in loco - mostra de tiradentes 2007
Segundo dia: Estéticas inflacionadas
por Francis Vogner dos Reis
O
segundo dia da Mostra de Tiradentes começou com um debate sobre o filme Falsa
Loura, de Carlos Reichenbach. Mediado por Francisco César Filho, com a presença
do crítico baiano João Carlos Sampaio, da produtora Sara Silveira, dos atores
Cauã Reymond e Rosanne Mulholland, além do próprio Carlão (como geralmente Reichenbach
é chamado). O interessante em ouvir um realizador falar
sobre o próprio filme é que ele relata um processo, uma experiência de realização,
do ofício mesmo, que vai além das informações e dos debates conceituais, uma coisa
que muitas vezes foge à alçada da crítica. Não que isso imprima ao filme um valor
que ele não tem (o resultado do trabalho é outra coisa), mas ajuda a compreender
alguns aspectos primordiais da conjugação de esforços do diretor, revelador muitas
vezes do abismo entre o que se pretende e o que se consegue. Em
Falsa Loura, como em todos os demais filmes da carreira do diretor, se
quisermos ser honestos com o seu conceito e objetivo o melhor caminho é não partir
para considerações genéricas. O cinema de Reichenbach não se enquadra comodamente
em definições categóricas como “cinema brasileiro”, “cinema experimental” e também
não faz valer o jargão de “revelar a realidade”. Por isso a intervenção do público
nesse debate foi tão valiosa. Porque muitos dos espectadores comuns (que não praticam
a crítica de cinema e que não são profissionais especializados na área) geralmente
não se pautam por um saber cinematográfico pré-concebido, mas se guiam por sensações
e impressões. Por isso, foram eles que fizeram as perguntas que, se não são as
mais interessantes, foram as de confronto mais sincero com o realizador. Como
foi o caso com o pai que levou a filha à sessão e criticou o filme por não ter
um andamento dramático eficiente, ou o senhor que suscitou uma discussão interessante
porque simplesmente perguntou “por que Falsa Loura?”. Interessante a manifestação
do público, que demonstra conseguir ir muito além das manifestações de vaias e
aplausos. É claro que, como em todo debate, surgem também
aquelas colocações óbvias e por vezes descabidas (principalmente, mas não só,
por parte dos jornalistas), que escapam completamente do debate – como um jornalista
francês que dizia que as mulheres eram estúpidas e que ele era feminista porque
as adorava – ou que repercutem certos lugares comuns do jornalismo especializado. O
som no fio da navalha Vídeos - Série 1
- No Fio da Navalha Pé de Sonhos, de Vinicius Alexandrino
(RJ, 2007) Solitário Anônimo, de Débora Diniz
(DF, 2007) Uma Noite Qualquer, de Lello Kosby (DF, 2007) Se
o barulho da tempestade na noite anterior atrapalhou minimamente a compreensão
de Falsa Loura, o problema do som na sessão dos primeiros vídeos do festival
não se explica por meio das “causas naturais”. A exibição dos vídeos Pé de
Sonhos, de Vinicius Alexandrino, Solitário Anônimo, de Débora Diniz,
e Uma Noite Qualquer, de Lello Kosby, foi sofrida e em especial o vídeo
de Kosby foi de difícil (às vezes impossível) compreensão. De
qualquer maneira os vídeos da sessão “No Fio da Navalha” demonstraram uma preocupação
fundamental em criar imagens que se adequassem às possibilidades (não às limitações,
como às vezes se diz, geralmente quando se usa a referência do cinema de película)
do vídeo. Nenhum deles possui planos de profundidade de campo ou que realizem
movimentos de câmera com planos mais abertos. A câmera dos três filmes é limitada
ou a espaços fechados ou ancorada a um enquadramento muito próximo aos personagens.
Pé de Sonhos em especial é um vídeo de rostos, que
se vincula ao protagonista (um garoto que vai procurar a mãe em uma cabine de
peep show), e o próprio movimento da câmera se ancora ao rosto do garoto.
Já Solitário Anônimo acompanha alguns dias de internação de um homem sem
documentos, que não diz seu nome e se recusa a comer. Quer que o deixem morrer.
Como ele mesmo diz, “morrer em paz”. Do início ao fim, a diretora Deborah Diniz
acompanha o personagem e não foge muito do registro de suas reações durante a
greve de fome. O terceiro, Uma Noite Qualquer, foi o filme mais prejudicado
pelo som. As imagens de um dia (ou uma noite) em um hospital público da Ceilândia
são fortes, mais por uma destreza de apreensão de alguns instantes e não por um
suposto sensacionalismo, como essa categoria de documentário supõe em sua grande
maioria. Mas com o som debilitado (possivelmente um problema da própria cópia)
o que se viu foi um filme pela metade, uma imagem visual, com um espectro de sua
imagem sonora. Uma pena. Os longas-metragens 5
Frações de uma Quase História, de Armando Mendz, Cris
Azzi, Cristiano Abud, Guilherme Fiúza, Lucas Gontijo e Thales Bahia (MG,
2007) - Vertentes Alucinados, de Roberto Santucci (RJ, 2007) - Juventude
em Trânsito Meu Mundo em Perigo, de José Eduardo Belmonte
(DF/SP, 2007) - Olhares A sessão das 17 horas no Cine Tenda
abriu com 5 Frações de uma Quase História, filme mineiro filmado em Belo Horizonte com a direção de Armando
Mendz, Cris Azzi, Cristiano Abud, Guilherme Fiúza, Lucas Gontijo e Thales Bahia.
A exibição foi um fenômeno interessante, até agoraúnico no festival. A fila quilométrica
que se formou lotou a sala com gente sentada no chão e deitada no elevado próximo
à tela. Antes do início da sessão, um dos diretores, Guilherme Fiúza, fez uma
declaração de princípios: “se quiserem, vaiem ou aplaudam... fazemos filmes para
vocês, não para o nosso umbigo”. Sua fala foi seguida de calorosos aplausos e
pessoas que gritavam seu nome. Durante a projeção, duas garotas ao lado ficavam
aos beijos e em toques de escandalosa intimidade, enquanto algumas outras pessoas
do público procuravam identificar conhecidos entre os figurantes ou atores secundários
e, ao aparecer o nome dos diretores nos créditos finais, a ovação foi longa e
intensa. O público reagiu bem, muito bem. Um fenômeno cultural e social curioso. Já
o filme é questão de estilo. Cada uma das histórias preza o evidenciamento do
“estilo” do diretor em um reprocessamento de uma série de elementos do cinema
da década de noventa (David Fincher, Guy Ritchie, David Lynch, Tony Scott) na
caracterização de um universo ordinário, típico de alguns filmes da década de
setenta (destaque para a presença de Jece Valadão), além de parecer importante
para o projeto a brincadeira da aparição, em algumas pontas dos episódios, de
alguns dos diretores.
A primeira história, sobre um fotógrafo tarado por
pés, não podia ser mais representativa do projeto. 5 Frações de uma Quase História
é um filme fetichista que possui um interesse específico pelas formas, não como
maneira de gestar uma imagem que dê conta da significância dessas formas, mas
sim de formas que criem um efeito sensorial imediato. É a consideração obsoleta
da forma. É uma salada mista pós-moderna, só que sem a consciência mais profunda
de seus artifícios. Assim como a publicidade, cada artifício é usado para o arrebatamento
direto e imediato de quem o vê. Os traços de “estilo” são visuais, como o travestismo
de bandas emocore, e surgem como simulação de uma atitude traduzida em uma estética
do entupimento de elementos visuais e mecanização dos dispositivos dramáticos.
O estilo do filme é seu próprio correlato. Alguns podem dizer que o filme é uma
glorificação das formas. Antes fosse. Já
Alucinados, de Roberto Santucci, vai perseguir uma matriz de tradição mais
longeva (o policial de verniz social) e se aplica a seguir as regras tradicionais
da decupagem clássica. O filme começa por um flashback que dá conta de
seu principal interesse dramático (ou pelo menos um deles, já que se trata
de um trabalho com uma porção de eixos dramáticos), a iniciação de um garoto às
drogas. Logo, o filme contextualiza: estamos no Rio de Janeiro. A montagem "favela
e mar, calçadão e linha de trem" faz questão de situar que aquela é uma história
carioca contemporânea e que vive-se uma cisão do morro com o asfalto. Os ares
de filme B (perseguições, roubo de banco) são até simpáticos, mas o problema fundamental
é que o diretor não sabe ao certo o conflito do seu filme. Ele amarra um emaranhado
de problemas sociais urbanos, mas todos apontam para um lado e bate na tecla até
trincar – que tudo aquilo é a responsabilidade de todos nós. É um exercício de
expurgar a consciência culpada. Por fim, a última sessão
do dia exibiu Meu Mundo em Perigo, de José Eduardo Belmonte. Uma surpresa
pelo menos pra mim, moderado admirador de A Concepção: trata-se de um filme
entupido de informações visuais e sonoras, esquizofrênico em sua própria natureza.
Enquanto os outros exemplares desse segundo dia são inflacionados por uma clara
incapacidade de conjugar e eleger o que é essencial, o de Belmonte urde registros
diferentes, coloca músicas em seqüências inteiras e trabalha com núcleos dramáticos
diferenciados. Muita coisa.
Mas
existe uma consciência da necessidade dessas coisas e o estilo de registro (câmeras
trepidantes, big closes) serve à atmosfera e aos eixos e picos dramáticos que
coloca em cena. Se o encontro
das personagens em A Concepção criava
uma relação de impessoalidade na descaracterização diária daquela comunidade de
pessoas, em Meu Mundo em
Perigo existe um compromisso a partir do encontro, seja ele de uma trágica
casualidade (o atropelamento), ou da simulação de um encontro casual (Eucir e
Rosanne). Também inflacionado em sua estética, existe uma diferença deste com
os outros filmes exibidos no dia: Belmonte não perde de vista um projeto de cinema
que se volta a uma dramaturgia de sentimentos e de sensações (importantes) que
tem o lugar urbano como um espaço de situações limítrofes. Antes que se esqueça:
Milhem Cortaz é o grande ator do cinema brasileiro hoje e Meu Mundo em Perigo
é só mais uma constatação disso. Janeiro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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