in loco - mostra de tiradentes 2010
Sétimo dia: Ecoando no vazio por
Fábio Andrade
Mulher
à Tarde – de Affonso Uchoa; e A Falta Que Nos Move, de Christiane
JatahyMulher
à Tarde parte da idéia de instante pregnante, que é tirada não exatamente
do cinema, mas da pintura e da fotografia: o recorte de uma pose dentro de uma
duração de instantes quaisquer, que é o momento que, idealmente, expressa a essência
do que se dá nessa duração. Entrecortado por cartelas que parafraseiam os títulos
descritivos tão comuns na pintura (Mulher com o sol sobre os joelhos; mulher
deitada; etc), Mulher à Tarde usa o cinema para dar acesso justamente
ao que está ausente das pinturas: a maneira como a sucessão de instantes quaisquer
conduz à fixação de um deles como um instante pregnante. Ao fim de cada parte,
a ação das personagens desemboca naquela que intitulava sua respectiva parte,
e somos conduzidos a uma nova ação. O instante pregnante vem carregado por aquilo
que antecede a pose, e é reconfigurado na migração da pintura para o cinema. É
bastante natural que um filme primordialmente interessado pela duração dos movimentos
se estruture como Mulher à Tarde: sequências de longos planos em tableau
que nunca permitem o contraplano, e que acompanham as personagens no decorrer
de suas ações dentro do espaço. É perceptível um forte rigor na composição dos
enquadramentos e da luz, além de uma direção de atores de notável limpeza, que
se concentra em frases murmuradas e gestos desnudados de maior expansão. A predominância
do foco pontual traz outros paralelos com a pintura, onde o desfoque do fundo
evoca pinceladas impressionistas, e a rarefação pixelar do vídeo, acentuada pelo
trabalho de foco, por vezes faz pensar no atomismo de Seurat, onde as figuras
humanas parecem prestes a evaporar no ar. O gosto pelo prosaico acentua o esvaziamento
da cena, onde se limpar com um pano molhado se torna um ápice dramático, e o silêncio
é tão palpável que uma das personagens consegue ouvir o barulho emanado pelos
objetos. Até
aqui nos concentramos na pedra fundamental conceitual de onde parte o diretor;
mas o cinema é composto de filmes, portanto é preciso olhar menos para o raciocínio
gerador e mais para a obra que ele alimenta. Mulher à Tarde se quebra justamente
nesse salto do conceito ao filme. Assim como acontecia em medida mais leve com
Terras, de Maya Da-Rin, o contato proposto pelo filme vem mais pelo entendimento
do que pela sensibilidade. As linhas de roteiro que costuram os quadros (a onipresença
da água; a parede que deixa marcas na menina, e a menina que deixa marcas na parede;
a lembrança desaparecida na caixa de fotografias que remetem às composições em
still preponderantes no filme) não são suficientemente fortes para transformar
essa sucessão em algo mais do que uma repetição, e a repetição por si só não produz
qualquer estímulo que já não estivesse contido em uma única parte. E
se tivéssemos apenas uma das poses, em vez das várias que estão no filme? Apreendemos
algo da duração e do acúmulo que já não pudesse ser apreendido diretamente de
um dos vários fragmentos que compõem o filme? Mulher à Tarde deixa que
essas inquietações ecoem no silêncio mole e um tanto enfadonho de sua duração,
tão dedicado à beleza de planos que não são suficientemente belos, e reticente
em relação a sentimentos que não parecem realmente estar ali. O que sobra é essa
relação fria e um tanto acomodada com uma idéia que parece se perder antes mesmo
de se materializar, e que sufoca a fagulha inicial que lhe conferia algum brilho
com uma morosidade rigorosa e um desejo desmedido de querer dizer mais do que
realmente se tem a dizer. Esse
processo de esvaziamento que vemos no filme de Affonso Uchoa acontece, por vias
inversas e improváveis, também em A Falta Que Nos Move, de Christiane Jatahy.
Mais uma vez, temos aqui um projeto conceitual e a necessidade de escancará-lo,
para então realizar um filme a partir desse primeiro dispositivo. O assustador
de A Falta Que Nos Move é que, mesmo abundante de palavras, gestos e falsas
situações, é impossível afastar o sentimento de que tudo que vemos
em tela atesta apenas sua própria falência. Em um filme supostamente preocupado
com as políticas da cena (metalinguagem, processo, dispositivo, auto-ficção –
todos os conceitos do momento parecem alimentar o filme e rendem frases como “Eu
prefiro estar aqui do que na realidade”), é deprimente que tudo desemboque em
uma hiperinflação do banal absoluto como matéria dramática, onde a simples impossibilidade
de se jantar na hora que se quer (por conta de uma obstrução da diretora) se torna
um grande drama existencial. A Falta Que Nos Move é uma espécie de Seinfeld
sem humor, onde a política aparece reduzida a confrontos de ridícula banalidade,
mas que aqui são levados a sério, alçados ao panteão dos grandes temas. A Falta
Que Nos Move parte da mesma política de encenação que já serviu a filmes como
Iracema e A Lira do Delírio, mas a dilui a ponto de sobrar não mais
que uma euforia desmedida pela neurose (das personagens e da diretora). O que
resta é esse cinema que corre atrás do rabo falso que ele próprio colara em suas
costas. Janeiro de 2010editoria@revistacinetica.com.br
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