in loco - mostra de tiradentes 2010
Segundo dia: Políticas
do espaço e políticas de slogans
por Filipe Furtado
Avenida Brasília
Formosa, de Gabriel Mascaro (Brasil, 2010)
Os
três longas de Gabriel Mascaro, KFZ-1348 (co-dirigido por
Marcelo Pedroso), Um Lugar ao Sol e este Avenida Brasília
Formosa se notabilizam por uma busca bem particular para dar
corpo a um encontro, cada qual numa chave bem própria. Se KFZ-1348
e Um Lugar ao Sol tinham ganchos sócio-políticos muito
claros, o primeiro traçando um painel histórico através dos vários
donos de um mesmo fusca e o segundo confrontando vários donos
de cobertura, à primeira vista seu novo trabalho é um filme sem
um gancho tão claro, que se contenta em seguir uma série de personagens
no bairro de Brasília Teimosa, em Recife. Logo, porém,
fica claro que há algo mais em jogo: seus personagens são objetos
de cena num painel mais amplo sobre o bairro, a sua posição na
orla de Recife e o projeto de reurbanização local.
Avenida Brasília Formosa
é um documentário no sentido direto termo: é um filme que documenta
um espaço, uma comunidade, um certo estar no Recife que pertence
àquele local e somente a ele. Não é, porém, um documentário na
acepção mais típica do termo; seus personagens interpretam a si
próprios, mas a mão do cineasta é presente em cada cena, a intimidade
e afeto das situações nunca escondem o artificial da mise en
scène. Há a impressão constante de que são todos peças de
um tabuleiro formal muito bem guiado pelas imagens precisas de
Ivo Lopes Araújo, que a esta altura se tornou ele próprio uma
grife formal no jovem cinema brasileiro. Avenida Brasília Formosa
termina se aproximando muito mais de certas narrativas experimentais-híbridas
como Let Each One Go Where He May de Ben Russell. Esta
aproximação é importante porque afasta o filme da maior parte
dos documentários/ficções observacionais; o apuro do olhar que
a colaboração entre Mascaro e Araújo criam tem o efeito de cancelar
qualquer paternalismo na imagem, ressaltar que, a despeito do
personagem da cinegrafista local, o olhar de Avenida Brasília
Formosa segue distante.
Toda
esta precisão formal vai aos poucos deixando existir o espaço
político vital para a força do filme: as pequenas ruas de Brasília
Teimosa, suas casas, toda aquele movimente de uma comunidade em
ação. São estas externas, muito mais que seus
personagens, que sobrevivem na nossa memória. Existem num universo
bem diferente da avenida-título que promove uma outra idéia de
espaço urbano. A política, em Avenida Brasília Formosa,
está concreta na imagem; há uma idéia aqui, mas ela flui naturalmente
em meio às quatro trajetórias que Gabriel Mascaro acompanha. É
uma política de espaço e olhar que se resolve no colocar em cena
muito mais que só num ideal de registro observacional ao qual
o filme corre o risco de ser reduzido.
* * *
Cortina de Fumaça, de Rodrigo
MacNiven (Brasil, 2010)
O contraste entre a voz off inicial, na
qual o diretor Rodrigo MacNiven apresenta o ponto de partida sobre
a sua investigação e o filme que se segue diz muito sobre o limite
deste documentário sobre a legalização das drogas. MacNiven anuncia
uma investigação, um mergulho pessoal sobre um tema recheado de
dúvidas; Cortina de Fumaça, porém, é um filme quase
sem perguntas – mas cheio de respostas, e já na sua primeira cena
após a introdução apresenta a sua tese e depois a reitera a cada
entrevista posterior.
Documentários que se propõem exclusivamente a
expor uma tese têm seus limites claros, a começar por uma tendência
a falarem exclusivamente com quem já concorda a priori
com eles, mas o maior problema de Cortina de Fumaça não
é exatamente ser um filme de tese, mas sim sua completa falta
de controle e tato – que já se explicita no contraste entre off
de apresentação e o filme de tese posterior. Há
dois problemas muito graves que minam a possibilidade do filme
se comunicar com mais força: primeiro, uma falta completa de disciplina
que faz com que o filme com freqüência perca seu foco em função
de digressões por figuras e locais que encantaram o diretor, a
despeito de a inclusão delas no filme nada acrescentar para o
projeto como um todo – pensemos por exemplo na longa seqüência
da convenção da maconha. O outro, é a tendência constante de reiterar
seus mesmos conceitos em eco, numa tentativa um tanto desesperada
de que o acúmulo de especialistas reforce suas idéias. O ataque
a certas idéias do senso comum que o filme promove é louvável
mas, por exemplo, quando Nilo Batista ataca a idéia da co-relação
entre usuário de drogas e crimes violentos, ele não precisa do
apoio extra que na verdade termina enfraquecendo o próprio discurso
no lugar de reforçá-lo.
Esta falta de controle resulta num filme que nunca
faz mais que tatear sua questão. Para um longa metragem com uma
tese clara sobre o seu tema, Cortina de Fumaça é surpreendentemente
desprovido de especificidade. Para poder reiterar suas cartelas
de PowerPoint diversas vezes, MacNiven passa por cima de se aprofundar
sobre personagens e idéias que encontra. Pensemos por exemplo
no pesquisador inglês que perde o cargo público por conta dos
resultados da sua pesquisa: as seqüências com ele funcionam muito
bem junto a uma parcela dos espectadores, mas se o cineasta gastasse
2 ou 3 minutos na pesquisa em si, e sua metodologia, provavelmente
seria bem mais convincente junto ao resto dos espectadores. A
política de Cortina de Fumaça é a do slogan; a tese
está lá na tela em frases picotadas e cartelas de efeito, mas
falta um olhar capaz de organizá-las num filme capaz de extrair
dali alguma força.
Janeiro de 2011
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