in loco - mostra de tiradentes 2010
Quarto dia: Ponto
zero
por Filipe Furtado
Enchente, de Julio Pecly e Paulo Silva (Brasil,
2011)
Julio
Pecly e Paulo Silva retomam neste seu primeiro longa-metragem
a enchente que em fevereiro de 1996 destruiu a Cidade de Deus.
Se esta é uma tragédia que tende a se misturar na nossa memória
a tantos outros casos trágicos das nossas chuvas de verão, boa
parte do valor de Enchente vem justamente da forma como
ele mergulha no especifico dela. Nesse sentido, um dos grandes
achados do filme é ter encontrado amplo material da noite da enchente
gravado por um local. Estas imagens existem num plano próprio
muito diferente do habitual, são imagens que enxergam o desastre
pelo que ele é, e não pelas mãos da abstração dos números de mortos
ou de uma revolta pré-formatada. Ao usá-lo, Enchente dispensa
os filtros, e nele a enchente de 96 existe pelo que ela é, e pelo
que ela significa para aqueles que a viveram (incluindo ai os
próprios cineastas que moravam na Cidade de Deus à época). Como
alguém menciona ao longo da projeção, uma experiência como esta
é um marco que o efeito do tempo não ultrapassa. È um ponto zero
para cada uma das testemunhas.
Há em Enchente esta idéia constante de
algo não superado. Pecly e Silva registram com precisão justamente
como aquela enchente resiste como um tempo congelado para seus
sobreviventes. É um tempo concreto esculpido com cuidado nos depoimentos
dos moradores. A tragédia não pertence a 96, ela permanece constante
naquelas ruas, naqueles rostos. Não é um evento ao qual se volta,
mas um evento que se habita. Enchente é um documentário
em primeira pessoa, apesar de Pecly e Silva se recusarem a se
inserir como personagens, justamente porque é um filme que reconhece
esta verdade. Talvez por isso mesmo os momentos mais frágeis do
filme aconteçam quando ele se afasta da comunidade ou quando os
diretores tentam reforçar por demais uma idéia (seja nas cartelas,
seja no uso de músico).
Francis Vogner, crítico aqui da Cinética, observou
muito bem no debate do dia seguinte à exibição o cuidado com que
Enchente insere seu próprio evento dentro de todo um processo
histórico. Quando próximo ao fim do filme os diretores retomam
o velho recurso de fazer alguém rever um material da época, no
caso uma senhora assistindo a um depoimento indignado para a televisão,
eles o superam justamente porque conjugam estas duas histórias
ainda andamento: numa só reação, vemos um longo histórico das
enchentes cariocas e uma experiência pessoal constante. É muito
por conta disso que Enchente consegue ser extremamente
eficaz como denúncia sem jamais sucumbir ao denuncismo.
* * *
Série 1 de curtas – Mostra Foco
Retrato de Suzana, de Leonardo Amaral e Lygia Santos
Haruo Ohara, de Rodrigo Grota
As Aventuras de Paulo Bruscky, de Gabriel Mascaro
O Sol da Lua, de Cristiana Miranda
Dois e Meio, de Alexandre Serafini
O Sarcófago, de Daniel Lisboa
Nesta segunda-feira se deu também a abertura da
Foco, que nesta edição se configura como a competitiva de curtas
do festival. O primeiro curta exibido, Retrato de Suzana,
de Leonardo Amaral e Lygia Santos, nos instalou muito bem na sessão.
O foco do filme é um salão de cabeleireiro que se dobra em ateliê
de arte no fim da noite, e é marcado por uma obra no seu entorno
cuja presença lhe invade o espaço o tempo. Mas o que nos envolve
é a forma como a dupla de cineasta o circula: Retrato de Suzana
vai aos poucos nos envolvendo no seu objeto partindo das beiradas,
em meio à fronteira salão/obra, até chegar no momento que Suzana
recebe seu professor e vai trabalhar no seu quadro. É um filme
com um sentimento de local muito forte. Em meio as múltiplos duplos
que se acumulam no filme, é este poder de instalação que se destaca.
Diretor
do filme seguinte (Haruo Ohara), Rodrigo Grota vem desenvolvendo
obra de tamanha personalidade em filmes como Satori Uso
e Booker Pittman que basta o plano inicial deste novo filme
para que saibamos que estamos diante de seu novo trabalho. Como
sempre, o formalismo pictórico de Grota produz imagens de incrível
rebuscamento que lembrar um pouco alguns outros cineastas que
trabalham no limite deste pictórico artístico – como Béla Tarr.
Há momentos em
que Haruo Ohara parece carregado demais
deste cuidado visual todo, mas é inegável que há uma força nestas
imagens. Nos seus melhores momentos, o cinema de Grota exibe uma
fé incrível no seu poder de deslumbrar. Há sobretudo uma precisão
no olhar que Grota lança sobre a sua reconstituição que reforça
este encantamento e ajuda a polir suas beiradas mais exageradas.
Esta precisão de olhar nem sempre se encontra num filme como O
Sal da Lua, de Cristiana Miranda. Trata-se de um experimental
que tem um conceito de curto circuito forte, chegando mesmo a
sugerir uma sci-fi da cidade do terceiro mundo, mas que
se perde justamente ao carregar demais na sua confluência de elementos
(off de Cocteau, texto do Octavio Paz, etc) que terminam
por engolir o filme.
Já Dois e Meio se destaca de todo este
conjunto justamente por sua aposta completa no ato de contar uma
história. Alexandre Serafini aposta que seu pequeno conto sobre
um mecânico de elevadores que precisa recuperar seu carro roubado
vai se bastar por si só. Não deixa de ser uma espécie de lição
ilustrada, reforçada tanto pelo tom econômico do formato de curta
como em algumas opções de construção dramática (algumas movimentações
de câmera na parte inicial, todo o suspense da parte final, etc.).
É um filme com o mérito inegável de ser direto, saber do que quer
falar e como chegar lá.
Dois filmes opostos em tom, mas com alguns pontos
de contato muito interessantes são As Aventuras de Paulo Bruscky,
de Gabriel Mascaro, e O Sarcófago, de Daniel Lisboa. São
ambos espécies de filmes-retratos de artistas peculiares que chegam
a seus objetos por caminhos ainda menos comuns. O Sarcófago
tem uma personagem central escorregadia, que parece viver em função
do confronto, vive enterrado em meio a sua arte no sarcófago do
título, e se recusa a se revelar, transformando o próprio corpo
numa extensão da sua criação. Lisboa articula tudo isto numa atmosfera
muito forte, com som muito invasivo e imagens de impacto. É muito
envolvente até certo ponto e então seu retrato começa girar em
falso – suas imagens seguem com um significante forte, mas já
não conseguem a mesma liga. A construção não consegue se sustentar,
como se todos aqueles recursos tivessem um impacto curto.
Se,
assim como O Sarcófago, As Aventuras de Paulo Bruscky
é um filme que encerra a criação artística no próprio viver das
suas personagens, ao contrário do filme de Daniel Lisboa ele sugere
uma colaboração maior entre cineasta e seu personagem. As Aventuras
de Paulo Bruscky é um documentário de animação: todo ele passado
no ambiente virtual do Second Life, é um filme sobre um corpo
virtual que mergulha com prazer nas possibilidades criativas deste
contrasenso. É um filme sobre criação embebedado pela idéia do
viver. No ambiente virtual, Bruscky localiza um espaço mutante
ideal para sua arte, e nas suas aventuras, a câmera de Mascaro
encontra um interlocutor perfeito.
Janeiro de 2011
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