in loco - cobertura dos festivais
Planeta Solitário (The Loneliest Planet),
de Julia Loktev (EUA/Alemanha, 2011)
por Fábio Andrade

As convenções da natureza

Em dado momento de Planeta Solitário, Nica (Hani Furstenberg), seu namorado Alex (Gael García Bernal) e o guia Dato (Bidzina Gujabidze) estão reunidos ao redor de uma fogueira nas terras ermas da Geórgia. Ela tenta ensinar a pronúncia correta de algumas palavras em inglês para Dato, repetindo o bordão “I take my bitch to the beach”. A cena se estende por vários minutos, enquanto os três personagens se colocam ao sabor das pequenas variações das palavras repetidas, enfatizando as nuances que diferenciam “bitch” de “beach”. Das “bitches” e “beaches”, somos transportados imediatamente para 1986, mais especificamente para a cena de Down by Law, de Jim Jarmusch, em que Roberto Benigni cravava a tendência iconográfica do banal com seu “I scream, you scream, we all scream for ice cream”, e o gosto pela rarefação dramatúrgica que, àquele momento, ganhava novos ares ao aportar em território norte-americano.

Planeta Solitário é uma continuação desta mesma idéia, mas que aqui já é necessariamente filtrada pela procura de Werner Herzog pelo autêntico em territórios inexplorados, e as paisagens em cinemascope de Gerry, de Gus Van Sant. A câmera contemplativa permite prestar atenção às pequenas modulações de tempos “sem ação” (e claro que há ações o tempo todo, mas são ações de uma outra natureza), em uma partitura de tempos fracos que faz pensar no Old Joy, de Kelly Reichardt. Alex escolhe verbos para que Nica conjugue em espanhol. Sua preferência, naturalmente, é pelos verbos irregulares – aqueles que funcionam por suas próprias regras. A fala faz curvas como as montanhas retorcem a composição calculada em cinemascope: dentro daquela rígida moldura, há variações, ondas, desenhos que podem ser percebidos justamente pelo contraste com a dureza do quadro.

Há uma certa ironia, porém, nessa afirmação da exceção – dos verbos irregulares ao turismo que não se quer turístico – que, por sua vez, também já virou convenção, já funciona de acordo com um conjunto de regras hoje claro e definido o suficiente para remeterem a tantos pares. Perto do final do filme, antes de um quase “clímax”, Dato, o guia, diz a Nica que escolheu ir para as montanhas depois de perder vários amigos (e, indiretamente, mulher e filho) para a guerra. “Aqui é a vida real. Você pode entender o que tudo significa. O fogo, a água...”. Como reação à ideologia, Dato se volta à concretude das coisas, como se ela não permitisse ideologia – ou como se a ideologia não fosse, também, criada a partir do concreto, como deixam claro os conflitos separatistas que por ali permanecem em brasas que parecem apagadas, mas nunca deixam de queimar.    

Planeta Solitário
é um pouco mais inteligente, pois reconhece logo em seu título – e também no trabalho de câmera, que busca sempre criar recortes dentro dos planos de conjunto – que essa harmonia é apenas uma outra forma de solidão. Mas, com exceção de um ou outro momento em que armas (concretas ou figurativas) são apontadas para o rosto dos protagonistas, e que os rastros de um momento anterior interpelam o contato com o presente (como a casa destruída que os personagens encontra), a montagem se limitará a fazer associações físicas, indo de um belo plano de Nica fazendo xixi agachada no mato, para a água, o rio, e por aí vai. Por vias transversas, Planeta Solitário reafirma essa aparência de uma ordem ontológica, abrindo mão de certas convenções mas aderindo outras – supostamente mais livres, mais naturais, mas na verdade igualmente convencionais, artificiais. E esse naturalismo que joga o filme em um campo já tão definido e reconhecível no cinema contemporâneo traz a estranha impressão de que, não importa o quão raras as paisagens, esse mesmo esplendor de uma natureza que se impõe em Planeta Solitário já foi visto pelo cinema diversas vezes antes.

Outubro de 2012

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