textículos - edição especial mostra de sp 2007

Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente
“Filme todo narrado em um plano-sequência no qual cruzamos por vários espaços da cidade de Porto Alegre, acompanhando uma série de curtos momentos na vida de personagens cujas trajetórias, aleatoriamente, se cruzam.” Este seria um resumo bastante fiel do que é Ainda Orangotangos – e, para o bem e/ou para o mal, é um resumo que contém em si as principais qualidades e as limitações do filme que vemos na tela. As qualidades: uma entrega radical à sua proposta, com enorme frescor e garra deixados bem claros na tela, seja na dinâmica de câmera/produção, seja na atuação do elenco; alguns ótimos momentos (a destacar o começo e o final); um desejo de filiação a um espaço e tempo (Porto Alegre, hoje) pouco explorados no cinema nacional de longa-metragem; um belo trabalho de câmera, nem tanto pela maratona, mas pela capacidade de mudar de escala (close/plano geral) com fluidez considerável. As limitações: uma sensação eventual de que o filme é prisioneiro do seu dispositivo, uma vez que algumas das situações (notadamente o diálogo no ônibus e a cena de bebedeira no apartamento) se esgarçam para além de suas possibilidades, sem permitir o corte, a intervenção (vale mais o conceito do que o resultado); a entrega da idéia de drama a um jogo de cena onde todos os personagens que não se resolvem na lógica do absurdo (o japonês, o professor de canto) ou da rapidez na tela (diálogo entre vendedor e menino de rua) acabam revelando sua fragilidade de construção e interesse. Se, como projeto, Ainda Orangotangos tem muito de apaixonante, como filme na tela parece por demais devedor de determinadas matrizes claras (Richard Linklater e Tarantino, principalmente), matrizes estas que se encontram hoje em pontos tão diferentes nas suas próprias preocupações e carreiras, que acabam dando ao filme de Spolidoro uma curiosa sensação cinematográfica de anacronismo, um quê de anos 90 tardios.

Armadilha (Klopka), de Srdan Golubovic
(Sérvia/Alemanha/Hungria, 2007)
por Nikola Matevski
Armadilha está ambientado naquilo que os sérvios chamam de "tranzicija" – o estado de mudança, incerteza e adaptação enfrentado pelo país balcânico depois de meio século de comunismo, uma década de sanções econômicas e três guerras. Na capital, Belgrado, esse estado de transição ganha forma na crescente desigualdade trazida pelo dinheiro fácil da corrupção, que se espalha em todas as esferas da sociedade, da escola à polícia. Mladen, sua esposa Marija e o filho Nemanja são um resquício de integridade e correção cristã nesse mundo em que honestidade é qualidade dos otários. O menino tem problema cardíaco, precisa ser operado na Alemanha, e os pais devem arranjar 27 mil euros como podem. E por aí começam os problemas de Armadilha. Querendo fazer valer a premissa de que "qualquer um" poderia seguir algumas decisões radicais de Mladen, o filme busca identificação ao diluir os personagens em espécimes genéricos de "gente comum". Talvez por isso o malabarismo narrativo que quer justificar Mladen pareça tão suado. O que segue é um pesadelo de crime e castigo, incluindo as devidas doses de cisões morais e existenciais, que se sai melhor quando o talento dos atores consegue disfarçar a dramaturgia que às vezes brutaliza os personagens (as brigas de casal) e alguma pretensão de estilo que não passa de cacoete estiloso, nos enquadramentos "esquisitos" que cortam os rostos dos atores ou os espremem entre outros elementos do plano, o que revela a ausência de visão consistente para além de um naturalismo protocolar.

Calle Santa Fé (idem),
de Carmen Castillo (Chile/França/Bélgica, 2007)
por Eduardo Valente
Numa época marcada cada vez mais pelo documentário em primeira pessoa baseado em materiais caseiros, Carmen Castillo já começa o seu filme colocando na mesa a pergunta: “esse filme faz sentido para alguém que não eu?”. Só que a resposta aqui ser afirmativa é bem fácil, porque ela (ao contrário de tantos outros documentaristas do self) não é uma pessoa qualquer: ex-mulher de um dos principais líderes de esquerda chilenos, teve o marido assassinado na sua frente em 1974, tendo sido ela mesma ferida e deportada, virando um símbolo internacional da luta contra o regime ditatorial de Pinochet. Ou seja: sua história “caseira”, seu álbum de memórias, é também uma parte central da história chilena (latino-americana, por que não?) recente. E, ao longo das quase três horas de Calle Santa Fé (nome da rua onde ficava a casa do casal, e onde ele foi morto e ela presa), Castillo consegue fazer justamente o que seria seu maior desafio: equilibrar lembranças pessoais com memória nacional. Ela parte numa série de entrevistas que misturam o registro absolutamente familiar (pais, irmãs, filha, ex-vizinhos) com o que se demonstra uma busca pela história do MIR (principal grupo revolucionário chileno). Neste trajeto, fica claro que duas coisas interessam a ela (cineasta, mas principalmente a mulher mesmo) investigar: o que restou daquele sacrifício (se é que algo) e como viver com ele hoje. No confronto com as verdades muitas vezes conflitantes que encontra, Calle Santa Fé se revela saudavelmente como um filme em constante crise – e, como seria de suspeitar por sua realizadora feminina, um que se escora muito mais na emoção que na razão. É verdade que o filme acaba adquirindo um tom que tem um tanto de sessão psicanalítica pública (tanto Carmen quanto o MIR querem expiar suas culpas e seus traumas), mas isso nunca suplanta a força dos relatos e das imagens históricas pesquisadas por Carmen e sua equipe (muitas delas, preciosas). E assim, junto com Hércules 56, Calle Santa Fé se revela o mais contundente, complexo e urgente material audiovisual produzido recentemente sobre o período ditatorial no nosso continente.

Cashback (idem), de Sean Ellis (Inglaterra, 2007)
por Ronaldo Passarinho
O protagonista de Cashback é um aspirante a artista plástico que consegue congelar o tempo para melhor observar o mundo a seu redor. Principalmente as mulheres, a forma feminina. O tempo realmente pára e o artista pode, a seu bel prazer, mudar objetos e pessoas de lugar. Depois basta um estalo de dedos para que o tempo volte a fluir. Não, Cashback não é um filme de ficção-científica. O protagonista não quer salvar o mundo como o japonês de Heroes. Seu “superpoder” pode até ser visto apenas como uma metáfora, ainda que seja real o suficiente para gerar momentos de comédia pastelão. Sean Ellis, diretor e roteirista do filme, busca um efeito mais lírico do que fantástico. Tão lírico quanto a imagem final, com flocos de neve parados no ar ao redor de um casal. “Estou farto do lirismo comedido / Do lirismo bem comportado / Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente / protocolo e manifestações de apreço ao Sr. Diretor”, escreveu Manuel Bandeira. O lirismo de Cashback não agradaria a Bandeira. É lirismo funcionário público, protocolar. O que sobra é uma comédia romântica episódica – até simpática, mas sem foco, falada demais para um filme que se pretende interessado no poder da imagem, com uma narração em off na maioria vezes redundante. É filme para se ver domingo à tarde, na TV a cabo; quem sabe até, de olhos fechados.

A Dama do Mar (La Fine del Mare),
de Nora Hoppe (Alemanha/França/Itália, 2007)
por Lila Foster
Todor, um contrabandista sérvio  exilado em Trieste, vive uma vida monótona e solitária até o momento que, dentro de uma carga especial, encontra Nilofar. Muito machucada e extremamente traumatizada, ela reage violentamente a qualquer tipo de aproximação e não consegue dar voz à sua experiência. A solidão dos dois segue em paralelo até que as vidas se unem através de um crime e da identificação como exilados: ele da Sérvia, ela da Albânia. A Dama do Mar é um filme com uma atmosfera um tanto surreal. A estranheza que o filme causa está muito relacionada aos longos silêncios e a concentração da ação em somente três lugares: um barco, um bar e um apartamento. O mundo externo parece não existir, somente através de uma voz no rádio com as notícias dos conflitos no Oriente Médio e Europa. Os planos longos dão ao seu final uma cara de “sobra”, como se existisse algo além de cada ação. Esse algo além parece ser a guerra ou o fantasma do deslocamento vivido por aqueles que são forçados a abandonar a sua terra natal e vivem numa espécie de submundo. Nada é explicado muito claramente – o que, a princípio, distancia o espectador. Só que esse distanciamento continua até o ponto do filme evocar algo que não se constrói nem se desenvolve para quem está assistindo. As reações intensas dos personagens ficam deslocadas demais porque a grande ameça externa nunca está de fato presente.

Entrevista (Interview),
de Steve Buscemi (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Um homem e uma mulher fechados num quarto (ou melhor, num loft novaiorquino) estabelecem uma relação onde desejos, verdades e mentiras são constantemente redimensionados. É bem verdade que a sinopse acima nos remete a alguns outros filmes (só para ficar no último ano, Incuráveis, de Gustavo Acioli e Na Cama, de Matías Bize), mas, fiel à tradição norte-americana, Buscemi nem mergulha rumo a uma exploração estética mais radical e quase alegórica (caso de Acioli), nem apela para um "realismo vale-tudo", como o da câmera insuportavelmente móvel do chileno Bize. Aqui há uma busca de um "naturalismo posado", que, acima de tudo, jogue para os atores o foco da nossa atenção. E, de fato, a realização permite que nos envolvamos com o drama dos personagens, e principalmente com suas auto-construções ao longo de uma noite cujas situações vão do irônico ao dramático, com diferentes tintas de realismo. Se não chega a revelar nenhuma observação extremamente relevante ou surpreendente sobre as relações humanas no mundo de hoje, pelo menos é um filme que consegue não atentar contra a inteligência do espectador com arroubos de romantismo deslocado ou de niilismo simplista.

Esse Filme Ainda não Tem Censura
(This Film Not Yet Rated),
de Kirby Dick (EUA, 2006)
por Lila Foster
Jack Valenti, ex-presidente da MPAA (Motion Picture Association of America) que permaneceu no cargo por longos 38 anos, além de ter aqui os seus lobbistas de plantão, veio para o Brasil diversas vezes sempre para checar que as tentativas de reserva de mercado para o cinema brasileiro fossem devidamente freadas. Com Este Filme Ainda não tem Censura podemos perceber que nos “democráticos” Estados Unidos da América também se sofre um tanto com arbitrariedades vinculadas à poderosa associação americana. O documentário parte do questionamento do sistema de classificação e censura (G, PG, PG-13, R e NC-17 - antigo X) criado pela MPAA que, sem ter clareza nos seus critérios de classificação, acaba avaliando os filmes de forma desigual. É claro que tudo isso tem um motivo, e esse será o cerne do filme: desmascarar o vínculo que existe entre os grandes conglomerados de comunicação e os classificadores, que conferem classificações distintas para filmes de mesmo teor sempre prejudicando produções independentes. Vemos o conservadorismo ao analisar filmes de teor sexual entre homossexuais ou que privilegiam o prazer feminino, e a extrema liberdade (ou melhor, irresponsabilidade) ao conferir classificações leves para filmes extremamente violentos. O dado importante é que nos Estados Unidos, onde existe de fato uma indústria cinematográfica (incluindo aí majors e independentes), uma classificação rigorosa infere diretamente na queda de bilheteria e insatisfação dos produtores. O debate é muito interessante e rico em informação, além de usar humor, numa engraçada caçada pela identificação dos classificadores que não têm as suas identidades divulgadas. Às vezes se sente um ar de Michael Moore, mas talvez isso seja muito mais por conta do pragmatismo americano do que qualquer outra coisa.

Heróis da Liberdade, de Luca Amberg (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente
Heróis da Liberdade talvez fosse um filme revelador, caso fosse feito nos idos da década de 60. No entanto, seu retrato da vida política interiorana brasileira como farsa caricatural parece, no mínimo, pré-O Bem Amado, pré-Roque Santeiro, pré-Que Rei Sou Eu? – para ficarmos em expoentes da teledramaturgia das décadas de 1970 e 1980. Com o adendo de ser um filme sem qualquer traço da sutileza de escrita, da riqueza de construção de personagens ou de caracterização de atores dos acima citados – muito mais próximo de um Zorra Total (com bem menos timing cômico do que este) do que de um marco da TV como foram os acima citados. Luca Amberg já havia demonstrado em O Caminho dos Sonhos uma capacidade maior de colocar de pé uma produção (afinal tratava-se de um filme de época com direito a participações de Talia Shire e Elliott Gould) do que de realizar algo cinematograficamente – aquele era um filme anódino, morto, sem qualquer sinal de desejo de cinema para além da emulação de um determinado “padrão”. Pois agora o cineasta opta por uma linguagem mais “solta”, mais “moderna” (a ver o despropositado uso do rock na trilha sonora), com o mesmo resultado anterior: a impressão constante de vermos algo completamente despropositado, onde valores de produção (aqui, claramente insuficientes) não se completam como discurso audiovisual de qualquer relevância. Um filme em completo desarranjo estrutural e de tom (onde o personagem que narra o filme soa especialmente patético, deslocado), que se revela mal resolvido quase que a cada plano, a cada articulação de idéias pela montagem.

A Ilha (Ostrov),
de Pavel Lounguine (Rússia, 2006)
por Francis Vogner dos Reis
A Ilha se estrutura como uma parábola, que vai ver nas contradições gritantes do padre protagonista um exemplo de virtude moral que vai escandalizar a todos, do seu superior ao mais simples leigo. A história de um homem forçado pelos nazistas a matar seu amigo, e que se transforma em um monge como forma de penitência, é daqueles filmes de uma beleza vulgar, porque seu tema, sua fotografia, sua ambientação podem escamotear seu real impacto estético. É verdade que esses elementos parecem, em princípio, maravilhas desarticuladas, mas com o tempo elas se demonstram elementos bem condensados em um projeto interessante, senão realmente forte. O personagem principal é tido como um santo pela população local e um insensato por seus confrades. Vive isolado dos outros padres em uma cabana com uma fornalha, alimentando o fogo com carvão. Não toma banho e os ofícios religiosos diários na igreja são feitos com desdém, o que faz com que os outros religiosos o considerem um fanfarrão desrespeitoso e mal educado. Além disso, dorme em cima dois carvões e seu cotidiano é rezar pelas pessoas e tomar chá com elas, o que foge da disciplina imposta pela ordem religiosa. Como toda narrativa que visa contar a vida dos “santos”, a santidade é vista como insensatez e loucura, motivo de escândalo. O filme se apóia em um trabalho de ambientação em que o encontro do branco do gelo e do branco do céu, faz do universo ali retratado uma espécie de mundo intermediário entre os homens e Deus, em que a ordem terrena (a dos padres, a do trabalho) não vale nada, absolutamente, perto da radicalidade dos considerados insensatos, que não respeitam regras socialmente criadas.

Into the Wild (idem), de Sean Penn (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima
Sean Penn, talvez seguro de sua habilidade na direção, construção de ambientes, bom olho para enquadramentos e fluxo de imagens, repousou sua atenção à massa textual do impactante livro de Jon Krakauer quando levou para a tela o seu Into the Wild. Chris McCandless é um jovem classe média alta americano que, rebelde à “hipocrisia da civilização”, larga tudo e parte com identidade rasgada para a itinerância no mundo selvagem, uma espécie de “caminho de Santiago de Compostela” de sua casa ao Alasca, no qual conhecerá alguns outsiders muito lúcidos, com frases sábias. O filme alterna o presente (quando Chris reside num ônibus abandonado no meio do Alasca) e os flashbacks que nos instruem por que o rapaz tomou esse caminho na vida. Temos, aí, um filme a ser lido, com as narrações em off de Chris e de sua irmã – ela dizendo por que ele foi para a estrada, e ele falando sobre o que é essa sua filosofia de vida. De uma forma reiterativa, boçal até, a fita mostra os pais do cara (William Hurt, bem, e Marcia Gay Harden naquela sua caricatura de mulher perturbada) como sintomas de uma cultura que desumanizou o ser humano, que agora está voltado ao dinheiro e ao vazio. Sim, é um filme sobre a crise familiar e solidão, o que aliás o alinha aos outros filmes de Penn, como Ajuste Final e A Promessa, ambos muito mais bem dirigidos ao criar camadas de leitura sobre o rosto dos personagens e suas tragédias. Aqui, o que fica é uma histeria de belos planos em scope remetendo aos documentários de mundo selvagem e a referência de pelo menos dois filmes que servem de régua para este: Os Lobos Não Choram (sobre a relação homem e natureza, e com pouquíssimos diálogos ou verborragia didática, o oposto deste aqui) e A História Real (road movie de conciliação e descoberta, distinto deste filme de fuga cuja descoberta final é, no mínimo, atroz).

La León (idem), de Santiago Otheguy
(Argentina/França, 2007)
por Eduardo Valente
Na medida em que começa com pequenos barcos e canoas que correm por rios argentinos, em lentos travelings laterais e frontais, La León já nos remete a Los Muertos, o filme que projetou há três anos o também argentino Lisandro Alonso. E, de fato, apesar da escolha aqui de uma fotografia cujos tons de cinza nos fazem pensar mais nos filmes do húngaro Béla Tarr, a aproximação faz sentido: assim como no filme de Alonso, em La León o que importa é mergulhar o espectador num ambient cujas regras de sobrevivência no dia a dia ele desconheça. Só que aqui, ao invés de acompanharmos um só personagem, como era o caso com o Argentino Vargas de Los Muertos, Otheguy tenta montar um pequeno filme-tableau de um grupo de personagens envolvidos com situações ao mesmo tempo banais e limítrofes numa região pouco conhecida, na Bacia do Paraná (e aliás um dos problemas de recepção do filme é que ele explica pouco sobre a situação sócio-política local - o que nem seria sua obrigação como filme de ficção, mas que nem por isso deixa de ser algo que sentimos que nos falta para compreender o todo do que se passa). Além da opção pelo PB, há mais diferenças marcantes quanto ao filme de Alonso, como a opção pelo uso de atores profissionais como Jorge Román (o protagonista de El Bonaerense) e Daniel Valenzuela (de Mundo Grua e O Pântano, entre outros) - no entanto, curiosamente nenhum dos dois atinge o carisma na tela que o não-ator Argentino Vargas tinha. E é um pouco este o principal problema de La León: sem um foco real de empatia na tela, a impressão para o espectador é mais a de acompanhar um experimento estético, eventualmente até bem sucedido, do que de mergulhar de fato num outro tempo/tradição como parece ser o desejo do filme.

Longe Dela (Away From Her),
de Sarah Polley (Canadá, 2006)
por Lila Foster
Estréia na direção de Sarah Polley, atriz canadense de filmes como O doce amanhã de Atom Egoyan (também produtor deste filme) e Minha vida sem mim e A vida secreta das palavras de Isabel Coixet, Longe dela mostra uma história de amor contada da perspectiva do envelhecimento. Grant e Fiona formam um belo casal mesmo depois de 44 anos de convivência, até que os esquecimentos progressivos de Fiona por conta do Alzheimer levam o casal a tomar a decisão de se separar para que ela tenha cuidados específicos numa clínica para idosos. É chocante para Grant perceber em uma visita a clínica o deterioramento causado pela doença e, aparentemente, ele parece ser o que mais sofre com a separação: um passado feliz e uma vida harmoniosa em conjunto estariam assim se desfazendo. Mas, as dores do passado não estão assim tão ausentes e esta pequena célula incômoda quebra a aura de idealidade conferida ao casal. Esta mudança é o que o filme apresenta de mais interessante, principalmente porque a partir dela cada um tenta estabelecer estratégias de sobrevivência diante da separação e também das novas condições de vida. Tema ainda pouco explorado no cinema, a velhice aparece de forma difícil e triste, mesmo que não sem levar em consideração que, para além do fim da vida, se trata também do tempo mais necessário para se reinventar. É aí que o passado e o medo da solidão parecem pesar muito mais do que o medo da morte. A direção de Sarah Polley se fia, até demais, no roteiro bem estruturado, contando ainda com a ótima atuação de Julie Christie.

No Vale das Sombras (In The Valley of Ellah),
de Paul Haggis (EUA, 2007)
por Francis Vogner dos Reis
Boa notícia: independente do resultado dramático e estético de No Vale das Sombras, Tommy Lee Jones consegue fazer com que o novo filme de Paul Haggis tenha momentos que só o cinema (e nenhuma outra arte) atingem. O ator desfruta aqui do poder que Henry Fonda tinha em alguns de seus papéis, em que boa parte da força vinha do não-dito, das emoções implodidas do homem aparentemente durão e impassível. Um gênio, pra dizer o mínimo. De resto, No Vale das Sombras é melhor do que Crash, mas isso não quer dizer muita coisa. Toda essa mania de estabelecer vínculos entre os problemas sociais e políticos contemporâneos, acabam transformando o talentoso roteirista Paul Haggis em um cineasta que chafurda na culpa como maneira de exorcizar os traumas coletivos vividos em uma terra devastada onde as instituições democráticas falharam retumbantemente. Na história, um militar aposentado vai atrás do filho que voltou do Iraque e desapareceu. Encontra os restos mortais do rapaz em um descampado próximo à base militar. O pai, Hank Deerfield, por meio do celular do filho, descobre imagens que ele capturou em vídeo no Iraque. A trama, de modo geral, é engendrada de maneira semelhante a Crash – a novidade é no entanto, esse elemento, o vídeo. Haggis pisa em ovos ao tentar lidar com fragmentos de imagens contraditórias, que registraram momentos cruéis da guerra. Essas imagens preencherão os vácuos de dúvida que os personagens têm durante o filme. O vídeo acaba sendo um simples elemento dramático. Interessante é fazer o contraponto de No Vale das Sombras com Redacted, de Brian DePalma – este sim um trabalho que estabelece uma crise sem precedentes na imagem como drama e representação.

Olho de Boi, de Hermano Penna (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente
O cinema é uma arte misteriosa. Tomemos como exemplo este Olho de Boi: Hermano Penna (diretor, entre outros, do fortíssimo Sargento Getúlio) propõe não apenas um radical mergulho no formato do filme B.O. (baixo orçamento) como não se curva nem a um registro naturalista mais banal, nem a uma narrativa que se paute pelo que podemos considerar uma dramaturgia mais realista. De fato, seu Olho de Boi é uma indisfarçada tentativa de levar a tragédia grega para o interior de São Paulo, de fazer de seus dois personagens principais arquétipos de toda uma tradição que remonta, principalmente, ao formato teatral. Apenas dois personagens em cena quase o tempo todo (há mais dois em breves, mas importantes, participações), praticamente apenas duas locações: faz sentido falarmos em teatro sim, mas Penna e seu fotógrafo (Uli Burtin) se esforçam para dar ao filme um olhar unicamente cinematográfico, seja pelo jogo com a luz, seja principalmente pelo constante (até demais) uso de enquadramentos e raccords estranhos, que nos lembram da presença de uma câmera, de um olhar sobre a cena. Por todo o acima descrito, Olho de Boi é um filme que nos interessa muito, pois ambiciona bastante. Mas, aí entra em cena o tal mistério mencionado no começo: porque por mais que cineasta e fotógrafo se preocupem em achar uma decupagem viva e incomum, por mais que os atores se esforcem em dar a seus personagens uma verdade toda deles (algo difícil não só pelo aspecto trágico quanto pelo uso do sotaque interiorano radical), por mais que a trilha sonora construa seus climas (de novo, talvez um pouco demais), por mais que a direção de arte se esmere em dar força e presença ao espaço da igreja onde o filme se instaura no começo, ainda assim há algo na tela que não se completa entre projeto e resultado final. Ao flertar com a tragédia, Olho de Boi ousa uma aposta arriscada, em que o pouco é insuficiente, mas o muito também pode ser excessivo. Achar este tom preciso é, então, o principal – e algo que o filme não consegue de fato atingir. Há assim, talvez acima de tudo, a constatação de que quanto maior a ambição artística do projeto, mais inclemente é a sutileza deste ente inefável que se chama arte cinematográfica.

El Orfanato (idem), de Juan Antonio Bayona (Espanha, 2007)
por Ronaldo Passarinho
A cinematografia espanhola não é tão rica quanto a italiana em filmes de horror. Quando se fala em mestres do horror europeu é provável que os primeiros nomes que surjam sejam os de cineastas como Mario Bava, Dario Argento e Lucio Fulci. Mas o cinema de horror espanhol também tem tradição. Os nomes mais conhecidos são o do ator e diretor Paul Naschy e o do prolífico, e genial, Jesus Franco (aliás, o termo prolífico não dá conta da quantidade de filmes que ele dirigiu). Hoje a situação se inverteu. Argento ainda dirige (e bem), mas o cinema de horror italiano perdeu a força. O cinema de horror espanhol, por outro lado, ganhou ímpeto com o surgimento, a partir da década de 90, de cineastas como Álex de la Iglesia, Alejandro Almenabar e Guillermo del Toro, entre dezenas de outros. Mas abundância não é sinônimo de excelência. Del Toro é o produtor de El Orfanato e seu “padrão de qualidade” está impresso em cada fotograma do filme dirigido pelo estreante em longa-metragem de ficção Juan Antonio Bayona, que veio da TV. Tudo no filme é requintado. E requentado. Direção de arte, figurino, fotografia, edição de som... tudo de primeira. Mas o enredo é um samba do crioulo doido, misturando O Sexto Sentido, Poltergeist e um filme de fantasma qualquer da Disney. Pensando bem, nem é tão doido assim o samba, já que Spielberg vem de Disney e Shyamalan vem de Spielberg. Mas é requentado do mesmo jeito. E sem o talento de Shyamalan na direção, não vale a pena.

Padre Nuestro, de Christopher Zalla (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima
Grande Prêmio do Júri no último Sundance, artigos elogiosos na imprensa americana (Variety, New York Times e tal)... Christopher Zalla usa a câmera na mão de forma bastante eficiente para nos mostrar as coisas (ainda que, por vezes, ostensiva e oportunista nas cenas de briga corporal, quando treme à beça), faz geometria com os enquadramentos, ora mostrando os pés, ora colando no rosto dos atores (tudo a ver, pois estamos num filme sobre o drama pessoal de humanos). Bem decupado é o termo, mas aí vem uma trilha medonha (som de berimbau para falar sobre mexicanos desolados nos Estados Unidos?) e a velha mania do malabarismo do roteiro — sim, parece que os aspirantes ao Sundance são mais escribas que homens da imagem. Na história, dois jovens mexicanos conhecem-se num caminhão que os leva para Nova York. Pedro conta a Juan que irá conhecer seu pai mexicano, Diego, dono de um restaurante, com carta da mãe falecida nas mãos e tudo o mais. Malandro, Juan rouba-lhe a bagagem e assume o lugar de Pedro. O convívio com o duro Diego (em vários sentidos, porque o cara é grosseiro, amargurado, mora em condições precárias – no restaurante ele só é lavador de pratos, além de ser um grandissíssimo pão-duro que esconde grana no piso do apartamento) vai criando uma virtual relação pai e filho, sobretudo no picareta Juan. Isso daria um bom filme narrativo, mas há o núcleo “Pedro procurando o papai com a ajuda de uma prostituta”, que pendulará ao longo do filme. Um núcleo sacrifica o outro, porque Zalla (que também escreveu o roteiro) tenta dar conta de dois assuntos, a paternidade construída e a situação precária na qual vivem os mexicanos nos Estados Unidos. Só vemos miséria, a mocinha se prostituindo com uns glutões, ninguém ajudando os “chicanos” e desgraceira ladeira abaixo. Coitadinhos dos três mexicanos, nos diz este que poderia ser um bom filme de estréia. Ou até é, pelo menos na seqüência que Juan assume-se como filho de Diego, vira um treco meio Pedro mesmo, e chora revoltoso pela mãe abandonada no México. Mas Sundance, jornais e tais, querem texto, muito texto, nos filmes.

Postales de Leningrado (idem),
de Mariana Rondón (Venezuela, 2007)
por Eduardo Valente
Desde o começo, Postales de Leningrado deixa claro qual é o seu jogo: com a combinação de uma narração off de uma criança, a utilização absolutamente over de uma trilha sonora exotizante/emotiva e uma série de apelos a efeitos gráficos “engraçadinhos”, ele fará de tudo para ganhar a simpatia do espectador. E é bom mesmo que ele assim o faça, porque é só com isso que ele pode contar: jamais com sua capacidade (inexistente) de organizar uma narrativa ficcional que se possa chamar como tal. Sob o disfarce de estar sobrepondo camadas de tempo e de olhares (às vezes o filme finge estar sendo filmado por um documentarista estrangeiro, por exemplo), ele só tenta esconder que não faz a menor idéia de como construir personagens através das imagens e ações destes (tudo tem que ser descrito pela narração infantil), de como criar climas e estruturar cenas e ações. São as vantagens do regime “pós-moderno” da imagem: apela-se para a desestruturação como discurso, apenas para que sirva como disfarce para a incapacidade de estruturar. Porque de fato o suposto olhar infantil do filme não se interessa pela percepção das crianças de um evento sócio-político (como faz, por exemplo, um O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias), mas sim em aproveitar um pretenso olhar “inocente” destas para apresentar o que de fato é um olhar adulto “debilizado”, incapaz de qualquer tipo de complexidade frente ao mundo. Postales de Leningrado é exatamente isso: não um filme infantil, mas um filme para adultos infantilizados.

Valente (The Brave One),
de Neil Jordan (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Erica Bain (Jodie Foster) é uma personagem sensível. Como sabemos? Ora, afinal ela namora um indiano, com sua aparência asiática forte, na Nova York pós-11 de setembro. Eles se amam. Como sabemos? Eles vão mandar fazer seus convites de casamento, e na única cena em que os vemos juntos, numa exposição, se abraçam e beijam o tempo todo. Eles vão passear no parque e algo terrível vai acontecer. Como sabemos? A câmera resolve, de repente, ficar torta enquanto a trilha atinge tons graves. Uma vez atacados, ela vai sobreviver traumatizada, e ele morrerá. Como sabemos? Ora, ela é Jodie Foster, ele é só um namorado indiano. Assim começa e por aí vai Valente: com este nível de inteligência na estruturação de seu roteiro. E de fato, o filme de Neil Jordan gostaria de ser polêmico, gostaria de ser incômodo pelo seu discurso pró-justiçamento, mas ele precisaria ser muito menos primário para sequer ser discutido seriamente. Porque é impossível querer tratar de temas complexos sendo tão simplista, tão manipulador (Crash – No Limite, alguém?). E é impossível levar a sério um filme que estrutura narrativa tão preguiçosamente (ela sai do hospital, vai na delegacia, é maltratada, compra uma arma, entra numa loja, há um assalto, atira), que vai contra qualquer lógica do mundo real ao mesmo tempo querendo discuti-lo (o programa de rádio da personagem de Foster é tão completamente absurdo, e ao mesmo tempo central para a trama), que compõe personagens de forma tão tosca (a vizinha de Foster, o policial “com crise de consciência” e sua relação inverossímil em cada diálogo com a radialista). Em suma, numa linhagem que sai de Dirty Harry, passa por Travis Bickle (Taxi Driver) e chega a Charles Bronson, a Erica Bain de Valente nem registra no barômetro (seja na complexidade dos primeiros ou na boçalidade do último). Aliás, fiquemos com nosso Capitão Nascimento: Valente é Tropa de Elite for e by dummies.

Um Verão para Toda a Vida (December Boys),
de Rod Hardy (Austrália, 2007)
por Cléber Eduardo
Nem é preciso pesquisar a filmografia do australiano Rod Hardy para desconfiar de sua alfabetização dramática e visual na TV. Antes de estrear em longa-metragem com December Boys, cujo maior apelo de marketing é a presença (sem bruxarias) do inglês Daniel Radcliffe, o Harry Potter, Hardy dirigiu um amontoado de programas e séries. Pois seu currículo está na tela. Do primeiro ao último plano, sem exceção, parece haver um engano – não apenas da realização, mas principalmente dos programadores da Mostra. Por que um filme como esse passaria nessa programação? Sobre o que informa, se a idéia é amostragem, sobre o cinema contemporâneo? Não estaria melhor abrigado na grade do Telecine Light? Não foi feito com esse objetivo? Pois parece. Para mostrar o verão inesquecível de quatro garotos órfãos no litoral australiano, lança-se mão do narrador memorialístico que, com voz de terceira idade, reconstrói as experiências de infância antes do reencontro com os amigos no mesmo lugar nos momentos finais. Um deles passa esse verão abrindo frentes no conhecimento prático do sexo. Os demais empenham-se em serem adotados por um casal. Molecagens de um lado. Beijinhos de outro. Pequenos riscos, eventualmente, no contato com a natureza. E uma aparição de Nossa Senhora. É sério. A Virgem aparece no fundo do mar.

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