in loco - mostra de tiradentes 2007
Sexto dia: Entre o provisório e o extraordinário
por Francis Vogner dos Reis

Depois de finalizado o debate sobre o filme Crítico, de Kleber Mendonça Filho, a questão que apareceu (meio atrasada) era: por que o filme – e o próprio debate – não repercutiu sobre a situação daqueles que jogam nos dois lados do campo, ou seja, o crítico que também é cineasta? O próprio Kleber Mendonça se divide nas duas funções há muito tempo, como crítico no seu site Cinemascópio e no Jornal do Commercio de Recife, e cineasta com uma carreira que conta os curtas A Menina do Algodão, Vinil Verde, Eletrodoméstica e Noite de Sexta, Manhã de Sábado.

Aliás, a própria mesa tinha como crítico participante Daniel Caetano, da Contracampo, que trouxe seu primeiro longa-metragem, Conceição, para Tiradentes no ano passado, e como membro da equipe de Crítico (responsável por entrevistas adicionais), Leonardo Sette, que escreve aqui na Cinética e está com seu curta Ocidente na Mostra de Tiradentes este ano. Três cineastas que exercem a atividade crítica, e entretanto essa dicotomia de uma importância nada desprezível não foi lembrada.

O filme até se ressente dessa lacuna de colocar problemas na condição crítico-cineasta, o que pode ser compreensível, mesmo que não justificado: se por um lado a quantidade de cineastas que também praticam (ou praticaram) a crítica não é um número muito significativo de maneira geral – o próprio documentário só nos apresenta Eduardo Valente e Nicholas Sadaa nessa condição -, por outro Crítico meio que demonstra uma espécie de parede entre as duas funções na maioria dos casos. Como se críticos e cineastas fossem duas instâncias que naturalmente deveriam permanecer separadas em nome da saúde da atividade cinematográfica, para evitar influências negativas ou ferir sensibilidades. Existem exceções, claro – caso de Michel Ciment, da revista Positif, que demonstra uma disposição um pouco maior de manter diálogos mais próximos com cineastas -, mas vê-se que muitos cineastas (pelo menos os que estão no documentário) sabem criticar a atividade crítica e nem sempre se guiam pelo suposto poder do crítico em destruir a carreira comercial de um filme, algo que geralmente (e infelizmente, porque isso é um clichê improdutivo e que nivela as coisas por baixo) é levado muito em conta quando se discute essa questão.

Essa relação um tanto quanto histérica, de necessidade e repulsa, e também o olhar crítico, inclusive para o que é considerado geralmente como "atividade crítica", são os principais recortes encontrados por Kleber Mendonça. Durante o debate, Kleber disse que tinha como ponto de partida a "relação entre cineastas e críticos" e que o documentário (que começou a ser captado em 2000 no Brasil, na Europa e nos EUA) procurou sua forma a partir de como o material foi se apresentando. Portanto, é natural que se pense "isso faltou", ou "cadê tal crítico e tal cineasta que teria muito a dizer". Segundo os relatos dos participantes da mesa, o trabalho que existe foi o filme possível (segundo as entrevistas que tinham em mãos, segundo os depoimentos que melhor se encaixavam), e este documentário como "entidade orgânica" (palavras do diretor) foi tomando a forma que lhe parecia mais coerente e fechada.

Se da última edição da Mostra de Tiradentes pra cá esse debate entre críticos e cineastas se amplia, a exibição e o debate de Crítico é um ponto de crise fundamental. Há muito a se falar sobre Crítico, por isso essa sensação de que o debate não rendeu da maneira como poderia e que o documentário de Kleber Mendonça não consegue encampar algumas cisões mais delicadas entre realizadores e críticos. Esse sentimento de incompletude é certamente o que de melhor gerou filme e debate, ou seja: o debate continua.

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O extraordinário

Curtas-metragens - Série 5 - De Carne e Osso
Corpo Presente: Beatriz, de Marcelo Toledo e Paolo Gregori (SP, 2007)
Um Ramo, de Juliana Rojas e Marco Dutra (SP, 2007)
De Resto, de Daniel Chaia (SP, 2007)
Sentinela, de Afonso Nunes (MG, 2007)
O Lobinho Nunca Mente, de Ian SBF (RJ, 2007)

A série 5 de curtas-metragens, intitulada De Carne e Osso, nos coloca frente a personagens em situações extraordinárias. Antes de uma dramaturgia, o corpo. Seja um corpo encontrado às margens de um rio (Corpo Presente: Beatriz), seja um corpo no qual começam a brotar ramos de folhas (Um Ramo), sejam rituais pré-funebres de corpo (vivo) presente (Sentinela), seja o encontro de um dedo em meio ao lixo de uma festa (De Resto), ou ainda um corpo mudo e imóvel após um acidente doméstico (O Lobinho Nunca Mente).

Corpo Presente: Beatriz, de Paolo Gregori e Marcelo Toledo parte de um corpo encontrado às margens do rio Tietê. Depois da apresentação por intermédio de um laudo do legista, conhecemos este corpo antes de seu falecimento (antes de se tornar só um corpo), uma garota, que é mãe e operária. Gregori e Toledo fazem um filme sobre a constatação da presença desse corpo em frente à câmera, sobre a relação dessa garota, Beatriz, com tudo que solicita seu corpo (como autonomia, doação e empréstimo): o trabalho de operária, a relação com o namorado, a tatuagem que faz e o próprio cotidiano da cidade com o qual seu corpo não só se relaciona, mas se integra.

Em Um Ramo, uma mulher constata que começa a nascer de seu corpo ramos de uma planta, sem que haja uma explicação para o fato. Como outros curtas da sessão, o filme de Juliana Rojas e Marcos Dutra faz do corpo um elemento que irrompe o extraordinário em um cotidiano normal e limitado. Talvez seja o curta-metragem de maior impacto da sessão (não exatamente o melhor) porque ele é o filme efetivamente mais físico, onde tudo é visto de muito perto. Já De Resto, de Daniel Chaia, tem um dedo em meio ao lixo de uma festa como epicentro da trama e da obsessão de uma faxineira por conservá-lo com gelo, acreditando que o dono uma hora virá buscá-lo. Existem alguns vácuos (propositais) na história e alguns descaminhos. De interessante fica esse azedume, típico dos filmes da sessão.

O mineiro Sentinela, de Afonso Nunes, aborda rituais pré-funebres no sertão da Bahia. O corpo, ao invés da imanência cruel dos filmes anteriores, é sacralizado. Os moribundos assistindo à preparação coletiva para suas mortes são imagens fortes, ainda mais porque o diretor aproveita a aridez da região e os rostos talhados em uma fotografia em preto e branco. O misticismo como um estado de existência e apreensão. O Lobinho Nunca Mente é a extensão de uma situação em que um rapaz que sofreu um acidente doméstico ao tentar colar um pôster de mulher pelada na parede cai, fica paralítico, mudo e estirado no chão por alguns dias. O dispositivo do curta de Ian SBF de um pensamento-narração que faz digressões vincula demais o projeto à potência cômica da narração (quem nem sempre funciona). É refém do próprio dispositivo.

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O fluxo e o provisório

O Grão, de Petrus Cariry (CE, 2007) – Aurora

Primeiro longa do cearense Petrus Cariry – com fotografia de Ivo Lopes Araújo, diretor de Sábado à Noite (longa também presente em Tiradentes) -, O Grão é uma das boas surpresas, em se tratando de estreantes, da Mostra deste ano. A primeira imagem é de movimento em uma estrada. A câmera percorre a estrada longamente e o tempo do plano é o prenúncio de que a sua duração é algo que será utilizado e testado durante todo o filme, porque existe uma idéia constante de fluxo em O Grão. Não somente um fluxo de imagens que estabelece unidades de tempo, mas também um fluxo da vida (inevitavelmente ligado ao tempo, não como construção, mas como situação natural incontornável), que concebe a condição dos personagens como algo provisório e que inevitavelmente encara a possibilidade de mudança e a ruptura em um cotidiano que parece se repetir infinitamente.

Em seguida apresenta-se um casal, uma criança com um filhote de cachorro, uma filha mais velha e uma avó doente. A família que cria cabras parece à primeira vista um relato da repetição do maçante cotidiano em um sertão com infiltração da cultura de massa (rádio, TV), só que Cariry não transforma isso em um sinal de decadência (como já foi muito comum em filmes que tratavam do Brasil profundo), mas de descompasso, de contra-fluxo. Até mesmo a TV – sempre presente na casa da família à noite – é colocada como um marco não da comunicação com um mundo mais amplo, mas signo de repetição, de prisão ao cotidiano.

Assim, Cariry coloca com O Grão a seguinte questão: como o fluxo natural da vida age sobre o cotidiano sempre com dias, ações e situações tão iguais? Qual o choque do inevitável sobre o provisório? É nessa tensão entre o fluxo dos acontecimentos (como a doença fatal da velha senhora e a aproximação do casamento da primogênita) que Cariry prepara justamente a violência do acontecimento das coisas no dia-a-dia desses personagens. Por isso, ao mesmo tempo em que tudo parece tão repetido - como a manipulação que o garoto faz com o filhote do cachorro como se este fosse um brinquedo -, tudo também aspira ao provisório. As coisas nunca são as mesmas. Um filme que coloca problemas estéticos que dialogam com uma série de outros filmes do cinema contemporâneo, o que já é muita coisa em se tratando de um filme de estreante.

Janeiro de 2008

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