vida na capital,
o que acarreta a separação de ambos uma vez que o rapaz tem projeto firmado ao
passo que a moça continua perdida, sem função – até se transformar, literalmente,
numa cadeira. O sobrenatural que habita os três filmetes é aqui mais uma “sacada”
reiterativa. E, ainda que use bem a cidade, com sua arquitetura maluca, para instalar
seus personagens no espaço diegético, a câmera de Gondry parece não se instalar
na cidade, vendo-a como um turista dessas excursões zás-trás. Em
Tokyo Shaking, um hikikomori confinado em sua casa há 10 anos apaixona-se
pela entregadora de pizza. A relação do personagem com o espaço é fundamental,
mas privada demais a algo que poderia ser considerada “Tóquio”. Ou é numa Tóquio
que perpassa a fresta da porta, como luz solar ou ruído externo. O filme de Bong
Joon-ho sai às ruas em um momento-chave,
mas, ainda que essas ruas vazias sejam reconhecidamente Tóquio, bem poderiam ser
de qualquer outra cidade do globo. Por outro lado, é, dos três, o melhor exercício
de cinema: naquilo que se pode dizer de exploração do espaço, exposição concisa
de informações. E que expressivos recuos a câmera dá, logo no início, quando o
personagem conta sobre seu estado, confirmando assim o isolamento total daquele
homem, tão total que ele é isolado na (e pela) própria mise-en-scène. É
a menor intervenção à capital, mesmo tocando em assunto bastante cotidiano a eles.
Tóquio, dessa forma, é pauta. Mas, se a intervenção é um gesto político, assim
como é uma escolha de enquadramento, um tempo de plano, um sentido criado pela
costura das imagens em seqüência, será que Shaking Tokyo é menos “político”
que Merde, de Leos Carax?
Merde.
O nome já diz muito. É Carax, grande formalista do cinema francês dos anos 80
e 90, sumido há uma década da direção, jogando merda no ventilador. Uma merda
de primeira, adotando um humor que é, quando bem utilizado, uma grande ferramenta
política. Temos um homem, o tal do título, que habita o esgoto da capital e de
repente sai à superfície para barbarizar: roubar cigarro, comer flores, tirar
a muleta de um pedestre, jogar cinzas num bebê, ocupar de forma arreganhada o
espaço da calçada, dar uma boa lambida no sovaco de uma graciosa japonesinha.
Esse passeio pela rua é mostrado em plano-sequência e explora todos os recursos
do ator Denis Lavant. Não à toa: estamos diante de uma performance cômica, irreverente,
de provocação, e a mídia e o senso comum farão outra leitura, por via das imagens
captadas por celulares das vítimas, câmeras de vigilância etc. Merde
fará uma “violação” ao espaço comum de Tóquio, aquele espaço que oficializa o
direito público, e Carax, que já interviu violentamente em Paris em seu Os
Amantes de Pont-Neuf, adotará uma aparência de captação digital justamente
para bater de frente com o espaço. Assim, quando Merde encontra no esgoto granadas
da 2a Guerra Mundial e faz o inferno nas ruas, matando no atacado e
tal, as imagens ganham um aspecto de filme B, com bizarras inserções de efeitos
especiais nas ruas. A partir daqui, o filme amplifica a loucura, com zooms
e movimentos de câmera mais bruscos tomando corpo. É uma imersão selvagem, que
abre espaço pro filme enveredar por um discurso literal sobre história, política,
preconceito, sistema repressivo. Leos Carax faz política menos pelo conteúdo desses
discursos verbalizados, e mais (e sobretudo) por opções como, por exemplo, tripartir
a tela na seqüência do tribunal “o povo contra Merde”. E, efetivamente, na apropriação
irrestrita que o filme faz de Tóquio para discutir geopolítica, mídia, política
norte-americana, segregação, genocídio, jurisprudência grotesca etc.
Três
dignas experiências cinematográficas, as desses filmes de Tokyo!, mas vale
pensar o filme a partir da relação que cada episódio faz com o espaço. Não para
qualificar os trabalhos, mas para repensar o que é política na imagem e imagem
política. Michel Gondry tem sua política da imagem e não faz uma política em suas
imagens, certamente. Leos Carax exerce uma intervenção bastante política no espaço
de Tóquio, e seu filme é notável, sobretudo pelo humor. É o mais atraente deles.
Mas é Bong Joon-ho, que mal sai às ruas, quem constrói sua história por caminhos
bastante cinematográficos, adotando uma política da imagem ou uma política para
chegar à imagem mais adequada. São questões interessantes, raras sobretudo neste
formato absurdo de alinhavo de filmes sob a panca de um longa-metragem. Tokyo!
consegue justificar a convivência estreita, de 112 min, de seus três médias-metragens. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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