O
Nevoeiro (The Mist), de Frank Darabont (EUA, 2007) por
Fábio Andrade A
idade das luzes
Originalmente, Frank Darabont
havia planejado rodar O Nevoeiro em preto e branco. A preferência – mantida
na edição norte-americana do DVD, dupla – é mais do que uma óbvia referência a
um universo cinematográfico ao qual o diretor aproxima o olhar em seu mais novo
filme. Embora exista, aqui, um interesse comum ao cinema de sugestão de um Jacques
Tourneur, por exemplo, a questão cromática é ideológica em O Nevoeiro:
estamos a falar de brancos e negros. À exposição da película, são igualmente prejudiciais
a falta e o excesso de luz. Uma cor é dessaturada pelo escuro ou pela claridade
excessiva: não importa se vemos laranja ou vinho, se a cor que deveríamos ver
é, originalmente, o vermelho. Desertos escaldantes, ou absolutamente congelados,
permanecem desertos. A inversão feita por Darabont é, justamente, a do ponto de
desequilíbrio: vivemos tempos superexpostos. Se, mais marcadamente, as sombras
obscurecem os nós cegos do cinema desde o expressionismo alemão, O Nevoeiro
trabalha em chave oposta. É preciso olhar para aquilo que se esconde no excesso
de claridade. Uma pequena cidade americana é, da noite para
o dia, encoberta por uma impenetrável bruma. Um grupo de pessoas se refugia, por
acaso, em um supermercado. De início, não sabemos o que se esconde sob o nevoeiro
– sabemos, apenas, que é mortal. O confinamento traz, consigo, uma série de pressupostos
– entre eles, o desejo de olhar para esse espaço como um microcosmo, e de trabalhar
o encurralamento como um jogo de tensões políticas. Embora a proximidade de lançamento
insinue paralelos com Fim dos Tempos, de M. Night Shyamalan, essa organização
espacial é uma diferença brutal: se em Fim dos Tempos o confinamento é
destruído como alternativa à onipresente ameaça (é um filme de trânsito ininterrupto),
aqui ele funciona – até certo ponto – como porto-seguro. O Nevoeiro estaria,
nesse sentido, mais próximo a filmes que usam a redução social como disparo de
uma crise: Sinais¸ do próprio Shyamalan; Os Pássaros, de Alfred
Hitchcock; O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel; e, sobretudo, Dawn of
the Dead (tanto a obra-prima seminal de George A. Romero, quanto a bela refilmagem
de Zack Snyder). Há,
portanto, representantes de diversas camadas da sociedade: o artista, a professora,
a lei, a força militar, o caipira, o rebelde, a religiosa. Em sua primeira meia
hora, O Nevoeiro mostra a organização dessas camadas como sociedade do
espetáculo; uma vez que os tentáculos da bruma levam sua primeira vítima, o equilíbrio
interno daquela sociedade passa a ser disputado por forças que se manifestam em
retórica: pragmatismo, autoritarismo, ceticismo, misticismo. Todos candidatos
a líderes absolutamente certos da clareza de suas convicções. Clareza, nesse caso,
é uma palavra essencial, pois é essa cegueira do excesso que perturba o fluxo
da vida em O Nevoeiro: todas essas forças sofrem da miopia de quem acredita
tudo ver. O nevoeiro é a tradução visual para essa certeza, essa clareza excessiva
que faz invisível até mesmo aquilo que está diante do nariz. É a superexposição
como cenário transitável. A
olhos apressados, o filme parece ser organizado como um panfleto bastante banal
contra o fanatismo religioso – representado, magistralmente, pela oratória inflamada
da personagem de Marcia Gay Harden. À medida que o confinamento se prolonga, suas
palavras ecoam em um número maior de cabeças, gerando seguidores capazes de toda
sorte de violência. É preciso, porém, estar atento a uma essencial posição narrativa
tomada pelo filme: ele começa e termina ao lado de David Crayton (Thomas Jane).
Mais do que uma mera escolha de protagonista, a eleição do ponto-de-vista é usada
como o clássico recurso literário conhecido como “narrador inconfiável”. Devemos
acreditar nas verdades de Crayton tanto quanto nas de Bentinho, de Dom Casmurro,
ou de Betty/Diane em Cidade dos Sonhos; o que vemos em tela é eternamente
afetado pela verdade do sujeito. Essa transparente parcialidade narrativa fica
clara pela própria maneira como a câmera se movimenta: quando o confinamento é
absoluto, ela se dá a liberdade de passear pelo lado de fora, mergulhando sozinha
na ameaça branca. É uma câmera capaz de escolher um ponto-de-vista; ela pode tanto
reportar a vivência daqueles personagens, como olhá-los de fora, livre das paredes
que os obrigam à convivência. É uma câmera crítica. Quase
todos os personagens de O Nevoeiro estão mergulhados em uma mesma cegueira,
um mesmo excesso de convicção; o que lhes falta é, justamente, a dúvida. Não à
toa, os insetos que habitam o nevoeiro cobrem suas vítimas em uma espessa teia,
tão branca e opaca quanto o ar, do lado de fora. Essa repetição de cores e texturas
se mostra narrativamente expressiva quando descobrimos que a ameaça externa se
tornara, também, interna. As vítimas presas às teias viram depósitos vivos para
ovos de insetos, da mesma maneira que a cegueira externa ganha, aos poucos, força
dentro da própria organização comunitária dentro do supermercado. O perigo maior
de se acreditar vidente, iluminado, é justamente o contágio. Essa
idéia é levada às últimas conseqüências na resolução final: quando David, seu
filho e um grupo de “fiéis” decidem abandonar o supermercado, ele volta para a
casa para encontrar o corpo de sua mulher. Coberta pelo branco das teias, seu
rosto é igualmente fúnebre e santo, evocando a morte ou a tranqüilidade dos ícones
religiosos. Com o fim da gasolina ainda sob a bruma, o grupo opta pelo suicídio
coletivo. Quatro balas para cinco cabeças; David mata a todos, e sai do carro,
esperando que uma das criaturas o leve para o invisível. A neblina começa a dissipar
e vemos carros de resgate chegando. Dentro de um deles, um rosto familiar: a primeira
personagem a abandonar o supermercado. Apesar do medo, enfrentara a bruma sozinha
para ir buscar os filhos. Chega-se, enfim, a um ponto comum com Fim dos Tempos:
chegado o apocalipse, resta passar os últimos momentos do lado de quem se
ama. David a reconhece e, pela primeira vez desde a chegada da bruma, o vemos
cercado por um mundo concreto e em pulsante movimento. O mundo exterior foi devolvido
à sua visibilidade. Derrubado de sua certeza David pode, enfim, enxergar as conseqüências
de sua iluminada cegueira. Setembro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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