in loco - mostra de tiradentes 2010
Terceiro dia: Menos aqui, mais ali por
Fábio Andrade
Natimorto,
de Paulo Machline; e Os Famosos e os Duendes da Morte, de Esmir FilhoNatimorto
é um filme sobre maneiras arbitrárias (como o são todas) de se conferir sentido
à vida. Lourenço Mutarelli, autor do texto-base e ator principal do filme, interpreta
um protagonista que busca, desesperadamente, ancorar seu cotidiano em bases simbólicas
que lhe preencham de alguma possibilidade mística: as histórias de infância, o
tarô, as fotos dos maços de cigarro. Os sentidos estão no sujeito; falta-lhe a
matéria para trabalhar. Simone Spoladore é a musa, a dona do canto inaudível,
o espírito de ouvido atento que se deixa encantar pelo misticismo de Mutarelli.
Temos, aí, uma equação para a realização artística: a mulher aparece como representação
de uma matéria bruta, de um encantamento raro que só é percebido (no caso, ouvido)
pelo artista que, por sua vez, toma para si a missão de lhe modelar e lhe emprestar
sentidos que – mesmo por razões muitas vezes tão absurdas quanto o determinismo
de humores das advertências dos maços de cigarro – lhe apontam uma finalidade
para sua existência (lembremos que Mutarelli é um caça-talentos). Melodia e letra.
Quando esquiva a essas projeções, a matéria bruta volta a ser matéria bruta –
ou, em outras palavras, alvo para tomates. Cria-se, com isso, uma relação de interdependência
para que possamos acessar os sentidos de uma obra (um quarto de hotel e o projeto
de se trancar nele por 6 anos – a obra como espaço a abrigar e ser habitado por
uma idéia) que não está em um, ou no outro, mas justamente no pacto entre essas
duas entidades. Existe, no filme, uma estrutura clássica
de kammerspiel – algo que, por si só, invariavelmente esbarra na mise
en scène do teatro – com o confinamento absoluto em um único cenário e os
poucos personagens. Uma vez instalados dentro daquele quarto de hotel, não mais
teremos acesso ao exterior – escolha que traz, ao filme, uma fidelidade canina
ao ponto de vista de seu protagonista. Esse ponto de vista, porém, esbarra sempre
em uma face escura, um lado da personagem que escapa à câmera e a nós: por mais
grudado que estejamos nele, não somos capazes de ouvir o canto de Spoladore. Esse
canto é só dele, é a beleza que só ele é capaz de identificar em um objeto, e
que só ele é capaz de trazer para a superfície. É a percepção única que faz dele
um artista. “Você deveria escrever um livro”, diz a personagem de Spoladore diversas
vezes ao longo do filme. A matéria olha para as mãos do artista e sussurra (com
constante ambiguidade sexual): molde-me. Mas
há, no filme de Paulo Machline, uma matéria a ser moldada (o texto de Mutarelli,
o decór, os atores), e há a forma determinada pelos dedos do diretor. Natimorto
sustenta um interesse bastante íntegro pela força dessa matéria bruta, mas parece
emperrar sempre que ela deixa de ser literatura filmada (ou teatro filmado), e
ambiciona realmente ser cinema. Pois Machline parece não ter consciência de que
reproduzir o incômodo não é mesmo que filmar cenas que todos compreenderão como
bandeiras de incômodo (Mutarelli ao chão, em posição fetal, coberto de vermes
e baratas, por exemplo), mas sim fazer com que este incômodo seja transferido
para o espectador na fruição dessas imagens. Daí o constrangimento pela aplicação
irrestrita de jump cuts em todo o esvaziamento que décadas de maus clipes
na MTV lhe agouram, e dessa sucessão de imagens esvaziadas de incômodo em vinhetas
que tentam, em vão, trazer à superfície a crise do protagonista. Natimorto,
portanto, traz essa sensação latente de que, mesmo quando nos interessamos por
todo o universo que vemos na tela, não há muito na maneira de filmá-lo que torne
esse interesse realmente cinematográfico (na verdade, há diversos momentos em
que a abordagem da direção trava por completo esse contato). Em
certo momento do filme, porém, a assexualidade da personagem de Mutarelli é confrontada
pela maneira como Machline filma uma sequência específica: vemos Spoladore sair
do banho, no fundo do quadro, e quando Mutarelli se aproxima dela, temos um breve
momento de nudez. Ele sai de perto dela, e leva consigo o foco da câmera – que
apenas passara pelo corpo da atriz no momento em que sua toalha caia. Com Mutarelli
em primeiro plano, falando sobre o esforço de ignorar seu instinto sexual, vemos
Spoladore ao fundo, desfocada, como se essa imagem permanecesse presente nos porões
da mente do protagonista. Ali, temos um raro momento de Natimorto em que
as particularidades do cinema são usadas para acentuar uma sensação da cena, e
não apenas descrevê-la visualmente. Se
o filme de Paulo Machline traz essa sensação de que há cinema “de menos” ali,
é possível dizer exatamente o contrário do longa de estréia de Esmir Filho, Os
Famosos e os Duendes da Morte. Pois Esmir parece quase que exclusivamente
preocupado em filmar o cinema, mas apenas no que lhe tange enquanto um meio –
algo que aparece expresso tanto no cuidado constante com a textura da imagem,
quanto na inserção das plataformas sociais de internet ao longo do filme. As personagens
de Os Famosos e os Duendes da Morte são como uma colcha de retalhos cerzida
a partir dessa fragmentação múltipla, onde pedaços de gente se espalham pelo Flickr,
o Youtube e os blogs pessoais, mas também por Gus Van Sant ou Bob Dylan. Não
é, porém, da mediação que vêm os maiores problemas de Os Famosos e os Duendes
da Morte, afinal, a ela já foi combustível para inúmeros belos filmes. Os
problemas realmente graves parecem condensados em um plano específico do filme:
em um dos vídeos realizados pelas personagens-fantasmas lembradas pelo protagonistas,
uma delas pega um plástico furta-cor e coloca sobre a câmera. O plástico gera
uma deformação das cores dentro do próprio plano, mas ela não produz qualquer
sentido para além da superfície cromática. A postura dessas personagens é muito
como a de Esmir (que, afinal, conversa com elas pelo MSN durante o filme): seu
interesse repousa apenas nessa mediação, nessa possibilidade de filtrar o mundo
para torná-lo um pouquinho diferente – mas por uma diferença que é apenas cosmética,
pois nunca penetra além da superfície. Até mesmo a presença ostensiva da internet
naquele universo vem mergulhada nessa futilidade, pois, ao contrário de um filme
como Não Me Deixe em Casa, de Daniel Aragão, ela vem como um índice de
significados automáticos, e não como meio para se aproximar de um mundo que respira
frente à câmera. O que se percebe, no desenrolar de Os Famosos e os Duendes
da Morte, é que os meios não ajudam o filme a se aproximar do que está diante
de câmera, mas porque talvez não haja, de fato, nada diante da câmera. Não há
trama, não há clima, não há filme; o que existe é apenas um inventário de poses
que parece ter como Deus imagético supremo os anúncios da Urban Outfitters – mas
esse inventário em nada questiona ou esmiúça essas instâncias de registro, de
maneira que busque compreender o que as constitui. A
inventiva fotografia de Mauro Pinheiro Jr e alguns poucos momentos fortes de dramaturgia
(em especial nos primeiros vinte minutos) se perdem nessa obsessão pelo congelamento
no clichê posado, onde uma cena de masturbação se torna uma grotesca fuga para
o onírico, e qualquer possibilidade de fazer vida brotar é sacrificada pela vontade
irreversível de se filmar um suicídio belo. Muito como o equivocado discurso em
torno de Karim Ainouz como um cineasta do “carinho pelas personagens”, é de grande
cegueira que este filme de Emir Filho venha envolto por um suposto interesse pelo
“universo adolescente”. O interesse, aqui, é tão somente de natureza metalinguística:
como filmar adolescentes nos confins do Rio Grande do Sul de forma cool?
Nesse sentido, é interessante que Os Famosos e os Duendes
da Morte seja exibido, em Tiradentes, no mesmo dia de Morro do Céu,
de Gustavo Spolidoro. Pois mesmo imperfeito, o filme de Spolidoro entende que
se preocupar com o cinema é, antes de tudo, pensar como ele deve reagir ao que
se escolheu colocar diante dele (mesmo quando, no caso de Morro do Céu,
ele não saiba exatamente como reagir). Esmir Filho parece nunca olhar além
dos filtros colocados em frente à lente; com isso, perde a referência que lhe
é essencial. Talvez pareça contraditório que, há um ano atrás, eu escrevia um texto aqui em Tiradentes que defendia
a atenção justamente a essa filtragem feita pelo cinema em Vida, de Paula
Gaitán. A diferença é que, lá, esse filtro é o que permitia que acessássemos o
mundo daquela personagem com a consciência de que vemos um encontro; aqui, o que
temos é o autismo absoluto, a alienação de quem insiste em fazer o outro evaporar
em virtualidade. Janeiro de 2010editoria@revistacinetica.com.br
|