in loco - mostra de tiradentes 2010
Quinto dia: Entrando em movimento por
Fábio Andrade
Já
não é nada nova a impressão de que o cinema mais impactante produzido no Brasil
recentemente acontece em filmes de curta metragem. No quinto dia desta Mostra,
ao menos quatro filmes vieram confirmar essa percepção: o aterrorizante Nego
Fugido, de Cláudio Marques e Marilia Hughes; Tchau e Benção, de Daniel
Bandeira; uma revisão mais forte de Não me Deixe em Casa, de Daniel Aragão;
e principalmente Handebol, de Anita Rocha da Silveira. O filme de Anita
teve sua primeiríssima sessão aqui na Mostra de Tiradentes, e são deles os planos
mais marcantes vistos em todo o festival. Ambos, filme e constatação
sobre a força da leva dos curtas, serão objeto de uma pauta na revista
bastante em breve.
Estrada para Ythaca,
de Luiz Pretti, Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes Estrada
para Ythaca é, até agora, a obra que melhor serve à idéia de “paradoxo” que
aparece como mote desta Mostra, pois esse é um sentimento incorporado na própria
realização. O filme dos irmãos Pretti e dos primos Parente se equilibra em uma
construção que parte de um sentimento paradoxal da arte frente ao mundo, e o fato
de os diretores serem os próprios atores gera uma camada a mais neste processo,
que abre um duplo dentro da própria encenação: capturar os sentimentos das personagens,
mas deixando que a filmagem seja regida por sentimentos que são opostos aos vividos
por elas no filme. Pois Estrada para Ythaca parte de um evento triste (as
quatro personagens principais tomam a estrada para tentar superar a morte de um
amigo), mas opta por filmar esse processo de recuperação com visível alegria.
Os diretores chegam a um filme de tom peculiaríssimo justamente por essa contraposição
que se dá dentro do plano, onde a melancolia nunca é só melancolia, o humor nunca
é só humor, e o sentimento emanado do filme vem justamente dessa fricção, desse
paradoxo produzido. “O
fracasso lhe subiu a cabeça”, diz uma das personagens. Estrada Para Ythaca
é feito dessas pequenas inversões que, no filme, são atingidas por essa inadequação
entre o olhar e a ação, não muito distante em tom (embora completamente diferente
em todos os outros aspectos) da alegria triste do cinema de Wes Anderson, Aki
Kaurismaki ou Roy Andersson. Essa idéia de paradoxo se dá, também, em aspectos
formais. Estrada Para Ythaca dedica enquadramentos de grande sobriedade
e rigor para situações muitas vezes encenadas de forma esdrúxula e alucinada.
Há, por exemplo, uma estranheza nas opções de enquadramento do filme que parece
vir da convivência de um rigor visual bastante claro com a incorporação de supostas
“imperfeições” – como um excesso de teto quase sempre constante que privilegia
um espaço grande acima das cabeças das personagens, sem com isso gerar um sentido
que vá além do estranhamento visual. O esgarçamento da duração
dos planos vem dentro desse recorte, onde o banal é feito iconográfico e o iconográfico,
banal – como a citação de Glauber Rocha em Vento do Leste, de Jean-luc
Godard, ou mesmo a opção por manter, na montagem final, um plano em que os atores
quase derrubam ao chão a câmera que faz a filmagem. À exceção de uma sequência
de choro mais clara, a melancolia é filmada em uma troca de pneus, uma refeição
à beira de estrada, uma dança ritualística e patética frente os faróis do carro.
Essa banalidade é aliada a uma dose providencial de irreverência, que faz com
que assistir Estrada para Ythaca seja uma experiência sempre curiosamente
leve, entretida em si mesmo. É
interessante também que, mesmo realizado no muque, Estrada para Ythaca
nunca se torna um filme de processo. A força das situações vem, em grande medida,
da consciência plena dos diretores de o que elas deveriam significar internamente
(mesmo que o significado venha com a intenção de confundir), e de como cada cena
se relaciona com o todo. Isso pode ser visto tanto na consciência bastante clara
de como a câmera deve se relacionar com as personagens, quanto na opção em realizar
o filme com dois formatos de tela diferente. O aspecto físico do cinema ganha,
ali, sentidos de construção definidos, onde a tela parece se alargar ou se estreitar
a partir do que ela está filmando, consciente de como esse aspecto material pode
potencializar as sensações que o universo construído deve emanar: o enquadramento
primordial em 1.33:1 ressalta um isolamento das personagens na paisagem, enquanto
os momentos em 1.77:1 abrem a panorâmica para o mundo e o que está ao redor das
personagens. Mas existe, também, um lado problemático
nessa consciência cinefílica que por vezes parece desnortear Estrada para Ythaca.
Pois há, no filme, uma preocupação pontual, mas ainda assim reveladora, de se
situar com excessiva consciência dentro da história do cinema, que por vezes parece
mais forte do que a dedicação em criar uma obra de impacto autônomo. Esse sentimento
de orfandade cinematográfica (o amigo morto é o mesmo que reaparece como Glauber,
apontando os caminhos do cinema de aventura e do desconhecido, e do cinema do
terceiro mundo, divino e maravilhoso) é o que move as quatro personagens/diretores
em suas jornadas pessoais de cinema – e aí é muito revelador que, embora essas
jornadas sejam filmadas separadamente, sem grande interação entre os protagonistas,
ao fim eles aparecem reunidos no quadro e no cinema, o que dá um forte aspecto
de “carta de intenções” a Ythaca. Essa preocupação é problemática na medida
em que ela se torna fim, e parece colocar o raciocínio crítico e historiográfico
à frente da sensibilidade artística, na tessitura de cada plano, na possibilidade
de criar uma obra mais propriamente desestabilizadora. O que existe é mais uma
afirmação para dentro, algo que já acontecia, em maior escala, em Longa Vida
ao Cinema Cearense, dos irmãos Pretti, e que entra pelas frestas de Estrada
para Ythaca, por vezes desmentindo a citação final de que, na viagem, o caminho
era mais importante que o destino. Estrada para Ythaca funciona como um
bom impulso, um necessário empurrão que dá início ao movimento, e deixa a sensação
de que filmes menos comprometidos virão quando os realizadores, mesmo se encontrando
ao longo do caminho, forem em busca de Ythacas particulares, uma diferente para
cada um deles. Janeiro de 2010editoria@revistacinetica.com.br
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