in loco - mostra de tiradentes 2010
Segundo dia: Uma explosão arquelógica
por Eduardo Valente
Dzi
Croquettes, de Tatiana Issa e Raphael Alvarez
Logo
que começa a traçar a história da trupe teatral que dá título ao filme, Dzi
Croquettes parece se munir de uma arma bastante hiperutilizada pelo documentário
“informativo” (o que ele nunca deixa de ser, como já transparece a abertura com
um rápido resumo dos pontos principais da relação da ditadura militar brasileira
com a produção artística do momento): o apelo às “autoridades” que tanto legitimem
aquilo que se diz, como principalmente que emprestem rostos conhecidos para a
divulgação/empatia do filme junto ao público. Assim, nem com cinco minutos de
duração, já tivemos a indefectível presença de Nelson Motta na tela (sempre presente
em qualquer documentário sobre música brasileira – e curiosamente sempre sentado
à frente do trabalho de Oiticica que ostenta na parede da sala de sua casa)
e ainda um desfile que passa por Geraldo Carneiro, Marilia Pêra, Pedro Cardoso,
Betty Faria – ou seja, vários dos “suspeitos usuais”.
Ante estes rostos
da autoridade e as mesmas velhas imagens de arquivo da repressão política nas
ruas do Brasil, talvez seja inevitável para muitos nestes cinco minutos iniciais
uma impressão inicial que passe pelo enfado pelo já visto, ou até (e principalmente)
o desinteresse firme por um uso de ferramentas tão banalizadas de construção documental.
Pois quem abandonar o filme aí (seja no sentido prático
ou perceptivo) perderá a chance de descobrir que estas mesmas ferramentas (entrevistas
com nomes célebres e uso de material de arquivo) serão viradas de cabeça para
baixo, ganhando um sentido completamente inesperado, além de absolutamente engajante.
Sim, porque o filme logo deixa claro que todos aqueles nomes já mencionados, e
uma verdadeira legião de outros que surgirão em cena (indo de Jorge Fernando,
Miguel Falabella e Cláudia Raia a Liza Minelli e Gilberto Gil), não aparecem aqui
nunca como autoridades distanciadas e/ou legitimadoras, mas sim como aquilo que
verdadeiramente são em relação ao objeto do documentário: quando não parte integrante
dela, direta e profundamente envolvidos com a história do grupo (caso de Faria,
Minelli, Fernando); pessoas cujo trabalho artístico foi radicalmente alterado,
influenciado ou simplesmente iniciado mesmo pelo contato com os Dzi Croquettes.
Logo perceberemos que, no fundo, todos eles estão ali antes de tudo como tietes
– para usarmos uma expressão cara ao filme e ao grupo.
Esta
mudança de registro dos rostos conhecidos e dos seus depoimentos, passando rapidamente
de autoridades para tietes, dá a chave da verdadeira força de Dzi Croquettes,
o filme: seu afeto transbordante por aquilo que tenta documentar. Em parte este
afeto pode ser compreendido pela relação pessoal direta da diretora Tatiana Issa
com os personagens, explicitada pelo filme de maneira bastante tateante, sem saber
direito como adicionar este dado à sua narrativa. Mas, na verdade, logo fica claro
que esta explosão de afeto vem da fonte, do próprio grupo e do seu entorno, da
maneira como misturavam vida pessoal (onde o termo justo talvez fosse “vida coletiva”)
com prática artística e presença no mundo. Construir esta atmosfera de um afeto
quase desmedido não é a menor das qualidades do filme, e é de fato o que permite,
por exemplo, que depoimentos de personagens que choram ou engasgam em cena pareçam
tão naturais quanto o momento em que Betty Faria levanta do sofá para fazer movimentos
de dança. Parece que para falar de Dzi Croquettes os personagens do filme precisam
se colocar num estado à flor da pele, como o filme nos deixa sentir que era a
presença deles – no palco, e no mundo. Este estado à flor
da pele trabalha tão a favor do filme que permite que mesmo seus equívocos – ou
melhor seria dizer sua confusão – pareçam comoventes. Porque Dzi Croquettes
é, sem dúvida, um furacão bagunçado de informação, de formatos, de idéias mais
ou menos desenvolvidas. Isso é algo que já começa pela citada maneira bastante
desengonçada como incorpora uma primeira pessoa radical no registro, mas que se
espalha por várias das escolhas formais do filme, como as vinhetas musicais que
separam o filme em partes em determinados momentos. Parece em cada uma destas
situações que Dzi Croquettes está o tempo todo no fio da navalha: ao mesmo
tempo em que quer se soltar de todas as amarras para poder gritar aos quatro ventos
sua admiração e amor pelo grupo e sua história, o filme eventualmente se lembra
de obrigações externas a esta emoção primária, como a necessidade
de informar, de narrar com uma mínima ordem a história destas pessoas e suas circunstâncias.
Com isso o filme avança num ritmo deliciosamente esquizofrênico: paradas, mudanças
de direção, explosões de informação. Algo entre o fluxo de consciência (particularmente
bem encarnado pelos momentos em que diferentes entrevistados vão completando as
frases dos outros, ou repetindo coisas já ditas) e o medo de perder a capacidade
de comunicar sua história para um outro. Sim, porque fica
claro no filme que esta dimensão de eternizar a narrativa destas vidas é tão vital
para os realizadores quanto qualquer outra coisa. Há o sentimento aqui de uma
urgência, de contar esta história antes que ela se perca – como aparentemente
já se perdeu em grande parte para as gerações mais novas. Neste sentido, o uso
das imagens de arquivo dentro do filme é exemplar, até pelo fato destas imagens
estarem em suportes deteriorados que têm uma leitura quase arqueológica: parece
que aquelas imagens saem de baús escondidos, de tempos bem mais distantes do que
os 40 anos que nos separam delas, e que corriam risco
real de sumirem a qualquer momento, apagando a passagem daqueles espetáculos e
daquelas pessoas pela Terra. Este risco de extinção parece um sentimento particularmente
autêntico pelo fato das circunstâncias históricas e pessoais terem sido tão devastadoras
com o grupo, matando em menos de quinze anos nada menos do que oito dos treze
membros originais - a grande maioria deles em idade absolutamente precoce. E,
por mais cheio de energia e amor pela vida que o filme seja, também não se pode
negar que ele caminha inexoravelmente para a Morte – algo que podemos pressentir
desde o começo tanto pelo recorrente uso de imagens de arquivo para falar de uma
série de personagens como pela maneira embargada como se fala deles no filme.
O fato é que, se Dzi Croquettes faz questão de firmar, literalmente
desde o começo, a trajetória deste grupo como representativa do
seu momento histórico, talvez o confronto com a AIDS seja algo até
mais significativo neste sentido do que a ditadura militar no Brasil. E
aí preciso dizer que, se esta verdadeira briga contra o esquecimento (que no fundo
nada mais é do que uma briga contra a Morte) é o que parece mover antes de tudo
Dzi Croquettes, a recuperação destas imagens de arquivo, para além de qualquer
leitura simbólica, consegue em grande parte cumprir com este feito. Porque embora
não seja nem um pouco necessário que um documentário possa de fato “apresentar
documentos” que comprovem aquilo de que trata, a verdade é que se não víssemos
os Dzi Croquettes em cena naqueles vídeos bastante amadores que sobraram como
registro deles no teatro, o filme não teria nem metade de sua energia. Porque
são elas que permitem que a tietagem e a explosão de carinho pelos artistas
se encarne na tela com uma pregnância outra, onde sentimos conseguir entender
de que força e de que importância artística estão falando aquelas pessoas todas.
E se é fato que mostrar essas imagens por si só não faria necessariamente de Dzi
Croquettes um bom filme, o fato de mostrá-las dá a ele uma outra dimensão,
que não é só a da “relevância” (palavra tão perigosa no trato com o documentário)
mas também a da grandeza artística. Janeiro de 2010 editoria@revistacinetica.com.br
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