O
Leitor (The Reader), de Stephen Daldry (EUA/Alemanha, 2008) por
Cléber Eduardo Falta
de intimidade com uma falsa questão
Se a assinatura
de um diretor é sempre norte para nossas expectativas, a de Stephen Daldry, vinculada
a Billy Elliot e As Horas, tem lugar discreto e vago na memória
critica e afetiva. Uma assinatura que remete a um certo classicismo, não no nível
da maestria, mas da diluição contemporânea que, quando elege regras a seguir,
não as segue como regras de fato. Seu diluído classicismo é mais suave em Billy
Elliot, seu “world british cinema” com seu protagonista-mirim de classe operária,
sensível às artes, e é mais grave e artístico em As Horas, seu drama psico-artístico
hollywoodiano, com protagonista adulta de elite intelectual atormentada
pela própria sensibilidade. Nos dois casos, o mundo dos personagens é um mundo
fechado, com limites claros, mundo de outro momento histórico. É um mundo que
se abre em Billy Elliot, mundo que se introjeta em As Horas. Em
O Leitor, o mundo se expande e se introjeta, ao mesmo tempo. E também fica
nesse lenga-lenga entre assumir uma postura de regras à gramática narrativa e
procurar segui-la sem tanto respeito assim por elas, entre aderir de fato a um
personagem mediador de nossas percepção e transformá-lo em modelo de sensibilidade
com o qual lidaremos à distância. Nem uma invenção, nem a maestria, mas a diluição
– para retomarmos a tríplice categoria para os artistas segundo Ezra Pound. Típico
filme de uma mentalidade à procura de alguma fissura na ordenação (pela memória),
mas com uma procura pouco convicta, seja porque comprometida com o relato (e não
com a linguagem), seja porque não parece acreditar em sua própria proposta dramática.
Esta carrega um material de alto potencial para controvérsias de todas as naturezas,
mas não é carregada pelo diretor para tornar vivas essas polêmicas, com um pulsar
de fato e não apenas semeadas, cerceadas e implodidas por conceitos em contraste,
como se fosse seminário e não imagens de vida, como se fosse retórica e não tecido
orgânico-estético. O Leitor é entorpecido pela indiferença de sua realização
em relação ao filme realizado e aos motivos centrais dos conflitos de seu personagem
principal. Para o filme, a estratégia de aproximação com o protagonista, apesar
de explícita desde o início, é apenas estratégia narrativa e não verdadeira aproximação.
O personagem permanece distante. Quando
saltamos da idade adulta de Michael Berg (Ralph Fiennes), após sua amante de ocasião
defini-lo como homem enigmático e inacessível (a pensamentos, emoções), e caímos
em sua adolescência no fim dos anos 50, pouco antes de viver um caso sexual, afetivo
e literário com uma cobradora de bonde, Hanna (Kate Winslett), estamos em um percurso
de rastreamentos. Procura-se no passado uma chave para os enigmas do presente.
A paixão do adolescente determinará o eixo pelo qual todas as questões de interesse
para o filme serão colocadas. Sem essa paixão, não haveria o drama individual,
somente o histórico. Não haveria proximidade com emoções, e sim com informações.
O que importa, antes da História, é a consciência, assim como a responsabilidade,
uma e outra expostas de maneira oblíqua. Paixão e História, medidas pela experiência,
mas também pela moral, pelas noções de humanidade, de humano, de humanismo.
Em
última instância, após as imagens de encontros entre corpos do adolescente e da
operária anos mais velha, inicia-se um julgamento – literal (institucional) e
expandido (pessoal do personagem e para cada espectador), mas um julgamento limitado,
porque nos é dado a ver um recorte parcial dos envolvidos, apenas seu lado “íntimo”
(se intimidade aqui é possível), desnudo, sem as camadas de tecidos significantes.
Como julgar somente com ações íntimas na imagem e na experiência? Como julgar
pelo fora de campo? Antes de vermos a colocação de Hanna no tribunal (sob julgamento
pelas ações fora de campo), veremos os corpos, o encontro, a crescente afetividade
em uma paixão de verão, as sessões de leitura de Berg para ela, as reviravoltas
de humor dessa sensibilidade estranha. Na segunda parte, somos informados de que
ela foi uma operária analfabeta do nazismo, responsável direta e indiretamente
por algumas centenas de mortes. No entanto, não vemos nenhuma dessas imagens,
apenas alusões e testemunhos, documentos e acusações, sem o mesmo peso da experiência
sexual a qual fomos submetidos na primeira parte do filme (o campo, o corpo, a
imagem). Há,
obviamente, da parte da narração cinematográfica, mais que do protagonista, um
desejo de inocentar Hanna aos olhos do espectador, mostrando-a em uma atividade
de intensificação da vida (o sexo), e em outras de abertura para a beleza (a literatura),
mas poupando-nos de vê-la vestindo um uniforme com uma suástica (o fora de campo).
Somos mobilizados – ou deveríamos ser – pelo desejo de Hanna, pela sensibilidade,
pelo corpo, pela vida: a nudez de Kate Winslett, sim, é uma estratégia de absolvição.
No entanto, O Leitor, como seguidor do manual de enunciações contemporâneas,
quer ouvir todos os lados e expandir seu campo, sem tomar partido nisso. Uma convivência
de operações discursivas manifestadas por diferentes tipos (o amigo, o professor,
a sobrevivente), em diferentes direções e com distintos juízos, no fim das contas,
procura colocar em discussão polifônica a questão da culpa e da inocência, com
argumentações históricas relativizantes, testemunho da experiência empírica e
posicionamentos sem flexibilidade de compreensão, injetando mais uma vez na pauta
a responsabilidade ou não do anônimo no nazismo. Esse rastro
do homem comum na grande narrativa histórica, essa dissociação entre grandes leituras
de comportamento de sociedade e a experiência individualizada das pessoas, nos
coloca diante de duas camadas narrativas. A primeira tem a ver com a própria lógica
das ficções ocidentais, sustentadas em torno do segredo e da revelação, como ouvimos
didaticamente de um professor em dado momento, claramente injetado no filme como
“chave de leitura” (a sala de aula mais de uma vez será empregada como local de
onde surge a voz da “bula”) No caso do segredo, ele é importante para o protagonista,
que esconde uma informação potencialmente relativizante no julgamento de Hanna.
Berg esconde menos porque deseja puni-la, e mais porque sabe que ela mesma esconde
o segredo, sendo, por isso, um segredo a ser mantido como tal para o bem de todos:
o bem dela, porque tem a vergonha preservada; o bem da justiça poética porque
a não-revelação acarreta uma punição e, com a punição, a personagem tem a responsabilidade
atenuada (ou ao menos assim deseja o filme). Filme
e personagem são amalgamados e distanciados desde o primeiro flashback.
Berg é nosso mediador dentro da narrativa. Ele a conduz. Se não vemos a imagem
de Hanna nos campos de concentração, é porque Berg também não vê. Se só temos
a palavra testemunhal, é porque é tudo o que ele tem. Berg vai ao campo de concentração,
porém, para ver se vê alguma coisa. Um algo a mais além das frases de tribunal.
E parece ver esse algo mais, esse vestígio e resíduo da experiência macabra do
holocausto. Mas o que vê ele que não vemos nós? Porque que o que vemos são beliches
vazias, câmeras de gás e arames farpados, ali colocados como imagens banalizadas
e banalizáveis, porque empregadas com a funcionalidade de quem precisa ir adiante,
não com a sensibilidade de quem precisa sentir onde está. O fora de campo se torna
campo, o campo de concentração no campo cinematográfico, em quadro, mas na verdade
esse estar em campo e no campo é esvaziado de qualquer relação entre imagem e
referente. Permanece fora de campo; vazio como as beliches. Não
se faz uma visitinha a um campo de concentração apenas para se ter dali qualquer
imagem com índice de indústria da morte, sobretudo quando esse espaço tem uma
importância dramática decisiva no desenvolvimento do personagem. Essa visitinha
acaba por se moldar a sua ligeireza funcional: sem tempo para respirarmos aquele
lugar, sem abertura para se viver um ambiente, para fazer do fora de campo um
campo de cinema. É de atitudes assim que é realizado O Leitor, desse tipo
de aproximação mediada com os personagens, com o contexto histórico e com os significados
dos espaços. Não mediada apenas, como todo filme, mas mediada por mediações em
cima de mediações, sem querer de fato se sujar com seu material e com seus personagens.
Se há disposição de seduzir pela relativização, de nos ensinar a entender o contexto
dos horrores antes de julgá-los, por que não fazer o serviço completo? Por que
a beleza dos corpos no lugar das atrocidades contra eles? Apagamento como relativização,
com beliches vazias para marcar uma ausência, quando na verdade a questão do espaço
ali é de presenças. O Leitor faz cultivo de uma questão sem ter uma questão
de fato a nos apresentar, porque se trata de uma questão colocada para o filme
e não colocada pelo filme. Sua existência e legitimação, em algum nível qualquer,
é sintoma gritante da irresponsabilidade, na falta de termos melhores, dos narradores
de um tempo histórico tão dicotômico quanto excessivamente apaziguador. Fevereiro
de 2009editoria@revistacinetica.com.br
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