in loco - mostra de tiradentes 2009
Segundo dia: A histeria da performance
por Fábio Andrade
A
Festa da Menina Morta, de Matheus Nachtergaele
(Brasil, 2008); e FIlmefobia, de Kiko Goifman (Brasil, 2008)
"É
mais crível quando se vê a histeria". Essa frase, dita em uma das reuniões
de equipe filmadas em Filmefobia, acaba sendo esclarecedora tanto sobre
o filme de Kiko Goifman, quanto sobre a estréia de Matheus Nachtergaele na direção,
os dois filmes exibidos curiosamente em sequência no segundo dia da programação
de Tiradentes. Ambos são filmes extremamente calcados em um efeito de performance,
que trabalham a cena a partir da expansão máxima (sempre buscada, nem sempre alcançada)
do corpo no espaço. Em
Filmefobia, o estudioso de cinema Jean-Claude Bernadet interpreta um documentarista
chamado Jean-Claude (foto ao lado), que busca obsessivamente concretizar, em filme,
a idéia que sua personagem tem de que a única imagem verdadeira seria a do fóbico
diante de sua fobia. Em A Festa da Menina Morta, uma comunidade ribeirinha
do Amazonas é palco de um jogo de poder, fé, misticismo, terror e dor. Esse jogo
se constrói como espetáculo, onde o poder é determinado pelo grito mais alto,
o tapa mais forte, a presença mais intimidadora. Filmes radicalmente diferentes
em suas intenções e armações, mas que se cruzam nesse interesse comum pela expressão
amplificada e histérica como melhor representação de uma suposta autenticidade.
Curiosamente, essa intersecção central aos dois filmes é,
também, o marco de onde eles divergem. Em A Festa da Menina Morta, a performance
é a ferramenta do drama. Em um espaço dominado por relações de poder, Nachtergaele
parece menos interessado na natureza dessas relações, e mais em criar imagens
que traduzam simbolicamente os atos de coerção que garantem essa autoridade, esperando
extrair disso alguma força estética. Isso explica os planos dos animais abertos,
expostos visceralmente, em um comentário que não visa – como em Buñuel ou Stroheim
– compreender as reações humanas a partir do comportamento animal; mas sim demonstrar,
novamente, a relação desigual dos homens com as criaturas (humanas ou não) que
os cercam. A
Festa da Menina Morta trabalha essa constante
reiteração naturalista, onde toda imagem é milimetricamente calculada para demonstrar
novamente um conceito do qual ela deriva, e todo plano parece servir à mesma idéia
já esgotada no plano anterior. O maior sintoma desse efeito acaba sendo sua construção
circular: ao terminar seu filme com a mesma imagem que começa, Nachtergaele instala
personagens e espectadores em um fatalismo trágico e desgastante. Assim como a
decupagem, a performance se esvazia, pois ela é, também, o meio para se chegar
a uma aparência de veracidade exterior ao espetáculo. O interesse pela performance
não se encerra em si mesmo, mas sim funciona como ferramenta para se chegar a
um efeito de estilização – no caso, igualmente próximo ao hiper-naturalismo de
Cláudio Assis, e à espiral neo-barroca de Luiz Fernando Carvalho – que busca se
fidelizar ao olhar deformador de uma personagem. Essa
estilização é constante tanto no choque entre pretos e pratas da fotografia de
Lula Carvalho, quanto no estado de ebulição constante em que se colocam os atores.
Se existe um cansaço resultante dessa estratégia gritalhona e um tanto epilética,
não é por uma inconsequência inconsciente do realizador; muito pelo contrário,
pois o universo construído por Nachtergaele em torno de seu Santinho (Daniel de
Oliveira) se sustenta sobre bases firmes, plantadas em inegável coerência. Há,
no filme, um universo artístico aberto à relação com seu público; a questão que
determina o fascínio ou a repulsa depende de cada espectador se sentir, ou não,
parte dele. Nesse sentido, é particularmente expressivo que os dois planos mais
fortes do filme sejam aqueles que esvaziam a coreografia de seu enxerto dramaturgico,
filmando o movimento pelo movimento: as "trigêmeas alienígenas" que
animam uma festa e, muito expressivamente, não são nem trigêmeas, nem alienígenas;
e os rapazes que dançam break, em plano de incrível força visual. Filmefobia parte de um princípio oposto, pois, embora ele busque na performance
um efeito (a imagem, seja ela "falsa" ou "verdadeira"), ela
é datada de uma improdutividade que lhe é engrandecedora: a performance se encerra
em si mesma. Existe, claro, um caráter rarefeito imposto às camadas de encenação
que é difícil de se contornar como tensão crítica. Mas, talvez, a melhor relação
possível a se estabelecer com ele seja a da negação: mais importante do que determinar
as fronteiras entre a cena e a manifestação "pura" da fobia, Filmefobia
é uma construção de performances. Nesse sentido, é cabal a participação de Zé
do Caixão (e não Mojica), buscando, na ilha de edição, a verdade expressiva de
momentos do material filmado. Mais
do que compreender a essência que determina a força de uma imagem, Filmefobia
busca a expressão dessa força na imagem acabada, independente de ela vir de uma
raiz compulsiva, ou figurativa. O espelhamento entre o filme e a realidade que
lhe é externa é, por sua vez, externo ao filme. Não há jogo com o espectador,
pois o jogo pressupõe a possibilidade de haver vencedores. É interessante, portanto,
que o nome de Jogo de Cena tenha surgido mais de uma vez no debate acerca
de Filmefobia realizado na Mostra. Interessante pois, para além de semelhanças
mais epidérmicas, Kiko Goifman vai em sentido oposto ao de Eduardo Coutinho: em
Jogo de Cena é essencial para o funcionamento de sua estrutura que o espectador
perceba que algumas daquelas personagens são atrizes (daí a escalação de Andréa
Beltrão, Marília Pêra e Fernanda Torres – rostos onipresentes na memória popular
do audiovisual brasileiro); em Filmefobia, o possível reconhecimento dos
atores (Kiko como Kiko; Jean-Claude como Jean-Claude) instaura camadas dispersivas,
produzindo relações que giram no vazio. Sob
essa ótica, o filme de Goifman estaria muito mais próximo da massa indistinta
de imagens de Serras da Desordem, de Andrea Tonacci – construção em que
o livre trânsito entre uma gama variada de registros gera um discurso que é possível
justamente por sua indistinção. Esse vazio induzido pelas camadas de interpretação
redireciona, porém, os olhos do espectador às imagens que são realmente centrais
– daí a estilização absoluta dos instrumentos e aparelhos usados nos experimentos,
peças onde a fusão entre o lúdico e o horror define tanto a idéia de fobia (o
pavor diante de algo não convencionado como pavoroso por aquela sociedade – palhaços,
anões, botões) como o jocoso tom laboratorial das performances. O perigo controlado
e imageticamente produtivo faz de Filmefobia uma espécie de trem-fantasma
da fotogenia – algo que as fotografias incluídas na montagem só fazem ressaltar.
A palavra, o discurso do filme dentro do filme, só se apresenta para o testemunho
de sua própria ruína. O que resta são as imagens, e em ambos os filmes exibidos
nesse segundo dia de Mostra, elas são mais fortes quanto mais auto-conscientes
se mostram de sua plasticidade performática. Janeiro
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