in loco - mostra de tiradentes 2010
Primeiro dia: Elegia
ao tarado
por Filipe Furtado
O
Gerente, de Paulo Cezar Saraceni
Num festival de cinema como Tiradentes, inevitavelmente
fala-se muito de cinema jovem. Mas nada poderia ser mais honesto
do que abrir seus trabalhos com uma obra como esta mias recente
de Paulo Cezar Saraceni. Pois se O Gerente é um filme evidentemente
crepuscular, seu desejo de cinema é de uma jovialidade que poucos
filmes de cineastas novos encontra. O que nos apaixona em
O Gerente é, primeiro, a disposição de
Saraceni em abraçar toda e qualquer idéia que lhe surgir, seja
colocar Djin Sganzerla para andar pelo centro do Rio despreocupado
com os extras descaracterizados para o filme de época, seja homenagear
Francisco Almeida Salles numa longa seqüência “gratuita”; ou ainda
colocar uma série de senhores numa festa dos anos 50
a homenagear o apoio da Petrobras ao cinema
brasileiro hoje.
A relação do filme (e do diretor) com o cinema
pode ser vital, mas ele jamais lhe pauta em
excesso. O Gerente não deve nada ao cinema,
só ao universo do seu autor – e é muito mais jovem e atual por
conta disso. É por isso mesmo que, apesar de ser sem dúvidas um
filme sobre o Rio da juventude do cineasta (no debate sobre o
filme, no dia seguinte à exibição, Saraceni fazia questão de começar
cada intervenção relembrando de que lera o conto original de Drummond
em 1952, quando ainda jogava no futebol juvenil do Fluminense),
ele jamais fede a formol como tantos outros lamentos nostálgicos.
Um pouco como nos filmes de Manoel de Oliveira, aos quais por
vezes sugere, a energia de O Gerente o envolve de uma vitalidade
própria.
Samuel é gerente de banco, muito mais interessado
na carne das senhoras da sociedade carioca do que nos juros e
créditos dos seus maridos. Fetichista, apaixonado por beijar as
mãos das suas senhoras, Samuel é progressivamente tomado por uma
compulsão canibal; beijar aquelas belas mãos já não cobrem sua
tara, é preciso mordê-las, arrancar-lhes os dedos na dentada.
Samuel é o protagonista deste mais recente longa de Paulo Cezar
Saraceni e o veterano cineasta constrói O Gerente à sua
imagem e semelhança. A primeira metade do filme é composta por
uma série de seqüências de sedução (com Ney Latorraca num trabalho
físico excepcional), e a segunda parte é marcada por momentos
de profundo mal-estar (com Ana Maria Nascimento aos poucos sufocando
toda ação). Seu universo e psicose são primeiro erguidos, para
depois sua tragédia se anunciar.
De
fato, mesmo que O Gerente tenha muitos momentos de humor,
ele é um filme de horror – aquele filme de horror tipicamente
brasileiro que Jairo Ferreira definiu tão bem como berço do nosso
cinema político mais vital e relevante. Isso é algo que fica claro
na forma como o filme equilibra o humor e o mal-estar, como quando
o psiquiatra interpretado por Paulo César Pereio oferece a Latorraca
uma série de objetos para morder, até lhe oferecer uma mão de
manequim que o gerente tenta recusar, mas não consegue resistir.
É a elegia a um tarado sem lugar, cuja forma peculiar de apreciar
a beleza só pode ser apreciada com a distância da morte (ele está
morto antes da trama começar, detalhe aparentemente irrelevante
para a narrativa, mas essencial para o tom do filme). Um tarado
que se descobre sem lugar – chega a ser exilado – e sem tempo.
Por toda a aparente nostalgia de O Gerente, estamos num
filme perdido no tempo, cuja tragédia transpassa não pertencer
a lugar nenhum. Sua agonia é menos decadentista, e mais a que
vem do reconhecimento de que sua existência só faz sentido como
cinema. Poucos cineastas seriam capazes de construir um filme
em torno de um personagem como Samuel, tarado-vampiro-antropófago,
quanto mais se identificar de forma completa; mas na sua tragédia,
Saraceni identifica a sua. Mais do que qualquer outro filme, é
O Signo do Caos, de Rogério Sganzerla, ao qual O Gerente
mais se aparenta. O Gerente e O Signo do Caos são
dois filmes de horror – porque todos os filmes honestos sobre
o cinema brasileiro serão sempre filmes de horror – que caminham
à sua própria maneira ao apocalipse. No filme do Sganzerla, é
uma condenação à danação eterna após o crime iniciar de trair
o gênio; aqui, é o auto-reconhecimento de Samuel trancado na sua
própria versão de casa assombrada, com uma mulher ao qual ele
está inevitavelmente ligado, a vida aos poucos lhe abandonando
o corpo a esperar a oportunidade da última mordida. O Gerente
é um filme de terror porque é um filme assombrado pelo mundo exterior.
Assim como seu protagonista, o longa de Saraceni reconhece o completo
desinteresse do mundo pela sua existência.
Só que se o filme de Sganzerla é um discurso direto sobre o cinema
brasileiro, O Gerente, pelos seus próprios caminhos, é
a elegia a um cinema poético e único – o do próprio Saraceni –,
que tenta, como pode, ainda existir, mas que permanece isolado
e perdido, completamente deslocado no tempo. Cinema este que segue
o nosso mais injustiçado e subestimado, obra bem maior que o duo
Arraial do Cabo – Porto das Caixas, no qual freqüentemente
é encerrada. Ao final, quando ouvimos a voz do próprio cineasta
berrando para que seus atores se apressem para o desenlace, para
que Samuel possa fazer valer sua tara uma última vez. A vitória
de O Gerente é que ele faz valer este cinema de Saraceni
mais uma vez. Deslocado, talvez; mas, a despeito de sua amargura,
um cinema jovial e vivo.
Janeiro de 2011
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