Thor, de Kenneth Branagh (EUA, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira
Shakespeare for dummies
Thor é fruto de uma parceria trapalhona entre o projeto de adaptação dos quadrinhos que a Marvel vem desenvolvendo e o interesse do diretor Kenneth Branagh em atualizações das narrativas shakesperianas que marcam inteiramente sua filmografia desde Henrique V. As intenções não se conjugam, e o resultado é uma armação repleta de curvaturas e reviravoltas emprestadas do bardo, talhada por cenas baratas de soco-e-chute que o diretor não parece ter o menor interesse em filmar. Este processo resulta em uma planificação da trama que procura a verve trágica, monumental e mundana do poeta inglês, mas que pouco condiz com as condições exitenciais de suas figuras infantilizadas, retiradas da coleção resumida for dummies.
Thor
(Chris Hemsworth) não é um aristocrata deparando-se
com a dura culpa de sua condição, mas um George
Bush digital compreendendo que só pode pegar no martelo
quando aprender que, em tempos de terrorismo, não pode
violentar o inimigo para impôr sua justificada superioridade.
Loki (Tom Hiddleston), o "Iago" da patota, não
tem a ambiguidade-obscura ou anárquica do grande vilão
de Othelo: é um rapazinho com síndrome
de inferioridade tentando roubar do irmão o cargo para
o qual acredita estar mais preparado. Mesmo que todos os personagens
tenham suas atitudes justificadas pela retitude dos diálogos,
a exigência de ação do projeto Marvel faz
com que todo este suposto esmero do tecido narrativo se esvaia
numa eleição maniqueista de heróis, vítimas
e vilões. A trama monumentalizante passa como algo inteiramente
apartado da vida mental simples daquelas figuras. É como
se Kenneth Branagh quisesse por que quisesse estufar um certificado
de alta-cultura em um universo com características próprias
pelas quais o autor parece pouco se interessar.
Do mesmo modo, a trama, aos moldes de Othelo,
não faz das cenas de luta momentos auto-suficientes, e
os engendra apenas para servirem como mais um recurso dramatúrgico:
quando Loki tem suas mãos congeladas por um adversário,
depreende-se disto já um indício de sua raça
mestiça e, portanto, de sua futura traição.
As cenas de batalhas se interessam sobretudo por estes vestígios
narrativos minúsculos e, assim, se tornam frias e calculadas,
acessórias a algo maior do que aquilo que está sendo
filmado: um superpoder vira uma característica reveladora
de personalidade, e não uma extensão dela. A pipoca
light vira uma grande peripécia a ser desvendada.
Não menos significativo é
que os melhores momentos de Thor venham a nascer no lugar
que o filme aparentemente rejeita (e onde ironicamente encontra
sua salvação), isto é, na Terra, onde, expulso
do paraíso de Asgard, o herói vive seu castigo.
Do encontro solene e sobriamente absurdo entre os dois mundos
nascem sketches cômicos, pitorescos e afáveis
que elevariam e muito a obra se fossem explorados em seu devido
potencial - mais ou menos tal qual Shakespeare fez, lá
pra suas últimas peças, ao juntar no mesmo plano
o nobre e o plebeu. O 'amor aos homens" que Thor encontra
(muito rapidamente) na Terra é o que lhe resgata um belíssimo
senso de autêntico sacrifício, e seu martelo da justiça
lhe é finalmente devolvido.
Entre
a Terra e Asgard é estabelecida uma dualidade teórica
entre um mundo real e um mundo virtual. Thor retorna de seu castigo
na Terra para o mundo digital de Asgard, mundo dos deuses, para
enfrentar seu irmão. A caracterização de
Loki nos revela um aspecto do posicionamento da obra de Branagh
em relação ao uso do digital: o superpoder do vilão
é dissimular, enganar pela aparência, criar intrigas
pela imagem, um risco que, em tempos onde a digitalização
do mundo se tornou possível, o filme identifica à
encarnação do mal somente para discerní-lo
do herói potente, justo e verdadeiro. Os dois irmãos
são projeções míticas, dois lados
da mesma moeda, dois deuses que se distinguem quanto aos métodos
e finalidades. Neste embate, Branagh e a Marvel rejeitam o raquítico
dissimulador mestiço e abraçam o loiro e forte raça
pura.
No conflito final, Thor também rompe o
túnel entre Asgard e a Terra, eliminando a possibilidade
de retornar ao mundo que lhe redimiu. Crente do poder da evolução
tecnológica de romper as barreiras e invadir novas realidades,
crente da supremacia dos modelos loiros e fortes, o filme deixa
a encargo dos homens a responsabilidade de se encontrarem com
os deuses. Assim, realiza um perigoso rompimento neo-platônico
entre o material e o digital, o real e o ideal. As figuras heróicas
da Marvel são, para os homens, um estimulo ao desenvolvimento
da ciência e de seus próprios conhecimentos - são
modelos a servirem de referência para a nossa existência
mundana, tal qual Kenneth Branagh parece os enxergar. Apesar de
tudo, os homens continuam sendo simplesmente seres inferiores
de quem se pede uma ascensão um tanto quanto vaga.
Ao
tentar superar o Avatar de James Cameron, que estabeleceu
padrões quanto à digitalização do
espaço, Thor se atrapalha com suas próprias
pretensões. O passo adiante, na realidade, é um
passo para trás. Esta confusão é sentida,
sobretudo, no embate irresoluto entre um filme que tem um verdadeiro
respeito para com seu público de fãs de quadrinhos
e que quer, ao mesmo tempo, lhe ofertar um Shakespeare em pó.
A incongruência leva Thor a terminar como um projeto
em crise que aponta poucas saídas reais, e o "amor
aos homens" termina sendo uma triste nostalgia. Nada é
mais perigoso do que perder em definitivo esta espécie
de amor que o filme, trapalhão em suas crenças aristocráticas,
em seu nazismo latente, apenas em seus melhores momentos, de maneira
aparentemente involuntária e muito acertada nos exige.
Maio de 2011
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