in loco - mostra de tiradentes 2010
Sexto dia: Quebrando o isolamento
por Fábio Andrade

A Alma do Osso, de Cao Guimarães

Num ano em que a produção contemporânea exibida em Tiradentes aparece, em larga escala, paralisada por uma angústia e um isolamento de origens imprecisáveis, é providencial que A Alma do Osso, filme de Cao Guimarães originalmente lançado em 2004, tenha uma sessão especial bem no meio da programação. Pois logo nos primeiros minutos percebemos que o filme acompanhará de perto uma personagem que leva esses sentimentos ao extremo absoluto, vivendo desligado da sociedade, com uma série de rituais próprios e regras de conduta que lhes são exclusivos, particulares e claramente operativos. Existem, porém, diferenças essenciais que levam A Alma do Osso bem adiante do poço movediço onde tais filmes normalmente ambicionam chegar, e que Cao Guimarães continuaria a trabalhar posteriormente em Andarilho – mudando o recorte do social para o topográfico.

Passamos a primeira metade (ou mais) do filme acompanhando o protagonista eremita, e a câmera constrói sinais que evidenciam o quão extremo é este isolamento. Até aí, o filme de Cao parece não querer mais do que acompanhar essa personagem, apresentando-a em um retrato, se não exatamente exotizante, que a recorta por sua gritante singularidade. O processo é esgarçado até se acumular nos ossos do espectador, para então ser substituído pela palavra. O esgarçamento é essencial para sentirmos o valor dessa fala, dessa opção por abrir a boca em um mundo dominado pelo silêncio. A personagem conta a história de um homem que sonhava estar predestinado a morrer atingido por um raio, e que construiu uma casa de metal para se proteger. Teríamos ali uma possível explicação para a maneira como a personagem vive, mas depois nos é apresentada – na secura dos cortes – a experiência que gerara a fabulação: a personagem começa a falar de quando fora internado em um hospital psiquiátrico e passara por um tratamento de choques elétricos.

O que Cao Guimarães realiza é uma sucessão centrífuga de procedimentos: a situação da personagem confere sentido à sua fabulação, que tem significados determinados por uma situação anterior. Há, portanto, o ímpeto em localizar a origem do isolamento, como se o cinema ganhasse uma capacidade legista de olhar por dentro do outro com seus próprios olhos. Importa menos o sentimento ou o estado, e mais o que ele pode revelar sobre o mundo que o obriga a se manifestar. Com isso, temos uma sutil inversão de linearidade que, mesmo sendo do tempo da vida (e não do tempo cinematográfico), só pode ser realizada pelo cinema. Não basta, portanto, perceber a crise, pois ela só interessa enquanto reveladora do sujeito e do mundo; é preciso rasgá-la ao meio, derrubá-la de seu trono, proporcionando – com o encontro com a platéia que ouve, em tela, a lenda contada pelo protagonista – a chance de ela ser reparada.

Mais extraordinário, porém, é que essa reparação, essa reconexão com o mundo, não só será proporcionada pelo cinema, mas virá literalmente dentro dele. Próximo ao final do filme, o velho ermitão mostra para o diretor o lugar exato onde ele esconde um canivete e uma sacola de dinheiro (sua força, seu ouro, sua fortuna). Mas não apenas mostra; puxa a mão do diretor para dentro do quadro, obrigando-o a fazer contato direto com o mundo que filma, a se materializar dentro da imagem, a habitar a cena e se responsabilizar por este segredo, este encontro, esta troca. A conexão é de mão dupla: de dentro para fora, e de fora para dentro. Cao Guimarães retribui a confiança, mostrando ao velho as cenas que ele vinha filmando. Esse final é extraordinário, pois derruba uma infinidade de falsas máximas que pairam sobre o cinema contemporâneo – da defesa bufa da inutilidade da arte, à poesia que esvazia o que filma em mera dança de formas visuais – e que muitas vezes foram, erroneamente, associadas ao cinema de Cao Guimarães. Não confundamos, porém, a atenção para com as rachaduras do espírito com a reparação sociológica das ONGs e da arte enquanto terapia ocupacional. O que vemos aqui é uma consciência aguda de finalidade que, antes de ser afirmada dentro do plano, se realiza na própria existência do filme: há uma fratura no homem e a arte é capaz de repará-la. A Alma do Osso é um filme que nunca nega ou subestima o tamanho de suas responsabilidades.

Janeiro de 2010

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