in loco - mostra de tiradentes 2007
Terceiro dia: Cobertura prejudicada
por Francis Vogner dos Reis

As mudanças de temperatura, as garoas eventuais, a maratona de filmes (só no segundo dia tivemos três vídeos e três longas em seqüência), o pouco tempo de sono e a inconstância dos horários na Mostra de Tiradentes são capazes de debilitar qualquer saúde de ferro. Pois bem, o redator aqui foi acometido por uma febre que começou a se manifestar na hora do almoço e até o fim da tarde continuou retumbante. Na busca por um posto de saúde (longe, mas segundo as informações era “logo ali”, o que confirma que o “logo ali” do mineiro não condiz bem com a realidade), fui pedindo informações, até que tive a sorte de encontrar pelo caminho um estudante do décimo primeiro período de medicina, que foi logo me pedindo para abrir a boca, mediu minha febre e me recomendou um paracetamol. O nome dele é André Castilho, mora em Belo Horizonte e por causa dele poupei uma boa caminhada até o posto de saúde e um possível chá de cadeira lá, o que na certa ajudou a poupar minha (debilitada) saúde.

Esse relato é para dizer que, em razão da febre, minha maratona de filmes ontem foi mais curta, tendo de abrir mão de Deserto Feliz, de Paulo Caldas, e Ô, de Casa, de Clarisse Alvarenga. Mas de qualquer modo e apesar de tudo, deu para conferir os vídeos Loucos de Futebol, de Halder Gomes (CE), Idade do Vento, de Nycolas Albuquerque (PB), Ismar, de Gustavo Beck (RJ), Novela Vaga, de Beto Valente e Dado Amaral (RJ) e Um pra Um, de Erico Rassi (SP) e o último longa-metragem do dia, Cleópatra, de Julio Bressane.

Antes de tudo isso, o dia começou com um debate sobre Meu Mundo em Perigo, de José Eduardo Belmonte, com a presença do próprio diretor, do crítico Daniel Schenker, dos produtores Lili Bandeira e Francisco César Filho (também mediador da mesa), e dos três atores principais: Rosanne Mulholland, Eucir de Souza e Milhem Cortaz. A fala de Schenker revelou e identificou alguns procedimentos do filme, como o aspecto “físico” da câmera, os personagens mais interessados em falar de si mesmo do que em ouvir os outros, a presença de espelhos nas cenas etc. Ponto de partida para a discussão em que se ressaltou algo que é fundamental e que não é tão comum hoje em dia: processo. É um filme de processo, com seqüências que foram criadas no instante de filmagem, uma relação criativa, com os atores impondo desafios diferentes de uma direção de atores convencional (sem preparação, sem ensaio), e onde Belmonte aproveitou o próprio estado emocional e psicológico dos atores, além da própria experiência de vida de cada um – seja daquele momento ou de outro – na construção do filme. Meu Mundo em Perigo apareceu, no debate, como um filme imerso na “experiência”, praticamente sem orçamento e dependente, sobretudo, do altruísmo de seus envolvidos.

Vídeos - Série 2 – Mediações

Loucos de Futebol, de Halder Gomes (CE, 2007)
Idade do Vento, de Nycolas Albuquerque (PB, 2007)
Ismar, de Gustavo Beck (RJ, 2007)
Novela Vaga, de Beto Valente e Dado Amaral (RJ, 2007)
Um Pra Um, de Erico Rossi (SP, 2007)

A sessão de vídeos começou com um problema de projeção, que não se sabe se era da fita Beta (formato para exibição dos vídeos) ou do projetor. Em função disso, Loucos de Futebol teve de se ser reiniciado, o que não resolveu o problema da projeção. Por isso, fica difícil falar do filme com segurança, já que ele não foi exibido como foi pensado pelo diretor. O que se viu (mais uma vez) foi o espectro de um documentário sobre a paixão e a rivalidade entre os torcedores do Fortaleza e do Ceará. Loucos de Futebol parece tão histérico quanto o que retrata, para o bem e para o mal. Inclusive no fim da projeção aparece uma frase de mea-culpa: “esse filme tentou ser imparcial, mas não deu”.

A Idade do Vento começa com uma imagem de Terra em Transe, de Glauber Rocha. Se segue de muitas imagens de muitos filmes e travellings que passam por pessoas sentadas no sofá. O processo se repete, intercalados por frases do tipo “toda geração deve fazer sua revolução”, ou algo do tipo. Uma espécie de inventário afetivo sobre cinema, é um filme de colagem, quase como um álbum de figurinhas. É um vídeo que tenta se posicionar como subjetividade cinéfila de uma geração. Não há problematização dessas imagens, não há choque, não é uma obra que tenta criar algo autônomo das obras que aborda, como faz Historie(s) du Cinema, de Jean-Luc Godard. É só uma série de imagens encadeadas, como fluxos de vento (nisso, o título é um acerto), que servem ao “gosto” cinematográfico de seu diretor. Vazio.

Em seguida o melhor vídeo da sessão: Ismar. Pra quem não se lembra, Ismar era um garoto prodígio que foi entrevistado em alguns programas por ser uma enciclopédia de cinema (de Hollywood), respondia perguntas e chegou até a cantar a música tema de algum clássico hollywoodiano no programa do Jô Soares. O vídeo coloca o Ismar de hoje na penumbra, enquanto paralelamente mostra a participação dele quando garoto em alguns programas de auditório, até a sua “derrota” em um programa que lhe daria uma passagem para Hollywood, ao errar uma resposta sobre Jack Lemmon. Quando revela Ismar hoje, temos outro personagem, absolutamente diferente, com uma banda de rock e que evita a câmera. O vídeo de Gustavo Beck revela um contraste entre o personagem de TV Ismar (o garoto prodígio), e o Ismar de hoje, o “não-personagem”. Este escapa a qualquer definição. Mesmo depois da sua aparição, ele continua na penumbra. Não encontramos aquele garoto, mas sim uma outra pessoa.

Os dois últimos vídeos, Novela Vaga e Um pra Um, tratam de personagens que são diretores pitorescos de cinema e da impossibilidade de fazer filmes. Em Novela Vaga, os diretores Beto Valente e Dado Amaral entrevistam um diretor fictício e ressentido, que reclama de tudo e pretende fazer um filme em Paris, satirizando a nouvelle vague. É um trabalho engraçado, com algumas seqüências muito inspiradas em particular, como a dos personagens perdidos em uma Paris fotografada em preto e branco. Já Um pra Um, de Erico Rassi, satiriza um cineasta pobre que opta por fazer filmes pornôs experimentais e é contratado para dirigir um snuff movie. Os argumentos do personagem são até espirituosos em uma primeira vez, mas vão perdendo a força até o fim do vídeo.

Um espetáculo de Julio Bressane

Cleópatra, de Julio Bressane (RJ, 2007)

A reação do público foi de perplexidade. Enquanto alguns riam, outros faziam gracinhas, e alguns outros depreciavam. Saíram algumas pessoas, o que possibilitou que quem estivesse no chão, conseguisse sentar nas cadeiras (apesar de muitos preferirem o chão). A constatação é que Cleópatra, de Julio Bressane, é um espetáculo, no bom sentido e ao pé da letra. Bressane é sempre considerado incompreensível, difícil de acompanhar e partidário do mínimo e do inverossímil. Quando o diretor disse que realizou em Filme de Amor uma “fábula popular”, isso foi considerado como uma piada. Não foi uma piada (uma mentira engraçadinha), foi uma provocação (que desafia definições e visões simplórias).

Bressane sempre fez um cinema simples, não simplista. O trabalho que faz com o som e com as imagens (e em Cleópatra em especial) é sempre ousado, porque ele não parte para abstrações, para somas óbvias ou que tentam “dizer alguma coisa”. Ele parte de um princípio (as imagens e os sons existem) e de um questionamento (do que eles são capazes?). Ou mesmo, do que é capaz uma imagem criada? Bressane sabe que uma imagem traz consigo muitas outras e cabe ao cineasta (des)organizá-las e compreendê-las. Temos Cleópatra e todas as imagens que a História fez dela, desde as pinturas egípcias até a Cleópatra de Elisabeth Taylor.

Bressane é interessado nas representações históricas, por isso desde a década de oitenta ele tem com ponto de partida os personagens e todas as imagens que eles trazem junto, mas elege, sempre, um interesse específico em meio a todas as imagens estimuladas por essas figuras (lição de John Ford, por mais paradoxal que essa afirmação possa parecer). A personagem histórica é o ponto de partida, mas a historicidade dela não. Em Cleópatra, o diretor parte de um fato: Cleópatra foi a mulher mais intrigante do mundo antigo. E o que o interessa é que, diferentemente de personagens históricos masculinos e poderosos, a história (o mito feminino, a figura política, o símbolo de poder) de Cleópatra é uma história de alcova. O corpo de Cleópatra e suas articulações políticas não se separavam. Por isso as idéias visuais são tão concretas e ele procura (com a contribuição fundamental de Walter Carvalho) fazer de Cleópatra uma imagem potencializada, não exatamente de abordagem histórica, mas poética. A Cleópatra de Julio Bressane não é passível de decodificação. É para ser, sobretudo, vista. As informações que se precisa estão todas ali.

Janeiro de 2008

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