O
Que Resta do Tempo (The Time That Remains), de Elia Suleiman (Palestina/França/Bélgica/Reino
Unido, 2009) por Fábio Andrade
O
eixo da questão
Logo no princípio de The Time
that Remains – após um prólogo no presente – um soldado israelense discute
com um grupo de palestinos sobre qual direção ele deveria tomar para chegar a
um determinado lugar. A sequência mostra um evento corriqueiro com uma frontalidade
que limita ao extremo o ponto de fuga, e é montada em plano/contraplano, cortados
no eixo, em absoluta simetria. Os dois procedimentos são adotados ao longo de
todo o filme, e é interessante olhar para seus efeitos, que ficam logo claros
nessa primeira cena. Antes de mais nada, a limitação do ponto de fuga delimita
um território (questão ainda mais importante para um diretor palestino) de onde
parte o olhar, que – somado à irônica artificialidade da encenação e à própria
presença de Suleiman como ator e personagem – reitera um óbvio importante: tudo
que é filmado está confinado aos limites dos olhos de um sujeito. Não existe,
portanto, qualquer intenção de pairar acima dos conflitos que constituem a identidade
do povo palestino, pois eles só são acessíveis pelo corpo-a-corpo pessoal. Todo
plano terá um ponto de vista e responderá aos limites de conhecimento de quem
olhar. Essa afirmação leva ao segundo procedimento marcante
em The Time that Remains: ao fazer contraplanos frontais e diretamente
opostos aos planos, Elia Suleiman quebra o eixo dos atores. Na primeira sequência,
esse efeito é extraordinário: quando os homens palestinos dizem que o soldado
israelense deveria ir para um lado, no contraplano ele sempre parece entender
que deveria ir na direção contrária. Ambos falam a mesma coisa, mas a representação
do entendimento é sempre inversa. The Time that Remains é todo feito dessas
pequenas inversões que, mais que um jogo de linguagem, se revelam operações políticas.
Pois Suleiman compreende que, para além dos Estados, a política é uma atividade
pessoal e intransferível. É natural, portanto, que o diretor perceba que a maior
potencialidade de sua arte é falar sobre si mesma – algo que só encontra entrega
de equivalente radicalidade nos filmes recentes de Takeshi Kitano. Essa
auto-referencialidade por vezes chega perto do excesso, mas é equilibrada pela
presença encantadora de Suleiman em tela, com a dura fluidez de seu movimento,
e a voz amordaçada pelo peso do tempo. O peso é uma qualidade essencial para seu
humor, pois a leveza produz exatamente aquilo que o diretor descarta: a possibilidade
de uma visão destacada, flutuante, absoluta. Suleiman nega o plongée em
nome da frontalidade absoluta, sem tirar da câmera a sua gravidade, sem sacrificar
a clareza de quem vê em nome de uma impressão de totalidade. Sua câmera está sempre
na altura dos olhos, e seu humor é direto e auto-referente – mas só alcança tamanho
efeito por ser também auto-irreverente. The Time that Remains transita,
quase sempre equilibrado, no limite tênue onde o falar de si não se configura
como um gesto insuportavelmente vaidoso. Suleiman se oferece ao próprio filme
para ser negado em paradoxo, pois cada nova gag desmonta o sujeito ao fazer
dele um personagem. Mais
do que metaforizar entidades de valor inventado (como são os países, as religiões,
as línguas), o diretor se concentra na maneira como as vidas particulares são
afetadas pela intransigência dessa política-macro, e como os conflitos acabam
funcionando como combustível para si mesmo. Portanto, é necessário passar
por o que é digno do noticiário, mas somente porque isso influencia a política
que realmente lhe interessa: a convivência cotidiana. A história maiúscula toma
a forma de um tanque que vigia, agressivamente, o sujeito; mas, até mesmo em suas
alegorias mais ambiciosas, The Time that Remains nunca tira o foco das
pessoas. A simetria das lembranças é de outra ordem: um vizinho que tenta solucionar
tudo com alguns goles de aguardente; um prato de trigo para kibe que é confundido
com pólvora; o silêncio com que seu pai acolhia o vizinho bêbado que periodicamente
tentava se incendiar em público. Ao final, quando morre sua mãe (com toda a carga
metafórica que isso pode ter), Elia Suleiman senta num banco do hospital e continua
a observar o mundo em toda a sua pequenez. São essas as coisas que persistem na
memória; são esses os tempos que permanecem para Elia Suleiman. Outubro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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