textículos - edição
especial mostra de sp 2010
Air Doll (Kuki Ningyo),
de Hirokzu Kore-eda (Japão, 2009)
por Eduardo Valente
Ao
abraçar um elemento do fantástico em uma de suas crônicas
do cotidiano japonês (uma boneca inflável que ganha vida
e passa a questionar sua existência), Hirokazu Kore-eda se revela
bastante fora do seu ambiente. Isso acontece principalmente pelo
fato do diretor parecer nunca se dar conta, ao longo de toda a
duração de seu filme (que, aliás, dura bem uns 40 minutos mais
do que sua história poderia permitir), justamente do quanto há
de ridículo na sua proposta – não havendo aí nesta frase nenhum
julgamento de valor, porque o ridículo pode ser grande cinema.
Mas, pelo contrário, o filme de Kore-eda parece o tempo todo se
balançar entre duas características que dificilmente se dão bem:
por um lado, uma ingenuidade absoluta que está na base de suas
intenções e de seu roteiro (que fará com que, por exemplo,
a boneca inflável empreste literalmente um “sopro de vida” aos
outros personagens, ao morrer desinflando-se); só que uma
ingenuidade que se apresenta embrulhada numa forma auto-importante
de “cinema de arte”, vista por exemplos nos constantes travellings
e num uso da trilha sonora que parece precisar gritar a cada plano
a “sensibilidade especial” que o filme proporia. Com isso, de
fato, a boneca inflável talvez seja a coisa mais viva em
Air Doll.
Amor
Como Veneno (Un poison violent),
de Katell Quillévéré (França, 2010)
por Eduardo Valente
Katell
Quillévéré escolhe um dos dois caminhos mais complicados para
um primeiro longa: enquanto o outro seria buscar a ousadia de
ambicionar realizar algo nunca feito antes na história do cinema,
o que ela trilha é o de contar mais uma vez uma das histórias
mais contadas desde sempre – no caso, a da descoberta da sexualidade
por uma menina (aqui, enquanto passa férias na casa dos familiares
no interior da França). Para se distinguir, a partir de uma narrativa
tão conhecida, impossível mesmo de conter surpresa maior, só mesmo
demonstrando algum talento especial, seja no que tange a direção
de atores, a narrativa, a mise-en-scène... em suma, qualquer
elemento que seja. Mas não é o caso aqui: o filme segue adiante
ao longo de sua hora e meia com muito pouco “calor”, por mais
que os corpos (e almas, já que o filme tem toda uma parte ligada
ao catolicismo da família, e a cerimônia de Confirmação da jovem)
sejam filmados em plena “ebulição”. Não parece um acaso que ele
apele para a música folk americana toda vez que sente necessidade
de um momento mais poético, como se não confiasse que simplesmente
o que filma tivesse este poder. É, em suma, um filme de enormes
boas intenções, e que as confirma apenas parcialmente e de forma
muito menos marcante, por exemplo, do que uma estreia na direção
com várias semelhanças a esta, a de Mia Hansen-Love
que, como Quillévéré, apresentou seu primeiro
filme na mesma Quinzena dos Realizadores de Cannes, mais ou menos
com a mesma idade.
A Antropóloga,
de Zeca Pires (Brasil, 2010)
por Filipe Furtado
Este
segundo longa de Zeca Pires (que antes cometera Procuradas)
ilustra muito bem como nenhum gênero cinematográfico expõe tanto
seu cineasta quanto o suspense/horror. Não há texto, atores ou
montador que possam resgatar um filme da falta de habilidade do
seu realizador, e logo na primeira tentativa canhestra de gerar
tensão, A Antropóloga deixa Pires totalmente nu. O que
se segue são algumas das mais constrangedoras tentativas de estabelecer
climas de todo o cinema brasileiro. Movimentos de câmera, trilha
sonora, disposição de atores no plano, tudo parece conspirar contra
a capacidade do filme de envolver o espectador. Há algum potencial
na comunidade de imigrantes dos Açores em Santa Catarina onde
a ação do filme é situada, mas mesmo isto é sabotado pelo tom
um tanto exótico/genérico com que A Antropóloga envolve
as lendas de bruxaria que movem a trama e por vezes sugerem um
análogo com alguma produção do gênero onde o protagonista estrangeiro
termina em alguma ilhota caribenha e se envolve com as crendices
locais. A Antropóloga não é somente um filme fragilíssimo,
mas caso típico da produção de gênero que consegue ao mesmo tempo
não acreditar na força da sua própria dramaturgia e se levar muito
a sério. Em suma, o pior dos mundos.
A Fábrica
de Tigres (The Tiger Factory),
de Woo Ming Jin (Malásia/Japão, 2010)
por Filipe Furtado
Nos
últimos anos criou-se certo interesse pelo chamado Novo Cinema
Malaio, sobretudo no chamado primeiro escalão dos festivais europeus
alternativos (Roterdã, Locarno, Turim). Woo Ming Jin se estabeleceu,
ao longo de seus quatro longas, como o mais celebrado produto
local e é sob este contexto que encontramos este A Fabrica
de Tigres. Diante deste primeiro contato, o que notamos é
um aluno aplicado para a lógica comercial do baixo clero dos festivais
europeus: desdramatização, miséria humana exposta cena após cena,
a câmera na mão à Dardenne. O que não notamos é justamente um
pulso e ponta de vista fortes nesta história sobre a pós-adolescente
malaia que quer imigrar ao Japão e acaba envolvida pela tia numa
“fabrica de bebês”. É sintomático que as questões econômicas que
movem sua trama surjam aqui literalmente como verdadeiros ganchos
de entrada para o espectador que interessam ao filme só no que
permitem formular sua lógica de miserabilismo de um tom só. Tivesse
espaço para o senso de humor, A Fábrica de Tigres talvez
reconhecesse a ironia do seu título já que ele próprio é um produto
manufaturado. Seu verdadeiro sucesso pouco tem a ver com seus
resultados estéticos, mas com sua seleção para a Quinzena dos
Realizadores em
Cannes. Agora seu cineasta aguarda ansioso a
promoção para Un Certain Regard.
Uma
Família (En Familie),
de Pernille Fischer Christensen (Dinamarca, 2010)
por Eduardo Valente
Já
a partir do seu título, Uma Família deixa bem clara sua
maior ambição: a de ser um filme sobre “gente como a gente” (leia-se
aí principalmente “gente como você que está na platéia”). É um
cinema, em suma, que não acredita na arte como um encontro de
alteridades que pode levar a um entendimento outro do mundo através
do diferente, mas sim do reconhecimento absoluto: “é assim mesmo
que é a vida – que bom que não estou sozinho no meu sofrimento”.
Claro, porém, que este “assim mesmo” virá embalado em bela fotografia
em scope e trilha sonora constante e emotiva – porque trata-se,
afinal, de um “assim mesmo aumentado” (para justificar seu nobre
estatuto de arte). No entanto, por trás da sua bela lógica do
“não existe o doce sem o duro” (devidamente justificada discursivamente
no filme pela prática como padeiros da tal “família”), Uma
Família se diferencia muito pouco do tradicional “filme de
doença da semana”, uma instituição da TV americana geralmente
importada aqui pelo famoso Supercine: suas emoções são tão cientificamente
estudadas quanto, assim como sua manipulação da linguagem objetiva
o mesmo “mínimo denominador comum”. Sua exploração do espetáculo
da morte é tão obscena quanto, ou na verdade muito mais até (pois
se disfarça de algo mais), do que de qualquer pretenso filme que
“explora a violência” – só que, claro, sendo dinamarquês e em
scope, ele recebe o tratamento nobre do mundo do cinema,
com lugar garantido na competição do Festival de Berlin.
Gol a Gol, de Adriano Esturilho e
Fabio Allon (Brasil, 2010)
por Filipe Furtado
Pode-se
a principio simpatizar com o desejo dos responsáveis por Gol
a Gol de construir uma espécie de ficção apocalíptica alegórica,
o que o coloca num espaço bastante único na nossa produção de
cinema. Não se passam muitos minutos, porém, antes que suas limitações
fiquem bem expostas. A dupla Adriano Esturilho e Fabio Allon aposta
num uso extensivo da trilha sonora e da montagem de associações
para buscar um impacto que nunca alcança o espectador – pelo contrário,
o tom over e incessante com que conduzem o filme aos poucos
eliminam mesmo o mínimo de curiosidade que suas seqüências iniciais
poderiam despertar. Um amigo descreveu-o na saída, de forma bem
adequada, como uma “ópera rock escrita pelo Humberto Gessinger”
– e como o espectador se sentir diante de tal descrição definirá
quão suportável Gol a Gol será para ele. Dentro da sua
pompa um tanto risível, o filme aos poucos vai se movendo da sua
proposta inicial de filme-desastre rumo a uma chave de retorno
nostálgico a um momento anterior. Todo Gol a Gol é na verdade
um esforço nesta direção: uma tentativa de limpar os traumas,
seja os pessoais, seja os do mundo, de voltar a uma era descomplicada.
Não deixa de ser muito curioso que o filme faça um uso exploit
bem questionável de elementos de história contemporânea, já que
todo seu movimento é justamente rumo a um desengajamento completo
com ela. Se este já seria um projeto suspeito, o fato é que falta
a Esturilho e Allon sequer o domínio básico para conseguir fazê-lo
fluir.
Histórias
Reais de um Mentiroso,
de Mariana Caltabiano (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Nas
entrevistas e apresentações que tem feito do seu filme VIPs,
ficção baseada no livro que deu origem a este documentário aqui,
o diretor Toniko Melo curiosamente diz que “essa história só podia
ser uma ficção”. A julgar por Histórias Reais de um Mentiroso,
talvez ele tenha razão. Porque depois dos primeiros cinco minutos,
em que a diretora coloca em jogo toda uma série de ferramentas
instigantes (como animação, música irônica, falsas imagens de
arquivo) para brincar com a idéia de fabulação, que é intrínseca
ao personagem de Marcelo (protagonista do documentário), o filme
parece se esvaziar de idéias realmente potentes como cinema, e
passa praticamente a fazer uma longuíssima reportagem, ouvindo
principalmente a voz dele. Claro, entendemos que não dá para saber
se essas histórias são reais ou não, mas ainda assim essa constatação
dura somente um certo tempo como de real interesse. A tentativa
da cineasta de se inserir como personagem, limitada como é a praticamente
só o começo e uma “reviravolta” final também parece subutilizada
demais para realmente interessar. O que sobra de real força são
as imagens originais de Marcelo “atuando”, seja no programa Amaury
Jr, seja no caso da rebelião de cadeia. São momentos de brilho
no que acaba passando como uma longa conversa com um pescador
– e aí talvez fosse mais interessante explorar mais longamente
este discurso, e não ficar intervindo e ilustrando ele o tempo
todo.
Howl (idem), de
Rob Epstein e Jeffrey Friedman (EUA, 2010)
por Filipe Furtado
Howl
se constrói através de 3 grupos de seqüência distintas: uma entrevista
de Allen Ginsberg (James Franco); a primeira leitura pública de
“Howl” (ilustrada com ajuda de animação); e o julgamento que o
editor de Ginsberg sofreu por publicar material obsceno. É um
filme que se esforça muito para jogar um olhar arejado sobre a
obra de Ginsberg, mas que termina se revelando bem distante disso.
A certa altura, um crítico literário desmonta o argumento do promotor
dizendo que não faz sentido interpretar poesia sob um olhar de
prosa, e acaba oferecendo a melhor porta de entrada do filme.
A despeito do desejo poético de Epstein e Friedman, seu filme
existe todo sob uma lógica mimética que lhe esvazia. A começar
pela presença de Franco, que faz pouco mais do que imitar os maneirismos
do jovem Ginsberg, passando pelo julgamento todo retirado dos
autos e terminando com a animação que, se não reproduz literalmente
o poema, passa perto o suficiente disso na sua ilustração para
empobrecer as palavras do poeta. De fato, os únicos momentos de
força real de Howl se dão quando os cineastas voltam suas
câmeras somente para Franco no palco a declamar o poema: a performance
do ator faz mais para articular a força da obra do poeta do que
todos os truques de que os diretores lançam mão. Se a obra de
Ginsberg interessa justamente pela sua vitalidade, Howl
se revela um filme quase desprovido de vida.
Lily Sometimes (Pieds
nus sur les Limaces),
de Fabienne Berthaud (França, 2010)
por Filipe Furtado
O
dado mais relevante de Lily Sometimes é o
seu final. Não exatamente o que acontece nele, mas a forma como
Fabienne Berthaud decide apresentá-lo: depois de quase duas horas lidando
com um conflito complicado, o filme basicamente o resolve num
misto de trilha sonora e montagem. Atacar diretamente seu drama
é algo que Berthaud, no fundo, evita
ao máximo: seu filme é fugidio, buscando sempre imagens que acalmem
o desarranjo no seu centro. É, na verdade, o mais careta dos filmes
possíveis sobre uma personagem desestabilizadora. A proposta
inicial – depois da morte da mãe, irmã responsável precisa tomar
conta da caçula, que vive num mundo próprio numa fronteira entre
o emocionalmente imaturo e a debilidade – tem um potencial para
abarcar muito mais do que o filme tem interesse. Qualquer energia
de Lily Sometimes reside na irmã “louca”, e, logo, na atuação
de Ludvine Sagnier,
mas previsivelmente o real interesse de Berthaud
está com a personagem de Diane Kruger
e em como ela aprende algo com a aparente loucura de sua irmã.
É uma opção que termina por desequilibrar o filme já que, como
Lily Sometimes
é incapaz de genuinamente abraçar sua personagem-título, sua trajetória
dramática diz algo que suas imagens negam. È um filme “anárquico”
filmado de um ponto de vista conservador. Lily
Sometimes termina sugerindo um desses
best sellers consumidos por senhoras de classe média, no qual
a protagonista se auto-atualiza conhecendo “o outro lado mundo”
– mas a uma distância suficiente de forma a não ofender as sensibilidades
das suas leitoras-alvo. Não surpreende que o filme se revele incapaz
de dramatizar sua própria conclusão: seu olhar só a compreende
como um conceito abstrato.
Mi Vida con Carlos, de German
Berger
(Chile/Espanha/Alemanha, 2010)
por Francis Vogner
dos Reis
Se não é um filme formidável,
e se às vezes cria imagens poéticas bem inócuas
pra descrever alguns sentimentos, Mi Vida con Carlos
inegavelmente tem uma paixão que transforma o relato de
uma vida devastada pela ditadura chilena em um diário pessoal;
um ponto de vista da História, sem resvalar na instrumentalização
das imagens para fazer denúncia. É um diário
pessoal historicizado.O diretor German Berger tenta mapear as
ausências na sua vida, especificamente a ausência
de seu pai, Carlos Berger, assassinado na ditadura de Pinochet.
Esse "mapeamento" revela, na verdade, toda uma vida
desconfigurada pelo assassinato de Carlos, que aponta uma perda
gradativa de identidade da família. Por mais que vejamos
Berger criando rituais simbólicos para "reencontrar"
o pai; por mais que ele encontre na sua mulher e nas suas filhas
uma possibilidade resgatar sentido e identidade pra si; e por
mais que a bravura de sua mãe seja o sinal mais claro de
vitalidade na sua história, ele ainda sabe que, para o
aspecto simbólico da morte de Pinochet, as poucas imagens
que tem do pai (correndo para praia em uma filmagem em super 8,
um retrato, algumas fotos de família) não são
capazes de reconstituir memória e nem de encerrar sentido
à sua busca. Os vácuos do passado arrefecem uma
raiva desse mesmo passado de truculência fascista, uma raiva
propositiva, não ressentida. A raiva e o amor de Berger
são capazes de não fazer da tragédia histórica
e pessoal coisa determinista. Ele olha pra frente.
O Mito da Liberdade
(The Myth of the American Sleepover),
de David Robert Mitchell (EUA, 2010)
por Eduardo Valente
O
título original de O Mito da Liberdade (nada generalista,
ao contrário da sua "tradução")
ajuda bem mais a entendermos o quanto David Robert Mitchell sabe
que está mergulhando não apenas em águas muito navegadas pelo
próprio cinema, como também em uma instituição americana da vida
da juventude. Não surpreende, portanto, que seu filme pareça ter
doses iguais de um olhar atento para os pequenos rituais e gestos
que nos lembra muito a aproximação de um Superbad e de
um desejo de abraçar uma enorme quantidade de personagens e situações-chave
que faz pensar muito mais nos filmes-painel de um Robert Altman
dos anos 70. Nesse desejo de crônica de um espaço-tempo específicos,
Mitchell se sai muito bem no interior das cenas, dando a elas
o peso exato que elas parecem possuir para seus protagonistas.
No entanto, é difícil não sair do filme com um incômodo com o
tanto que ele parece fugir da carnalidade mesmo que é o centro
de tudo que encena – seus adolescentes (e pós-adolescentes) invariavelmente
terminam com seus desejos sexuais ou frustrados ou sendo punidos
por ele. Existe um ar de bom mocismo excessivo que, este sim,
em nada se aproxima de suas fontes (Apatow e Altman são tudo menos
conservadores, no sentido político do termo), e que termina desinflando
boa parte do entusiasmo que o olho atento do cineasta causa, pelo
simples fato de que torna a adolescência por demais desprovida
da autêntica energia que o sexo impõe a ela.
O Outro Mundo (L’Autre
Monde), de Gilles Marchand (França, 2010)
por Filipe Furtado
Se
o primeiro longa de Gilles Marchand, Quem Matou Bambi?,
era uma diluição de Dario Argento voltada para espectadores que
jamais gastariam seu tempo com cinema de horror italiano, este
seu segundo trabalho propõe uma variação sobre este mesmo principio
(sendo a fonte em questão um cyber thriller muito menos
interessante que os melhores trabalhos do mestre italiano). O
Outro Mundo comprova o quanto a receita de Marchand, e seu
habitual comparsa Dominik Moll, é fechada: adiciona-se uma suposta
elegância de filme de arte ao material surrado de gênero, acrescenta-se
um gancho esperto como verniz extra, e aí é torcer para que o
bom elenco segure o filme. Após 4 longas (se incluirmos Harry
Chegou para Ajudar e Lemming, dirigidos por Moll) a
fórmula ainda não encontrou o ponto. Aqui, temos um rapaz fascinado
por uma garota mórbida ao qual ele salvará do suicídio, e como
grande diferencial as seqüências de animação que propõem o videogame
à Second Life que ele usa para se encontrar com ela. O que falta
a Marchand e Moll é sobretudo imaginação para lidar com um material
como este, o que fica claro nas seqüências do videogame-título
que nunca sugerem mais que regurgitação óbvia de cada imagem pronta
sobre este universo. Sobra o filme seguir cada passo inevitável
da sua trama, enquanto o protagonista se perde num meio cada vez
menos saudável, sem que O Outro Mundo jamais sugira qualquer
olhar sobre o que transcorre para além da regurgitação envernizada.
Picco (idem),
de Philip Koch (Alemanha, 2010)
por Eduardo Valente
Na
sua primeira hora de duração, Picco é pouco mais do que
um digno representante de um gênero de características bastante
conhecidas: o “filme de prisão”, que aqui surge em sua vertente
de centro de detenção juvenil. Basicamente, o expediente principal
é conhecido de todos: atrelar o olhar do espectador ao de um recém-chegado,
que sofre para se adaptar ao ambiente hostil e para conhecer,
junto conosco, as regras e rituais que compõem este espaço. O
verdadeiro objetivo de Phillip Koch é mais complexo, porém – e,
por isso mesmo, mais insidioso e, ao final, mais grotesco. Ao
nos irmanar com este personagem, ele prepara o golpe para sua
última meia hora, que consiste de uma longuíssima sessão de tortura
psicológica e física, onde ao “novato” com quem nos identificamos
é colocado o dilema de reagir ou tornar-se mais um como os outros.
Na sua definição, claro está, reside o “choque moral” que Koch
planeja atingir, tão mais sórdido porque, para que este chegue,
o filme está disposto a detidas estetizações do sofrimento, tão
indecentes quanto a de qualquer episódio de Jogos Mortais
– ou, na verdade, muito mais indecentes, porque buscam, ao final,
“nos fazer pensar e nos passar um sabão”. É daí, deste baixo pedestal,
que Picco se atira, e que o faça com considerável domínio
de construção de clima e de espaço cinematográfico só o torna
mais detestável.
Ponto Org, de Patrícia Moran
(Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Embora
Ponto Org seja seu primeiro longa, Patrícia Moran está
bem longe de poder ser chamada de “estreante”, pois sua trajetória
no audiovisual brasileiro remete aos anos 80 e à cena dos realizadores
que fizeram de Belo Horizonte então um pólo essencial do nascedouro
de uma arte do então chamado “vídeo”. Entender o filme a partir
dessa trajetória certamente nos ajuda a ampliar o escopo dos movimentos
– embora não sirva para atenuar suas impossibilidades. Porque
o fato é que se Ponto Org herda muito da inquietação de
uma realizadora que sempre gostou de passear por formatos (narrativos
e formais), sendo de difícil categorização como objeto audiovisual,
também é difícil de negar o dado empírico de que sua adaptação
a este formato mais “careta” do cinema que muitas vezes é o longa-metragem
(seja por sua duração, seja por sua adequação ao formato clássico
da exibição na tela grande/sala escura) não se dá com facilidade.
Assim, embora Ponto Org pareça tomado por muitas questões
bastante caras ao trabalho de sua diretora – seja de ordem temática
(a solidão e o despertencimento, o espaço da grande cidade como
fonte de fascínio e agressão), seja de ordem formal (a intervenção
visual sobre a realidade, a estética do vídeo, a incorporação
de todo um lixo tecnológico) – ele não consegue ao longo de sua
duração fazer com que estas questões ultrapassem o espaço da tela
para tornarem-se pregnantes ao espectador – seja no sentido sensorial,
seja temático ou narrativo. É um curioso primeiro longa que tem
ao mesmo tempo o sentimento de um resumo de carreira e de lançamento
de propostas, e que talvez por isso mesmo tente fazer coisas demais
não podendo se dedicar a elas. O que talvez até faça sentido num
filme para o qual as idéias de fluxo e descontinuidade são importantes
– mas que acaba soando melhor pensado numa folha de papel do que
na experiência da sua fruição.
O Senhor do Labirinto,
de Geraldo Motta (Brasil, 2010)
por Filipe Furtado
Logo
nas suas rebuscadas primeiras imagens, o projeto de O Senhor do
Labirinto fica claro: usar tintas fortes e o máximo de mimetismo
para realizar um respeitoso e protocolar retrato de Arthur Bispo
do Rosário. Geraldo Motta não se farta a mão pesada para registrar
a trajetória do seu biografado, e confia na combinação da presença
de cena de Flavio Baruaqui e da fotografia da Katia Coelho para
atingir o espectador. O que falta a O Senhor do Labirinto
é justamente o que sobrava ao seu homenageado: um ponto de vista.
Não há um olhar aqui, somente uma série de pontos importantes
que precisam ser ilustrados de forma correta e edificante. O
que termina tornando o trabalho de Motta pesado e pouquíssimo
fluente. O Senhor do Labirinto não nos diz nada sobre seu
personagem central, porque nunca lhe parece ocorrer que poderia
fazê-lo. È também incapaz de organizar sua história como drama
porque, novamente, não parece ocorrer a Motta que é possível pegar
os fatos e construir uma dramaturgia a partir deles. Se algo impressiona
em O Senhor
do Labirinto, é justamente como em nenhum momento os responsáveis
pelo filme percebem que o cinema pode muito mais que o mimetismo
acadêmico da sua proposta. Arthur Bispo do Rosario (e sua arte)
merecia algo maior que um verbete de Wikipédia ilustrado.
O Sequestro de um
Herói (Rapt), de Lucas Belvaux (França, 2009)
por Filipe Furtado
O
Seqüestro de um Herói acompanha, com um olhar clínico, as
movimentações e múltiplas agendas de interesse entorno do seqüestro
de um grande industrial francês, o que termina causando diversas
revelações desagradáveis sobre os excessos da sua vida privada.
Estão lá seu cativeiro doloroso – o seqüestro se arrasta durante
dois meses -, as tentativas da família de lidar tanto com o preço
do resgate (acima do esperado) como com o escândalo na mídia,
a ação da polícia (que nunca parece muito mais preocupada
com seus próprios interesses do que com a integridade física do
entrevistado ou a saúde mental de seus familiares). Todas
estas ações externas são delineadas com grande precisão por Belvaux,
mas escondem um profundo desinteresse por cada um destes agentes
para além das suas funções de trama. À primeira vista este tratamento
sugere uma radicalização de exercício de gênero como outras a
que o cinema francês se dedica de tempos em tempos, mais um filme
de procedimento do que um filme de suspense. A virada no último
ato após o fim do seqüestro, porém, expõe como o projeto de Belvaux
é eficaz na teoria, mas frágil como experiência cinematográfico.
Fica claro ali que boa parte do tom oco do filme estava ali para
suportar a completa ausência de empatia tanto do protagonista
pelo sofrimento da esposa e filhas, quanto destas pelo dele. No
papel, todo o processo de encastelamento do protagonista orgulhoso
completa muito bem o tom que Belvaux impusera até então, mas ele
termina só por reforçar como o filme é um exercício em opacidade
cuja competência na construção de cenas esconde um centro desprovido
de interesse. Seu grande mérito é seu completo esvaziamento.
Sonhos de Duas
Passagens (Two Gates of Sleep),
de Alistair Banks Griffin (EUA, 2010)
por Eduardo Valente
Sonhos
de Duas Passagens é um filme realizado por um diretor
que, sem dúvida, conhece muito de história do cinema e da arte,
e é assessorado por técnicos muito talentosos em áreas como a
fotografia e a trilha sonora. No entanto, todo esse conhecimento
resulta num filme que, se é hipertrabalhado ao extremo, só consegue
atingir uma simplória complexidade. Simplória, pela sua incapacidade
de despertar nossa empatia pelo que se passa na tela, porque os
corpos que vagueiam pela tela não conseguem nos interessar seja
como personagens, como imagens, como enigmas. Ao tentar fazer
deles disso tudo um pouco, com enorme autoconsciência dessa tentativa,
o filme não permite que eles se encarnem como nenhum delas. Assim,
acabamos assistindo o filme todo pensando numa série de nomes
que tentaram em anos recentes coisas semelhantes às que o filme
busca atingir (Bela Tarr, Gus Van Sant, Lisandro Alonso, Terence
Malick), mesmo que com objetivos distintos. E aos poucos vamos
lembrando como em cada um destes casos nosso engajamento era conseguido
– talvez, principalmente, pelo que restava de enigmático nos ruídos
dentro da sua própria construção. Em Sonhos de Duas Passagens,
não: tudo é límpido – não como explicação, que não é o caso, mas
como imagem mesmo. Todos os planos parecem munidos de uma mesma
pictorialidade excessivamente autoconsciente, que aprisiona seus
personagens numa natureza que, mais do que se relacionar com eles
organicamente, oprime-os pela beleza.
A Terapia (Fix Me), de Raed
Andoni
(Palestina/França/Suiça, 2010)
por Eduardo Valente
A
premissa de A Terapia soa como a própria encarnação do
que de mais egocêntrico pode resultar dos documentários em primeira
pessoa: a partir de uma insistente dor de cabeça, o diretor Raed
Andoni registra a sua busca de uma cura para o problema, que passa
principalmente por um processo de terapia. Fazer cinema como processo
de cura? O umbigo do cineasta em primeiríssimo plano? Sim, claro,
mas Andoni tem a seu favor um humor cínico sobre o próprio gesto,
encarnado, por exemplo, no momento logo no começo em que sua mãe
afirma que a sua dor de cabeça é um assunto que só interessa a
ele mesmo, e no máximo a ela. Mas, claro, Andoni é palestino,
e portanto logo sua terapia e a dor de cabeça se mostram apenas
o ponto de partida para o que até poderia ser apenas mais
um documentário sobre a questão da identidade e da luta palestinas.
Só que é aí que a jogada de Andoni se revela mais inteligente
do que pode parecer de saída: esta passagem não é apenas mais
uma volta ao mesmo assunto, mas algo essencial àquilo que
o filme pretende realmente fazer, que é perguntar se é possível,
afinal, para um palestino existir sem sentir este peso que é carregar
consigo “a questão palestina”. Ao fazer com o que o próprio filme
reproduza este problema, Andoni consegue atingir alguns momentos
e reflexões de bastante força – além de vários episódios
muito bem humorados e mesmo surpreendentes. Pena que o filme se
ressinta apenas de uma edição que não segura o ritmo mais adequado
ao jogo do filme, permitindo que ele se alongue muito e se perca
em digressões ou repetições um pouco cansativas. Mas, sem dúvida,
Andoni consegue aqui algo que talvez não julgássemos possível:
nos mostrar a Palestina por outro ângulo.
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