Caminho da Liberdade
(The Way Back),
de Peter Weir (EUA, 2010)
por Rodrigo de Oliveira
Poeira no deserto
De imediato, o que mais impressiona em Caminho da Liberdade
é que a liberdade em si, para o filme, é irrepresentável.
Aqui serão expostas meia dúzia de teses sobre o espírito
nobre e perseverante do homem diante da adversidade ou, melhor ainda,
como é justamente quando está sob fogo cerrado que
o mais belo do humano se revela. Nesse quadro, a liberdade - seja
ela anterior ou posterior à prisão nas brutais gulags
do regime stalinista - seria um estado apaziguado demais para despertar
algum tipo de sentimento engrandecedor (e, portanto, drama filmável
e empático). O que se tem neste filme de Peter Weir são
personagens viciados no caminho, na fuga, nos limites físicos
e psicológicos que podem alcançar sem esmorecer, e
a liberdade surge como um anexo, um prêmio de consolação:
ela não gera absolutos tão radicais como a privação
e a opressão, e é no terreno dos absolutos que o filme
caminha.
São
sete os homens reunidos nesta tarefa impossível de fugir
de uma prisão na Sibéria e cruzar todo o continente,
atravessando o Deserto de Gobi e o Himalaia, até chegar
à Índia britânica e não-comunista.Eles
são privados de água, de comida, de qualquer traço
de dignidade, mas a nobreza da jornada não coloca nenhum
valor real em risco: são contra o roubo de alimentos das
fazendas por onde passam, desprezam quem ousa considerarcomer
carne humana dos parceiros já mortos, e muitorapidamente
admitem uma linda menina polonesa no grupo como se seus pais fossem
(é visível o esforço cênico para que
não haja um olhar desviado sequer que sugira um desejo
sexual ou a violência de um estupro - o primeiro passo de
um super-homem é sempre a anulação da sexualidade).
É o bem absoluto, reforçado pelo escoramento na
"história baseada em fatos reais", anunciada
logo no começo do filme.
Curiosamente, a autobiografia de um refugiado polonês lançada
em 1956 que serviu de base para o roteiro foi, nos últimos
anos, desmentida por pesquisadores da história das gulags,
e nem isso parece ter concedido um salvaguardo para o exercício
mais integral da ficção em Peter Weir (ou, quando
o faz, é para colocar Colin Farrell como um gângster
russo e patriota, que tem Lênin e Stalin tatuados no peito,
alívio cômico escancarado). A ficção,
aqui, seria a apresentação de uma ameaça
real à essa harmonia torta que acompanha o grupo, uma vez
que a morte, por si só, não parece ser tão
relevante – os créditos iniciais nos avisam que o
filme é dedicado aos três sobreviventes dessa travessia,
o que transforma a aventura dos oito membros originários
numa gincana de adivinhação das próximas
baixas.
É
a natureza, claro, a inimiga ideal: ainda na prisão, um
capitão avisa aos prisioneiros que os verdadeiros carrascos
não são os soviéticos e suas armas, mas a
própria Sibéria, violenta e devastadora. Nisso,
o jovem polonês Janusz, o fio condutor da narrativa, agricultor
numa região próxima e acostumado a lidar com essa
violência, seria uma espécie de "agente infiltrado",
aquele que fala a língua dos homens (ou do mais respeitável
dos homens, como lembra o americano ranheta interpretado por Ed
Harris, alguém que ainda vai se estrepar por ser tão
gentil) e que também fala a língua da natureza.
É no trecho siberiano que Caminho da Liberdade
apresenta Weir como o cineasta profundamente interessante que
sempre foi, apontando para uma série de alternativas que
serão sustadas logo adiante, quando o frio for substituído
pelo calor, a neve pela areia, e o ruído pelo silêncio
dos beatos. Ali apenas flerta-se com o inumano, com o pré-humano:
um dos fugitivos faz desenhos na parede de uma caverna e é
imediatamente tachado de "o homem ancestral da gulag",
insígnia que não rejeita; e, mais à frente,
os oito acossam um bando de lobos famintos para então comerem
os restos da carniça que eles devoravam.
Mas
se nesse primeiro ato o registro da câmera se perturba com
as condições naturais que o cercam, o resto de Caminho
para Liberdade aponta para uma segurança e uma eloqüência
que não encontram eco na tragédia que o filme nos
quer vender. Peter Weir, que foi responsável por alguns
dos mais perturbadores filmes já lançados, como
Os Carros Que Comeram Paris, A Última Onda
e Picnic na Montanha Misteriosa (todos de sua fase australiana,
pares perfeitos para George Miller, outro belo cineasta local
que foi perdendo com o tempo a irresponsabilidade criativa de
sua obra-prima Mad Max), aqui se contenta no papel de
emoldurador de uma revolução íntima que nunca
se precipita realmente - ela já está dada deste
o início. Ficam os efeitos de superfície, a maquiagem
pesada gritando o quão árida e dura foi a viagem
desses sujeitos, e os planos de grua e helicóptero desmentindo
essa versão: ser homem, e ser bom, até parece fácil.
Junho de 2011
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