in loco - mostra de tiradentes 2010
Nono dia: Os afetos, medidos ou desmedidos
por Fábio Andrade

Elvis e Madona, de Marcelo Laffitte; e
A Falta Que Me Faz, de Marília Rocha

Elvis e Madona investe sobre um universo pop bastante presente na cultura brasileira, mas que ainda parece até certo ponto interdito a muito do cinema recente, por um certo temor antropológico ou pela busca convencional de uma beleza acadêmica. Em questões de universo, é possível aproximá-lo de alguns filmes de Pedro Almodóvar (pensemos na palheta de cores de Kika ou Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos), mas também da vital abordagem transsexual do cinema de João Pedro Rodrigues.

Mas, passadas as primeiras camadas de aparência, é perceptível a diferença. Assim como na investigação do brega por Miguel Gomes em Aquele Querido Mês de Agosto, João Pedro Rodrigues parte de uma atitude de afirmação de identidade, que nasce em Portugal com João César Monteiro: não somos mais o povo de Eça de Queiroz, mas sim o de “quero cheirar teu bacalhau, Maria” (como dizia uma das canções de Recordações da Casa Amarela). O “bacalhau” pode ser bacana, rico e belo à sua maneira, mas é preciso que ele seja olhado com honestidade e frontalidade dentro da criação artística. É preciso, como faz Miguel Gomes com a canção popular, descobrir em que lugar essa visão de mundo ainda faz sentido, para então poder encená-la com propriedade. Elvis e Madona não faz isso, e tampouco usa a negação de qualquer aderência como conflito para um impulso criativo. Resta apenas o faz de conta, a aproximação diagonal, a cordialidade e o deboche; resta apenas o kitsch, a banalização, o estapafúrdio feito classe média.

Afinal, estamos diante de um filme sobre dois homossexuais (Elvis – Simone Spoladore – e Madona – Igor Cotrim), reconvertidos em uma relação heterossexual, onde a vivência gay é vista como manancial de tiradas do humor próximo ao de um Casseta & Planeta, e o fascínio da ambiguidade travesti é feito novamente normatizado, estéril, conformado. Onde deveria haver pulsão estética, há apenas reafirmação de preconceitos, padronização das diferenças (há algo mais reacionário e míope do que um romance entre uma lésbica e um travesti?), demarcação de distâncias, e um interesse maior por uma idéia pré-concebida daquele universo do que por qualquer coisa que possa vir a emanar dele. Elvis e Madona é um pouco como um A Grande Família que troca o subúrbio carioca pelas boates gays de Copacabana, e que só consegue se aproximar desse universo deixando que as noções pré-concebidas sobre o “outro” falem mais alto do que ele mesmo.

É um filme conservador, pois não se deixa afetar, não quer ser afetado, e tem como único objetivo moldar o outro até torná-lo mais confortável, mais simétrico, mais parecido com o desejo de quem filma. Nesse sentido, é extremamente feliz que essa mesma Mostra de Tiradentes tenha exibido um belíssimo curta pernambucano sobre universo igualmente marginal, chamado Faço de Mim o que Quero, de Sergio Oliveira e Petronio Lorena. Pois Faço de Mim o que Quero se aproxima da indústria tecnobrega do Recife decidido a incorporar seus valores, e deixar que eles também incorporem o filme. Como bem salientou Francis Vogner dos Reis em seu texto na cobertura do Festival de Brasília, esse sentimento fica especialmente claro nos créditos finais, onde os nomes da equipe e o título do filme aparecem literalmente pintados na pele das personagens, fazendo diegético o não-diegético, se deixando contaminar ou, mais do que isso, percebendo que o filme também é incorporado por quem é filmado. Falta a Elvis e Madona essa disposição “de pele” que é primeira, é pré-filme, é pactual. Não há relação exógena possível quando ela não se dá dentro da tela.

A diferença que se sente ao assistir A Falta que me Faz, de Marília Rocha, fica clara logo no começo do filme: as personagens nos são apresentadas pelo momento em que marcam na pele, com uma agulha, nomes e símbolos de suas respectivas (e, mais à frente saberemos, cambiáveis) paixões. O plano é ilustrativo de uma abordagem que será predominante em todo o filme, e que determinará as relações entre a equipe e as personagens. Como em Merleau-Ponty, estar no mundo é ser alvo de afetos; viver precisa deixar marcas, sejam elas nos corpos das personagens, nas paredes, nas portas dos armários, nas árvores ou no próprio filme. Quando a experiência, em si, não deixa marcas físicas, é preciso produzi-las, expressando no corpo – e no plano – o que está impresso no espírito. Não é possível fugir dos afetos.

Oferecer-se aos afetos, de fato, é ponto de partida. A Falta que me Faz converte essa disposição em uma política de encenação. Há dois momentos especialmente ilustrativos. Em um deles, ouvimos Priscila contar que Valdênia roubou seu namorado. Quando ela conta isso para a câmera, sentada à beira de um lago, ela arremessa constantemente pedras para o extracampo. Esses elementos que a personagem joga para fora do quadro não só denotam uma enorme soberania em sua relação com o filme, como reproduzem a determinação das meninas em deixar isso fora do filme, pois está fora da relação delas (Priscila e Valdênia voltaram a ser amigas depois do episódio). Um limite é imposto, da personagem para a câmera, e da câmera para a personagem. Em outro momento, uma das garotas fala sobre a morte do pai. Sentada de costas para a janela, seu rosto está completamente escuro, encoberto pelas sombras. O chiaroscuro confere uma solenidade doída à cena, que é quebrada sempre que a menina volta o rosto para a luz, e percebemos que ela está sorrindo.

Vem daí um dos maiores trunfos do filme: perceber a ambiguidade daquelas situações, daqueles sentimentos e daquelas personagens, e tentar reconstruir essa ambiguidade cinematograficamente. A Falta que me Faz é um filme raro por se lançar no desafio do óbvio: uma vez que se percebe um sentimento que diz íntegro respeito ao mundo (que, no caso, é ainda mais fortuito por ser um documentário que encontra seu tema quase casualmente), é preciso buscar maneiras de representá-lo, de devolvê-lo ao mundo de forma potente, de restaurar o seu sentido em imagem. Importa menos que se ame este ou aquele rapaz, e é natural por isso que eles sejam quase deixados fora do filme. Afinal, é possível acreditar em casamento de conveniência e, ao mesmo tempo, desejar rasgar o nome de cada namorado no próprio corpo. O que interessa é justamente a vontade de se marcar, de viver intensamente cada experiência – cada paixão, cada tentativa de suicídio – e perceber que o todo (a vida das meninas e do filme) é constituído por essas marcas, esses rasgos, que só nos chegarão inteiros se acontecerem, também, dentro da cena.

Marília Rocha parece chegar a A Falta que me Faz livre de si mesma. Enquanto Aboio respondia diretamente a todo um repertório visual consolidado pela Teia, e Acácio parecia ter como preocupação central justamente se distanciar o máximo possível dessa origem, A Falta que me Faz vem com o vento, entregue ao mundo que filma e à tarefa de captá-lo em toda a sua complexidade. A diretora se coloca diante de um mundo potente (quatro moças adolescentes que moram na cidade de Curralinho, no interior de Minas Gerais) e a filmagem responde a esse mundo, seja estabelecendo relações visuais entre as personagens e a geografia do lugar, criando sentidos que não estão na imagem bruta natural (e há de se destacar a quase mística capa prateada da fotografia de Alexandre Baxter e Ivo Lopes Araújo no filme – que, junto com o curta A Montanha Mágica, de Petrus Cariry, confirma Ivo como um dos fotógrafos mais instigantes do cinema recente brasileiro), seja deixando-se contaminar por aquele universo, em uma intimidade de mão dupla que faz as personagens questionarem a equipe – com curiosidade pelo mundo distante (mesmo que, ali, tão próximo) que ela representa.

Janeiro de 2010

editoria@revistacinetica.com.br


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