in loco - mostra de tiradentes 2010
Quarto dia: Ao singular por
Fábio Andrade
Terras,
de Maya Da-rinHá
uma razão clara para que Terras, longa de estréia de Maya Da-rin que marca
o início da mostra Aurora aqui em Tiradentes, tenha seu título no plural. A diretora
trabalha pela fragmentação temática e estilística, onde as fronteiras entre as
nações são tão importantes quanto as texturas da natureza, e a entrevista é tão
permitida ao filme quanto a observação distanciada, ou a estilização poética amineirada
(pensando, aqui, em certa produção da Teia, por exemplo) do que é documentado.
De certa maneira, Terras funciona como um amplo apanhado de diversos caminhos
e cacoetes do documentário brasileiro moderno, com subtextos que vão de Coutinho
a Marília Rocha com uma certa desenvoltura, herdando virtudes e problemas de tudo
que lhe cativa. Mas há algo nessa opção pelo plural que parece ricochetear, pois
o que existe de mais interessante no filme de Maya Da-rin é justamente o processo
de reconstituição de algo singular (no sentido de número, não de especialidade)
a partir desses fragmentos. Isso acontece não só pela maneira como esse apanhado
estilístico rende um filme que, ao fim, nos parece realmente uno, mas também pela
maneira como a dispersão temática restaura a unicidade do termo que conecta todas
as suas facetas. “Terra” é a palavra que une planos aparentemente
tão distantes quanto o de um barco que se coloca na região fronteiriça de países
diferentes, e os inserts das ranhuras do terreno e as cascas de árvore
feitas irreconhecíveis em sua forma externa, filmadas em apertado close.
A operação mais valiosa de Terras é justamente a de reduzir essas ambiguidades
em nome de uma nova ótica, fazendo com que questões aparentemente distantes possam
ser resolvidas mais facilmente uma vez que percebidas como parte de uma mesma
palavra: terra. É por isso que a fala da índia Basília rende os melhores momentos
do filme, pois
apresenta com clareza e admirável simplicidade os sentidos dos procedimentos da
diretora: se pensássemos na terra como nossa mãe, admitiríamos a idéia de reparti-la
em pedaços que pudessem ser distribuídos às pessoas? Basília não fala apenas da
terra geográfica, e é possível dar um salto desse raciocínio para chegar a algo
mais essencial: e se voltássemos a pensar “terra” no singular, obrigando com que
as questões de fronteira sejam tratadas juntamente às relativas ao caráter material
da terra (sua cor, textura, constituição, cheiro, relevo), às relações afetivas
estabelecidas com ela, à sua razão etimológica? Pensaríamos diferente se não esquartejássemos
a palavra (ou, por fim, a idéia) em tratamentos que, mesmo quando intimamente
ligados, são encarados como porções isoladas e que não se atravessam? E se pensarmos
tudo isso como “terra”? E se conseguirmos desemaranhar o documentário de todo
seu discurso de “escola” e de “tradição”, e pensássemos uma filmagem apenas como
uma filmagem, livre de quaisquer amarras? A palavra, mais
do que uma limitação (lembremos de Brakhage e o garoto imaginário que vê um gramado
sem conhecer o conceito de “verde”), se torna mais propriamente um “limite”, pois
é ela quem determina o que está representado por ela, e o que não está representado.
Ela é a fronteira do sentido, e Terras não parece ser um filme reticente
em relação às fronteiras, mas sim ao que as tem determinado. É hora de mudar o
referencial. Daí um dos momentos mais fortes do filme ser justamente o musical,
quando, em uma pista de dança, ouvimos uma canção cuja letra parece conectar o
inconectável, sem funcionar a partir de uma matriz cartesiana. Terras trabalha
pelo resgate dessas conexões que, remontadas a uma mesma idéia, permitem o surgimento
de novos pontos de vista. O território não mais se separa da terra, assim como
a palavra não se separa da fala, e a fala não se separa do corpo – daí a eloquência
de Basília, que se expressa tanto pelas palavras quanto pela mímica, pela performance
que representa com seus braços e seu rosto. O que está em jogo, para o filme e
no filme, é proporcionar este retorno à idéia, que é aquilo que costuma se chamar
de organicidade. Janeiro de 2010editoria@revistacinetica.com.br
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