ensaios
Three Times (Zui hao de shi guang),
de Hou Hsiao-hsien (França/Taiwan, 2005)

por Eduardo Valente

Sendo o décimo-sétimo filme dirigido por Hou Hsiao-hsien, é mais que compreensivo que Three Times nos faça pensar em uma série de relações com sua carreira anterior. De fato, ao mesmo tempo que possui algumas características absolutamente únicas, o filme tem algo de um resumo de carreira espalhado por seus "três tempos" (as narrativas independentes de 40 minutos cada que o compõem, e que inclusive originalmente seriam dirigidas por três cineastas distintos).

Three TimesA primeira parte, "Um Tempo para o Amor", se passa em 1966 e seria a que Hou dirigiria desde o nascimento do projeto. Ela se insere com naturalidade na veia profundamente autobiográfica que marca vários de seus primeiros trabalhos "autorais", sendo filmada em grande parte na mesma cidade onde ele rodou Os Garotos de Fengkuei. Assim como o protagonista, Hou serviu o exército naquele momento da história, e assim como ele viveu várias paixões por "garotas do bilhar" (uma das profissões ocupadas pelas jovens na Taiwan de então, de poucas oportunidades de trabalho). A utilização que faz de canções populares de origem ocidental são uma reconstituição do que acontecia na Taiwan daqueles anos pós-Revolução Cultural na China, onde as relações se davam muito mais com os EUA do que com a China continental comunista. No entanto, o contexto externo e histórico é menos importante para Hou do que o fato de ser o tempo de sua juventude, aquele em que tudo parecia mais simples e possível - e assim é impressionante como ele parece conseguir resumir todo o mundo a uma sala de bilhar, da mesma forma que apenas uma tarde jogando juntos constrói toda a relação dos dois personagens, sem necessidade de quase nenhum diálogo entre eles.

Three TimesA segunda parte, "Um Tempo para a Liberdade", se passa em 1911, e esta sim fica totalmente fechada no espaço de uma das casas de cortesãs de então - no que faz pensar imediatamente em Flores de Xangai, longa que explora um ambiente e época semelhantes. Aqui, Hou também insere, de maneira absolutamente orgânica e nada impositiva, uma série de referências à História de Taiwan, outra constante no seu trabalho, e algo que ele enxerga como uma missão, dado o regime fechado que dominou o país por mais de 40 anos, e que o fez considerar que esta História precisava ser reescrita e retirada das mãos oficiais. O protagonista do filme está diretamente envolvido com a briga contra a ocupação japonesa daquele momento, algo que surge no fora de campo do filme mas que dita de fato todo o andamento do relacionamento entre o casal principal. Exceto pela cena final, onde o som ambiente adquire presença cênica (e oprime a personagem principal por lembrá-la dos vários anos ainda a passar ali), esta parte é toda composta sonoramente apenas de música não-diegética (ainda que, em uma cena no começo, sincronizada com a ação). No entanto, mesmo mudo, é a parte do filme em que os personagens mais se falam (através de intertítulos, para nós), compondo uma agridoce ironia de Hou - já que a esta comunicação falada equivale sempre um enorme represamento de sentimentos.

Three TimesFinalmente, a terceira parte, "Um Tempo para a Juventude" reencontra a Taiwan do momento em que o filme se realiza, e ao fazer isso estabelece conexões muito fortes com Millenium Mambo, filme imediatamente anterior de Hou, no qual trabalhou pela primeira vez com Shu Qi, atriz que também protagoniza este filme. Neste episódio, Hou sai dos interiores que dominam a maior parte dos anteriores, e a paisagem urbana caótica de Taipei passa a ter enorme importância nessa balada de amores mal resolvidos, de encontros e desencontros, de tantas opções quanto impossibilidades. Hou afirma ser um pouco melancólico sobre o que entende como as muitas complicações nas relações humanas contemporâneas (em oposição à simplicidade com que vivia a sua juventude), mas também reconhece e afirma que talvez isso se deva ao fato de não ser mais jovem - e que está certo que, para os jovens, deve ser este o "melhor dos tempos".

Vistas em conjunto, as três partes constitutivas de Three Times se unem com enorme coerência ao permitirem que Hou trabalhe estes três elementos essenciais na sua filmografia: memória individual, História coletiva e experiência do presente - entendidos não como separações estanques, mas como dimensões que se cruzam constantemente. De fato, o título em inglês do filme carrega um duplo sentido que é muito importante para a lógica do filme: a expressão Three Times ao mesmo tempo em que significa Três Tempos, algo bastante óbvio no filme, também pode significar Três Vezes, e aí sobressai principalmente a decisão de escalar o mesmo casal de atores principais para viver os três momentos distintos. Muito mais do que qualquer sentido espiritual de reencarnação ou afins, o que está em jogo nessa escolha de Hou é permitir um verdadeiro estudo de rituais e formas de contato entre os corpos de um homem e uma mulher em três momentos tão diferentes - e que sejam os mesmos corpos reais dos mesmos atores amplifica muito esta característica. Neste sentido, as interpretações de Chang Chen e Shu Qi são ainda mais impressionantes, pelo quanto conseguem tornar literalmente orgânico este conceito. Em cada tempo eles se tocam, se olham, se comunicam de maneiras completamente diversas, embora lidem com o mesmo dado principal: dois corpos que se desejam.

Three TimesJá no original em chinês, Three Times tem um título que equivaleria a algo como "Os Melhores Dias" (Best of Times, em inglês). O fato de que o filme narra três histórias de amor cheias de desencontros e impossibilidades poderia permitir que este parecesse apenas mais um destes títulos irônicos tão comuns no cinema contemporâneo (pensamos aqui, por exemplo, em Felicidade ou Beleza Americana entre muitos outros). No entanto, a forma com que Hou filma os desacertos do amor deixa bem claro que para ele estas impossibilidades não impedem nem por um segundo que se perceba que o mais incrível é que os encontros tenham acontecido, e que mesmo sob as maiores dificuldades, a magia se dá sempre que dois corpos vivem esta atração quase inexplicável (em Hou há muito pouco espaço para explicações no que move os personagens, e muito prazer em perceber como eles se movem). Que os desenlaces sejam ou não atingidos é menos vital, portanto, do que que possamos assistir este sentimento partilhado se manifestar na tela de maneira inconfundível - e uma grande parte do fascínio do seu cinema certamente se deve ao fato de que ele consiga dar tamanha palpabilidade ao que é da esfera do sentimento.

Como em tantos outros filmes de Hou, uma enorme parcela da força do filme se deve à câmera de Mark Lee Ping-bin, e sua capacidade de passear pelos espaços de maneira a tornar incrivelmente orgânicos os movimentos dos personagens em cena, parecendo sempre responder a eles como se houvesse um cordão umbilical entre a câmera e o mundo diante dela. Este estilo de câmera possui algo de rítmico e musical na sua condução, e não é surpresa, portanto, que a música desempenhe no filme um papel tão central, sendo incorporada na vida das personagens como um dado não só importantíssimo, mas constitutivo mesmo.

Dezembro de 2010

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