in loco - mostra de tiradentes 2011
Nono dia: A potência da imagem
por Filipe Furtado
Ex Isto,
de Cao Guimarães (Brasil, 2010)
Ex
Isto não é propriamente uma adaptação do Catatau do
Paulo Leminski, seja no nosso conceito habitual de adaptação,
que se refer ao mote do arco dramático (no caso, “Descartes encontra
os trópicos” – está lá, mas só ele, nem mesmo a estrutura entorno
da espera por Arciszewski é uma preocupação)-, seja num ideal
bressaniano de adaptação como leitura de uma escrita. Ex
Isto localiza no livro de Leminski seu conceito principal,
e extrai dali um sentimento de mundo. De certa forma, Ex Isto
não é uma adaptação, mas uma aproximação. Uma série de princípios
e recursos caros ao seu autor utilizados para sublinhar uma idéia
que ele encontrou no objeto adaptado.
Trata-se de um filme violento, porque só assim
pode-se fazer justiça a como o processo de “desrazão” do Decartes
de João Miguel é necessário para que ele complete seu caminho.
É ai que Ex Isto se revela um filme muito forte dentro
da obra de Cao
Guimarães, além de muito revelador também: se
diante de filmes como Andarilho e Acidente podemos
nos centrar no sublime pictórico das suas imagens e na criatividade
de algumas situações, e nem sempre considerar como elas vêm acompanhadas
de uma série de decisões nada simples, Ex Isto parte de
um reconhecimento de que a abertura para o mundo que sempre foi
central no cinema de Cao Guimarães não se dá com
singelezas, e sim que é um processo brutal. Há muitas imagens
sedutoras em Ex Isto, mas elas vem sempre acompanhadas
de um incômodo constante. Chegar ao mundo, em Ex Isto, não é uma
questão de sublime, mas de necessidade. É romper uma casca essencial,
mas muito difícil. Entrar em contato com o mundo, deixar o eu
fechado da razão, é entrar em contato com toda uma história de
violência. Ex Isto reconhece isso.
Seria
muito fácil transformar o arco dramático de “Catatau” num processo
de sublimação pelo sensível do mundo, mas não seria honesto. Temos
no começo um eu muito bem resolvido consigo mesmo, um sistema
fechado; ao final temos a imagem de João Miguel nu se arrastando
pela areia da praia. Já não estamos no terreno do eu, simplesmente
estamos no mundo, reconhecemos o corpo, o concreto, uma dor que
não é interiorizada, está ali exposta na tela. Assim, podemos
dizer que este não seria um filme possível, não fosse a presença
de João Miguel que percebe bem os caminhos que Ex Isto
precisa percorrer. Rene Decartes não é um deslumbrado, mas alguém
que precisa ser arrancado de um estado das coisas a outro. Ao
fim, na praia, precisa se entregar. É um cego que enxerga pelo
táctil. Um violentado que alcançou o mundo.
* * *
O Céu Sobre os Ombros,
de Sergio Borges (Brasil, 2010)
As
imagens de O Céu Sobre os Ombros parecem sempre apontar
para uma fuga. É um filme em movimento constante, assim como suas
personagens. Não por acidente, sua escolha de atores buscou pessoas
que deslizam para novas identidades, mas preservam uma contradição
própria de uma identidade anterior. São bem resolvidos todos,
mas seguem suspensos numa mutação constante. A câmera de Borges
acredita que ali, nestes personagens e neste movimento, vai localizar
a mesma potência que Cao
Guimarães aos poucos dimensiona em Ex Isto. De todos
os filmes-processo de auto-ficção recentes do cinema brasileiro,
O Céu Sobre os Ombros é de longe o mais bem resolvido consigo
mesmo: Sergio Borges sabe muito bem onde quer chegar e vai até
lá. Por isso mesmo é um filme mais desprovido de narrativa do
que Avenida Brasília Formosa: a fabulação aqui se resolve
dentro das próprias cenas, ela é natural aos seus atores – o que
é essencial já que a força do filme brota toda do desejo que vem
destas seqüências.
É admirável a forma como o filme consegue resignificar
seus personagens o tempo todo e como sua câmera reconhece seus
próprios limites. Fábio Andrade descreve estes procedimentos muito
bem em seu texto sobre o filme. O Céu
Sobre os Ombros é um filme destinado a ser uma causa célebre
em alguns meios do jovem cinema brasileiro, por representar tão
bem uma série de anseios, e neste sentido sua posição no encerramento
de Tiradentes não poderia ser mais adequada. Não podemos, porém
deixar de observar que o que é natural para Ex Isto, é
um projeto aqui: sentimos que O Céu Sobre os Ombros nunca
encontra a potência que tanto deseja. É um filme que sabe muito
bem seu caminho, que domina plenamente suas operações, mas que
nunca se entrega por completo dentro destes movimentos para acompanhar
suas personagens. Émais admirável que apaixonante. Uma
manifestação perfeita de um desejo que ainda não encontra uma
vazão ideal.
Janeiro de 2011
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