in loco - mostra de tiradentes 2010
Terceiro dia: Mitologias
por Filipe Furtado
A Alegria,
de Felipe Bragança e Marina Meliande (Brasil, 2010)
Desde
alguns de seus curtas-metragens, a dupla de cineastas Felipe Bragança
e Marina Meliande se exercita numa aproximação com a juventude.
É um cinema movido pelo desejo de conjurar numa gramática de cinema
contemporâneo toda uma cultura jovem carioca. A Alegria
é provavelmente a expressão mais clara e bem resolvida deste desejo.
Bragança e Meliande constroem uma mitologia muito particular,
que parte do fantasma maior do cinema carioca (a violência urbana)
para traçar um painel de reações e um “estar no mundo” marcado
por um imaginário fantástico (não à toa, o filme tem como subtítulo
“um filme de super heróis”) e poético. É uma mitologia eminentemente
positiva, marcada pela relação terna entre as personagens, o expurgo
do conflito pelas mãos de uma lógica do grupo e do estender a
mão. Mesmo as relações pai-filho no mundo mitológico de A Alegria
exibem esta ternura apaziguada (Marcio Vito interpreta o pai mais
gente boa da história do cinema brasileiro). È um tom sensível
difícil de sustentar, ao qual o filme segue radicalmente fiel.
Se há uma limitação clara para este projeto, ela
está justamente no que esta sensibilidade produz. A Alegria
é um filme de meios tons, marcado justamente pela falta completa
de carne. A mitologia de Bragança e Meliande pressupõe uma política
(que o próprio filme define como a política da alegria) prevista
na aniquilação completa do conflito por este olhar poético e terno.
Se há uma saída clara para os conflitos – se há uma saída para
o fora de imagem para a violência, para o sexo e para a maior
parte dos desentendimentos – logo não há corpos em cena. Não surpreende que
as melhores seqüências do filme sejam justamente aquelas passadas
no colégio, espaço público de peso tão grande para suas personagens
que A Alegria não consegue deixar de lhe reconhecer um
incômodo. Fora das grades do colégio, porém, o filme parece crer
que seu olhar por si só é capaz de sublimar tudo. Quando não consegue,
utiliza-se de elipses e do fora de cena (pensemos na forma como
o primo fala sempre num confronto que nunca se materializa).
De
alguma foram, desta maneira A Alegria marca a vitória do
olhar sobre a matéria. Sua mitologia propõe um desengajamento
completo com o corpo em direção ao sensível. Neste sentido, não
deixa de ser uma espécie de contraponto completo do cinema de
Pedro Costa, outro cineasta que construiu uma cosmologia própria
muito peculiar para lidar com uma série de questões sócio-políticas
especificas sem com isso renegar todos estes elementos. Diante
da A Alegria, é impossível evitar a ambivalência entre
o sucesso na expressão de um olhar e o que ele apresenta. Não
deixa de ser um desentendimento político entre a crítica e o filme.
A poética do estar no mundo de A Alegria é tranqüilizada
demais, sua fábula precede do concreto essencial para que o mundo
exista.
* * *
Solidão e Fé, de Tatiana Lohmann
(Brasil, 2010)
Solidão e Fé
é também um filme preocupado em conjurar uma mitologia – no caso,
a da figura do cowboy, em especial dentro do universo do rodeio.
Desde o primeiro momento, através de uma narração em off
em primeira pessoa bem desastrada, a diretora Tatiana Lohmann
tenta estabelecer um olhar de forasteira fascinada, embalado em
imagens que se embebedam de uma iconografia bastante batida do
que este meio representa. Só que Solidão e Fé soa menos
assombrado pelo mundo que revela e mais por si mesmo. A fascinação
pelo outro termina soando muito mais como uma celebração autopromocional
do filme. O mundo do rodeio é maravilhoso porque Solidão e
Fé o filma, e não por ele mesmo.
Lohmann
constrói seu filme todo na dicotomia de dois elementos igualmente
presentes no meio – a rudeza do macho e a religião – mas estabelece
muito menos um contraste e mais duas narrativas paralelas. O que
parece fascinar o filme é muito menos a figura do peão e mais
uma idéia de homem rústico. No último ato, Solidão e Fé
abandona aos poucos o rodeio para uma viagem regressiva em direção
a alguns dos aspectos mais conservadores do meio. É como se o
filme reconhecesse que o universo que supostamente lhe fascinou
por cerca de hora ainda seja bem comportado demais para seus objetivos.
Há mais força nestes momentos finais, como se Lohmann finalmente
chegasse ao destino que tanto procurara, mas há também a impressão
de que o filme desperdiçou o universo do rodeio (bem mais interessante
do que ele apresenta), e com ele cerca de uma hora de projeção,
antes de encontrar a rusticidade de uma espécie de peão original
que por alguma razão obscura lhe soa encantador.
Há alguns depoimentos fortes em sua frontalidade,
e é inegável que a câmera de Lohmann finalmente se localize à
vontade. Mas mesmo isto não é o suficiente. No seu último movimento,
Solidão e Fé abandona mesmo a pequena cidade em direção
aos boiadeiros que fazem travessias de gado, um outro universo
que pode render um filme e que revela a limitação maior desta
tentativa de construir um olhar sobre o mito do homem rústico:
todos este tipos que desfilam pela câmera de Lohmann representam
universos diferentes, não são uma linha evolutiva clara. Entre
o boiadeiro e o peão de rodeio, há um espaço muito maior do que
o olhar de Solidão e Fé é capaz de lidar.
Janeiro de 2011
editoria@revistacinetica.com.br
|