in loco - mostra de tiradentes 2007
Oitavo dia: Cidade imaginada por
Ilana Feldman Sábado à Noite,
de Ivo Lopes Araújo (CE, 2007) A relação entre o cinema
e o ritmo das cidades sempre foi íntima. Desde o início, com os filmes domésticos
dos irmãos Lumière, estavam lá cenas do cotidiano, homens e mulheres anônimos,
gestos e expressões ordinárias, fluxos de transeuntes e meios de transporte em movimento. A grande cidade, em seu funcionamento
reluzente, mecânico e maquínico, ao propiciar a emergência do cinema, tornou-se,
ela mesma, uma imagem carregada de força industrialista e velocidade. Em Sábado
à noite, documentário dirigido por Ivo Lopes Araújo e produzido originalmente
para o Programa DOCTV III, da TV Cultura, o tema da cidade - no caso, a cidade
de Fortaleza - é revistado, porém agora em outra chave, outros matizes e outra
temporalidade. Após
as grandes sinfonias das metrópoles que marcaram o cinema das primeiras décadas
do século XX (como Berlim, Sinfonia da Metrópole, de Walter Ruttmann, de
1927, São Paulo, Sinfonia da Metrópole, de Rodolfo Lustig e Adalberto Kemeny,
de 1929, e O homem com a câmera, de Dziga Vertov, de 1929), Sábado à
noite abandona a luz do dia e o ritmo acelerado da produtividade, abandona
a concentração dos corpos e a curta duração dos planos, abandona, em suma, a euforia
futurista, industrial e maquínica. A cidade de Fortaleza, cidade natal do diretor,
é, ao contrário dessas clássicas sinfonias, construída por um arremedo de imagens
cujo efeito é a dissonância: cidade desfuncionalizada, desprogramada, obscura
e esvaziada. Cidade abandonada. Nessa noite de sábado, espécie
de ressaca ou epílogo da prepotência do século XX, ao contrário do que o título
poderia sugerir, o movimento dos poucos passantes, dos corpos que se encontram
ou que se dispersam, e dos automóveis que passam é errático, hesitante, lacunar,
contingente e efêmero – ainda que a temporalidade de cada plano seja esgarçada,
estendida e dilatada. Não há personagens, não há identidades biográficas. Sobram
ausências. Os seres que tangenciam as imagens, isto é, os seres que tangenciam
os espaços e o tempo, são apenas traços, vestígios de vida, habitando lugares,
interiores ou exteriores, ermos e um tanto desamparados. Em
uma das seqüências do filme, um casal abraçado,
sentado em um bar, assiste a um filme na TV. Na pequenina tela, a moça se desloca
e emana um longo adeus, com as mãos e o corpo em movimento, enquanto o casal,
fixo, como que atávico, observa o gesto, já tornado um resto, de despedida. Essa
sensação de último adeus permeará todo o filme, em sua pouco mais de uma hora
de duração, como se o olhar do filme precisasse reter ao máximo no tempo a cidade
e seus recortes, seus traços e seus pontos luminosos, seus seres e suas deambulações,
para jamais esquecê-la, seja como imagem seja como simbólica filiação. Nessa
espécie de busca audiovisual, Sábado à noite se ensaia como um ensaio-fílmico,
na medida em que busca aquilo que não sabe bem, na medida em que chega onde não
previa, na medida em que se deixa abandonar à própria sorte. Abandona, inclusive,
o dispositivo pautado pelo acaso e pela aleatoriedade que originalmente parecia
estar previsto: logo no início, um rapaz da equipe, na rodoviária de Fortaleza,
pede carona a um casal, para qualquer lugar, com o intuito de gravar o percurso
e os seguintes e sucessivos deslocamentos a serem feitos dessa forma. A carona
é recusada e o aparente dispositivo deixado pelo caminho. Em
outro momento, quase ao final da noite e antes da aurora, a câmera, simultaneamente
olho e corpo, corre atrás de pombos que ciscam em uma escura praça pública. A
cada investida desse olhar-incorporado um pombo voa baixo e volta a repousar.
O que busca essa câmera que, tal como a câmera-olho de O homem com a câmera,
crê na possibilidade simultaneamente revelatória e construtivista da imagem? A
revelação de mais um melancólico amanhecer? Ou a construção de uma imagem do presente
já tornada um rastro do passado? Nessa errática busca, em que nenhum recorte espacial,
luminoso ou obscuro, significa nada para além da própria experiência do olhar,
chega-se a uma cidade ao mesmo tempo revelada e construída, árida e poética, bruta
e lírica. Cidade que, antes mesmo de ser abandonada, é permanentemente imaginada. Janeiro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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