in loco - mostra de tiradentes 2009
Primeiro dia: Em busca de luzes por
Fábio Andrade
Se Nada Mais Der Certo,
de José Eduardo Belmonte (Brasil, 2008)
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indícios das questões que alimentam uma curadoria no comportamento das personagens
dos filmes programados – em especial numa sessão de abertura – gera, na relação
crítica, o sério risco de queimar a largada, perdendo a corrida antes de ela sequer
começar. No caso da 12a Mostra de Tiradentes, porém, ignorar as relações à medida
que elas se apresentam seria decisão ainda mais problemática: do slogan da
Mostra (cinema contemporâneo em todos os sentidos) aos discursos na cerimônia
de abertura, é notável a preocupação em não só estabelecer um raciocínio que costure
as escolhas, mas também a vontade de colocar espectadores, realizadores e crítica
em um excepcional (no sentido de exceção, precisamente) estado de atenção. Atenção
não só aos critérios que instauram essa coerência interna à mostra, mas principalmente
a um jogo de revelações que se reconhece como intermitente, momentos de brilho
percebidos por um olhar já um tanto acostumado à escuridão que por vezes encobre
a produção realizada no Brasil. Nesse sentido, é bastante
revelador que a crise se imponha, em Se Nada Mais Der Certo, na escuridão:
devido ao atraso no pagamento das contas de eletricidade, a luz é cortada na casa
de Leo (Cauã Reymond). Mergulhada no breu, Angelina (Luíza Mariani) tem a banal,
mas decisiva iniciativa de acender uma vela. Recortada no escuro, ela caminha
para o fundo do quadro, como se o simples ato de acender a vela a conferisse luz
própria. É esse movimento, igualmente sutil e revelador, que conecta todas as
personagens nesse novo filme de José Eduardo Belmonte: a luta diária de
não se deixar afogar na ausência de brilho de suas vidas cotidianas. Um pouco
mais adiante, Leo e Angelina conversam sobre os entraves da vida. Enquadrados
de perfil, com um par de cacos de velas em primeiro plano, quando a conversa se
abranda um corte mostra o mesmo espaço frontalmente, e as velas se multiplicam,
trazidas do extracampo pela decupagem. Luz é calor. Temos, aí, duas boas palavras
para nos aproximarmos de Se Nada Mais Der Certo. É
natural, portanto, que o filme nos lembre, constantemente, duas obras-primas daquele
que é, talvez, o maior artista da luz entre os realizadores contemporâneos: Adeus
ao Sul e Millennium Mambo, filmes de Hou Hsiao-hsien que também enxergam
a luz como principal ferramenta de expressão e compreensão do universo jovem contemporâneo.
Mas se, em Millennium Mambo, a luz negra dos clubes noturnos e o âmbar
suave do apartamento de Vicky (Shu Qi) só ressaltam a distância fria que se coloca
entre as personagens, o filme de Belmonte vai em direção rigorosamente oposta,
abolindo, quase absolutamente, planos em que um ser aparece sozinho no quadro.
Essa afirmação pelo convívio faz lembrar de outros dois filmes vindos daquele
mesmo canto do mundo, na mesma época: Amores Expressos e, sobretudo, Anjos
Caídos, de Wong Kar-wai – essa sim a influência de maior vulto em Se Nada
Mais Der Certo. O
parentesco está tanto nos desenhos de câmera e decupagem quanto em caminhos adotados
na filmagem (algo facilmente perceptível nas falas dos atores, no debate realizado
na mostra), ou mesmo pela desenvoltura notável com o texto impresso em tela. Mas,
principalmente, pela percepção da vida como trânsito ininterrumpto pela escuridão,
onde as poças de satisfação e prazer são tão fugazes quanto intensas: o lume de
um cigarro acesso, a taquicardia estroboscópica das pistas de dança, as ondas
de afeto propagadas por uma tela de televisão, a superexposição condensada
em um saquinho de cocaína. A luz não é sinônimo de iluminação, ao menos não epifânica;
é, sobretudo, um momento de brilho, de prazer, de satisfação. As velas queimam
até a última gota de cera, e é preciso se aquecer de outra maneira. Existe,
porém, um caráter extraordinário nesses momentos, pois a luz é principalmente
aquela que confunde o foco, que explode a claridade do lado de fora (o mundo,
o exterior), e joga às sombras uma relação entre mãe e filho. A luz que reflete
em aço no revólver à cintura. Belmonte restaura força a um conceito físico já
extremamente desgastado, pois é a luz que forma e deforma a visão: estão lá, também,
as bolhas coloridas que se tornam os postes da cidade, deformados pela gota de
água que repousa no vidro do carro, explodindo o concreto em possibilidades de
abstração. Não à toa, Se Nada Mais Der Certo é melhor quanto mais ambíguo,
assimilando à imagem a androginia de Marcin (Carolina Abras) e Sibele (Milhen
Cortaz) – anjos de neon que parecem sempre preferir o "estar" ao "ser".
Por isso mesmo, o rigor, sempre isoladamente impressionante na mise-en-scène
de Belmonte, perde força quando se obriga a fazer o tempo andar (as sequências
dos assaltos; a literalidade excessiva de alguns diálogos), como que tentando
assegurar, junto ao espectador, uma relação que nunca esteve ameaçada. Isso por
Belmonte ser mais um criador de planos-sínteses do que um narrador tradicional,
alcançando maior força na relação ideogramática do acúmulo de informações (sonoras,
visuais, espaciais, temporais) do que na concatenação de planos de uma montagem
mais tradicional. Esse desejo de síntese, de criar unidades
que acabam dentro de seu próprio movimento, faz lembrar tanto do cinema de Eisenstein
e, principalmente, Dziga Vertov, quanto de Bang Bang, de Andrea Tonacci
– filmes que implodem a relação mais estrita com a linearidade para, norteados
pela lógica interna de uma montagem de sensações, geram uma idéia de estado de
espírito. Nesse sentido, há dois planos excepcionais em Se Nada Mais Der Certo:
a correção de diafragma no momento em que Wilson (João Miguel) engatilha sua arma,
colocando em perspectiva um horizonte até então superexposto; e o plongée
de Angelina em um viaduto, contemplando o desconhecido (a morte? o medo? o futuro?)
que se esconde, na pista de baixo, nas áreas subexpostas da pelicula. São, ambos,
casos em que Belmonte resolve, dentro do plano, sentimentos que a montagem enfraqueceria
em excesso de claridade. A montagem é, no filme, a expressão
última das personagens. Mais do que o interesse em um discurso, em um arco dramático,
o cinema de Belmonte se concentra na intensidade da experiência de suas personagens.
Por isso um dos recursos mais fortes do filme é o fast forward que, em
vez de tentar simular uma viagem de drogas, parece registrar a tentativa da câmera
de alcançar o ritmo das personagens que ela filma. O final não poderia ser mais
eloquente: Marcin presa entre o mar, à sua frente, e o mundo às costas, que, ao
mesmo tempo, aprisiona e liberta Antoine Doinel em Os Incompreendidos, de
François Truffaut. Mas ali, naquele filete de terra, ela encontra alguém para
abraçar. A jornada é acidentada, mas para cada hora de trevas há um segundo de
luz. Luz frágil, rara e quebradiça, mas de uma intensidade revigorante. O que,
em ritmo de mostra, parece uma boa maneira de descrever a relação diária possível
do crítico com o cinema de cada dia. Janeiro de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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