As Aventuras de Tintim (The
Adventures of Tintin),
de Steven Spielberg (EUA, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira
Desventuras
em série
O
herói encontra uma pista que o direciona a um destino.
Este apontamento vira uma descarga para uma série de desventuras
que transcorrem durante o trajeto. No ponto final, encontra-se
a pista seguinte, direcionando-lhe a uma nova missão e,
portanto, novos obstáculos a serem vencidos. Para se verificar
a clareza deste mecanismo, basta lançar olhos ao princípio
e ao fim: começa com o repórter Tintim comprando,
por uma libra, a estatueta de um barco lendário numa feira,
deparando-se com a primeira pista da jornada; termina com ele
achando bem mais moedas e, junto delas, uma nova pista, indicando-nos
um sequel. Grosso modo, o
que temos é o joguete de caça-tesouros que tanto
agrada as crianças na Páscoa, com a exceção
de que não se encontra o ovo de chocolate ao seu término.
Se encontra apenas mais papéis. Isto porque a engrenagem
não pode ser interrompida, sob o prejuízo de se
atentar contra a própria trama.
Entregar o prêmio é um perjúrio contra as
sempre perenes aventuras do repórter, aquilo que Spielberg
preza retratar muito mais do que o processo dedutivo da investigação
propriamente dito. É ilustrativo que, a certa altura, esquecemos
as deduções que levam de um ponto a outro. Pode-se
facilmente notar que esta estratégia serve a um propósito
definido: ao esmaecer as arestas da trama, Spielberg faz com que
a atenção de seu espectador se concentre inteiramente
nas sequências de aventura, na gangorra infinita de ações
e reações. O gesto de direção de Spielberg
pode, assim, se focar unicamente em criar momentos de aventura
que transcorrem no intervalo entre as pistas, peripécias
cênicas a serem renovadas a cada sequência, quiçá
a cada corte. O que mais importa são as armadilhas das
quais a criança tem de se esquivar para encontrar o papelzinho
com a dica. O cerne está na crença de que erigir
cenas de aventuras são mais importantes do que as articulações
da trama.
Assim,
vemos As Aventuras de Tintim repetir a idéia de
que o cinema e o mundo criado na tela se justificam por si só,
tal qual os efeitos especiais rebuscados, as parafernálias
tecnológicas de animação/3D e o malabarismo
de câmera. São fim, e não meio. Se há
um art pour l’art, Spielberg procura mais especificamente
um “aventura pela aventura”. Tudo gira em torno de
um exibicionismo franco, que situa o espectador no interior deste
mundo criado a partir da imaginação, com o único
intuito real de exibi-lo em sua forma cinematográfica pronta.
A forma acabada desta função
cinematográfica se encontra naquela que é a cena
mais importante de As Aventuras de Tintim, na qual o
capitão quixotesco e alcoólatra está com
o herói num deserto e tem uma alucinação:
uma miragem de oásis, é também a projeção
de uma lembrança entranhada e antes esquecida, de uma memória
que Haddock precisa recordar para romper com sua maldição
e resgatar o seu tesouro. Na tela, o próprio deserto se
transforma em um mar furioso e se faz imagem pela rememoração.
A lembrança, a alucinação, a lenda passada,
a miragem, são estas as fontes de inspiração
artística que presentificam o espetáculo magnânimo
da aventura na tela.
E no entanto, se estão claramente definidas as diretrizes do projeto, onde é que As Aventuras de Tintim peca e se torna simplesmente enfadonho? Não é porque o filme não provoca frios na barriga, como Wellington Sari diz em seu texto na Contracampo– porque não há suor, arranhões ou caretas, ou outros signos de esforço que o tornariam mais “humano”. Esta é uma exigência de subjetividade e naturalismo que simplesmente não se aplica a um herói que é o perfeito agente da trama de aventura infantil: decifra a charada, escapa às armadilhas e prossegue no enigma invariavelmente rumo à próxima aventura. Ora, se o repórter é a máquina ideal à carta de intenções febris de seu criador, como pode-se cobrar sua humanização sob a suposta máxima de que o que sempre nos comoveria no cinema é um movimento que se assemelhe à vida? Tintim é o investigador perfeitamente astuto simplesmente porque é a projeção de um ideal infantil, aquele que consegue realizar impecavelmente tudo aquilo que a criança gostaria de realizar.
Sabe-se que Hergé estudava arqueologia profundamente, e viajava aos lugares de suas histórias para observá-los. O encanto que os quadrinhos originais causavam está intimamente conectado à proximidade com que o cartunista belga punha o leitor destes fatos arqueológicos. Ao lê-lo, nos sentimos próximos dos Maias, de viagens à Lua ou de tempestades no Egito, pois são todos mistérios deste mundo. Até o momento, a recepção crítica de As Aventuras de Tintim tem falado em fidelidade na adaptação, e Spielberg mesmo corrobora justificando ter se inspirado nas ilustrações até mesmo para a escolha da paleta de cores. Porém, foi ignorada a tática de gênese deste encanto (caso contrário, para ser fiel, teria feito um live action), resultando em um mundo em nada misterioso. Pôs as lendas e os fatos arqueológicos num nível de abstração longínquo e delirante para que suas cenas espetaculares pudessem vir à tona.
O problema de As Aventuras de Tintim é simplesmente ter se sacramentado num limbo por não encontrar o que é que seu conjunto de cenas pode nos oferecer realmente. Spielberg tornou-se vítima deste descompasso. Trabalhou com uma estrutura narrativa sistemática e construiu um repertório de episódios sem oscilações, monótonos, que nos parecem mais um exercício técnico do que uma investigação profunda de seus meios. As cenas são invariavelmente xarope demais para criar um espetáculo. Sua magnitude nunca nos assombra realmente, e não há nada que nos prenda a elas convictamente. O que se encontra no caminho entre um papelzinho e o outro é previsível e pouco instigante, o que faz com que todo o jogo de caça-tesouro não seja realmente instigante.
Março de 2012
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