sessão cinética
Um Convidado
bem Trapalhão (The Party),
de Blake Edwards (EUA, 1968)
por Fábio Andrade
Orquestrando
o caos
Tomemos o prólogo de Um Convidado Bem
Trapalhão como uma declaração de princípios:
uma cena de guerra, filmada com todo o decoro épico do
cinemascope, sabotada por dentro por um figurante responsável
apenas por tocar a corneta de batalha. A simples impertinência
daquela presença motiva um corte de diegese, e Blake Edwards
mostrará, em seguida, os bastidores daquela produção.
Durante a preparação de uma cena complicadíssima
- a explosão de uma fortaleza que não poderá
ser reconstruída, e que deverá ser filmada em uma
única tomada - Hrundi V. Bakshi (Peter Sellers), o corneteiro
obstinado, acidentalmente antecipa a explosão, pondo o
prédio ao chão antes mesmo que as câmeras
tenham começado a rodar. Não faltam margens nessa
cena e em todo o filme restante para leituras políticas
- a mais célebre, talvez, a de Pascal Bonitzer para os
Cahiers du Cinema, vendo em Sellers uma alegoria para o terceiro
mundo que, em seguida, destrói uma mansão que simbolizava
Hollywood. Mas há, neste prólogo, uma eloquência
de ruptura que é interna à sua própria organização.
Pois, após explodir a locação empoeirada
daquele épico de guerra, Um Convidado Bem Trapalhão
se trancará em uma casa construída em um estúdio,
mas que funciona como um estúdio de fato, com toda sua
mobilidade interna e sua riqueza de adereços e objetos
de cena expostas e exploradas na mise en scène de
Blake Edwards.
O que temos aí é não somente uma simples
troca de gêneros (o filme de guerra pela comédia
física) e de espaços (os exteriores fidedignos a
uma suposta representação deles próprios
por uma casa construída para não parecer de fato
uma casa), mas sim o traço primeiro de um interesse que
será desenvolvido ao longo de todo o filme: a concentração
absoluta em pouquíssimos elementos que são explorados
em toda sua multiplicidade interna. Pois se há algo ainda
impressionante no cinema de Blake Edwards - para além de
sua anarquia alegre e seu trabalho sempre impressionante de inserção
e mobilidade dos atores no espaço - é justamente
esse encanto diante de um mundo que está em constante transformação
e pode nos surpreender incessantemente, algo já exposto
na batalha épica que, com um corte, se transforma em filme
dentro do filme.
Se
há também, na mudança dos exteriores para
os interiores, um subtexto nesse sentido - afinal, a realidade
áspera das locações é explorada por
um cinema que se quer vida real pelas mesmas pessoas que convertem,
no restante do filme, seus lares em estúdios cheios de
truques de cinema - é porque Blake Edwards opera transformações
semelhantes em diversos níveis dos filmes. Como evidência
maior, a casa, um autômato fabuloso e ridículo tão
próximo do modernismo decadente da casa de Meu Tio,
de Jacques Tati, quanto da organicidade percussiva das portas
que batem na mansão de A Regra do Jogo, de Jean
Renoir, decorado e ambientado com toques da lounge art
- tendência presente na direção de arte daquela
época em filmes tão diferentes quanto A Juventude
da Besta, de Seijun Suzuki, e Cassy Jones - O Magnífico
Sedutor, de Luís Sérgio Person. Blake Edwards
confina sua câmera a este único espaço, mas
esse mesmo espaço se desdobra em um constante jogo de re-significação,
surpreendendo à câmera (vale sempre lembrar que Um
Convidado Bem Trapalhão era também um filme
de método, realizado todo em sequência cronólogica,
com cenas absolutamente improvisadas que determinavam os rumos
das cenas seguintes) e o espectador. Os objetos perdem suas funções
originais e são lentamente transformados pela contingência
do caos coletivo, em uma dinâmica constante de transmutação
não muito distante do Síndromes e um Século,
de Apichatpong Weerasethakul.
Mas tal relação com o espaço
é apenas indício de uma persistência que, em
Um Convidado Bem Trapalhão, funciona como um verdadeiro
ethos realizador. Pois se os objetos, as personagens e
as cenas estão em constante transformação,
isso só acontece porque Blake Edwards inscreve cada um deles
em uma duração cuidadosamente erigida que permite
que essas mudanças sejam percebidas. O cinema de Blake Edwards
vive desse binômio um tanto paradoxal em que as mudanças
incessantes do mundo só são percebidas por um olhar
que se dispõe impassível, sereno em sua obstinação
de expor o mundo ao tempo e os seres ao contato, promovendo e registrando
mudanças que ocorrerão nessa fricção.
Se
as melhores comédias têm sempre algo de político,
por ressaltar o conflito entre o sujeito e uma determinada ordem
de conduta social, Um Convidado Bem Trapalhão traz
esse conflito na relação entre a cena - o caos instaurado
pelo diretor e seus cúmplices/atores - e a câmera -
no caso de Edwards, quase sempre impassível, imperturbável,
tranquila diante da bagunça generalizada que o diretor cuidadosamente
orquestra. Um Convidado Bem Trapalhão é,
portanto, um filme que se nutre da manipulação expressiva
de duas qualidades essenciais do cinema: o espaço e o tempo.
Passado o prólogo, as gags de Um Convidado Bem
Trapalhão são construídas pela distensão
de cada indício de graça em uma duração
fora do comum que transforma o ordinário em extraordinário.
Nas mãos certas, basta um sujeito estar apertado para ir
ao banheiro para se criar 90 minutos de grande cinema.
Abril de 2011
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