textículos - edição
especial festival do rio 2010
Amigo (idem), de
John Sayles (EUA/França, 2010)
por Filipe Furtado
O
filme do “bom homem branco culpado” sempre foi uma especialidade
de John Sayles e, mesmo hoje quando seu cinema bem particular
saiu de moda, ele segue fiel aos seus instintos. Amigo
não é um bom filme, mas é um filme honesto como sempre esperamos
do seu cineasta. Trata-se de uma espécie de fora de campo do Independência
de Raya Martin: uma tropa americana invade um vilarejo nas Filipinas
no começo do século XX, guerrilheiros fogem para o mato e os soldados
precisam lidar com o resto da população (na sua maioria mulheres
e idosos) ao longo de meses de altos e baixos da convivência.
Por todas as boas intenções de Sayles, seu projeto jamais deixará
de ser sobre o invasor forasteiro. Apesar da figura principal
do filme ser o prefeito do vilarejo – o tal Amigo do título –,
perdido entre as concessões necessárias para melhorar a situação
da população e a lealdade as guerrilheiros na floresta, o olhar
que domina o filme é mesmo do tenente americano progressista.
Esta incapacidade do filme, a despeito de todo o esforço, para
delinear a vida da vila, e em tornar seus ocupados em mais que
vitimas abstratas de outra entre tantas guerras imperialistas,
limita muito seu escopo e aponta o problema central do cinema
de Sayles sempre exacerbado nestes filmes menores. Muito antes
de um filme de cineasta, Amigo é um filme de escritor,
tudo nele é símbolo e paralelismos. Nada existe aqui para além
dos conceitos. Nos seus melhores filmes (como Lone Star
ou Limbo), Sayles é capaz de animar estas idéias, num filme
como Amigo elas jamais chegam a sair do papel.
Buraco Negro (L’Autre
Monde), de Gilles Marchand (França, 2010)
por Filipe Furtado
Se
o primeiro longa de Gilles Marchand, Quem Matou Bambi?,
era uma diluição de Dario Argento voltada para espectadores que
jamais gastariam seu tempo com cinema de horror italiano, este
seu segundo trabalho propõe uma variação sobre este mesmo principio
(sendo a fonte em questão um cyber thriller muito menos
interessante que os melhores trabalhos do mestre italiano). Buraco
Negro comprova o quanto a receita de Marchand, e seu habitual
comparsa Dominik Moll, é fechada: adiciona-se uma suposta elegância
de filme de arte ao material surrado de gênero, acrescenta-se
um gancho esperto como verniz extra, e aí é torcer para que o
bom elenco segure o filme. Após 4 longas (se incluirmos Harry
Chegou para Ajudar e Lemming, dirigidos por Moll) a
fórmula ainda não encontrou o ponto. Aqui, temos um rapaz fascinado
por uma garota mórbida ao qual ele salvará do suicídio, e como
grande diferencial as seqüências de animação que propõem o videogame
à Second Life que ele usa para se encontrar com ela. O que falta
a Marchand e Moll é sobretudo imaginação para lidar com um material
como este, o que fica claro nas seqüências do videogame-título
que nunca sugerem mais que regurgitação óbvia de cada imagem pronta
sobre este universo. Sobra o filme seguir cada passo inevitável
da sua trama, enquanto o protagonista se perde num meio cada vez
menos saudável, sem que Buraco Negro jamais sugira qualquer
olhar sobre o que transcorre para além da regurgitação envernizada.
Ela,
uma Chinesa (She, a Chinese), de Xiaolu Guo
(Reino Unido/França/Alemanha, 2009)
por Paulo Santos Lima
Se é fato a existência dos famigerados
filmes de festival, ainda assim é sempre louvável observá-los
livres desse estigma. Quando surge um Ela, Uma Chinesa,
contudo, qualquer distanciamento analítico parece uma impossibilidade.
Se nos anos 90 este seria um longa curioso como fenômeno, hoje
é escancarado o quanto uma nova diretora chinesa, Xiaolu Guo,
repete certos caminhos fáceis para encantar a ala previsível dos
júris de festivais internacionais. A trajetória de Mei, bela chinesinha
interiorana que, pragmática, aventura-se na cidade grande tomando
várias rasteiras dos homens que vai conhecendo e até aproveitando-se
de algum outro, virando bolsa e não pendendo a cabeça, é filmada
como “filme de arte” chinês, com música pop emulando a ocidentalização
oriental, incomunicabilidades típicas do estrangeirismo, volta
por cima e desfecho filiado ao de um Noites de Cabiria
de Fellini (ou, mais afinadamente, à bobagem Eu Sou Juani,
de Bigas Luna). A diretora opta por um registro ágil e com elipses
que mais parecem auxiliá-la a falar muita coisa em pouco tempo,
como um pocket de encomenda paga por patrões europeus sobre
as benesses à mulher por meio da sem-fronteirice do mundo neoliberal
globalizado. Em síntese, o caminho de uma jovem mulher do arcaísmo
à modernização, entre interior chinês, aulinha em Londres e retorno
elevado à terra pátria, já com bebê no ventre, cumprindo o papel
de mãe moderna solteira. Um discurso velho e bastante equívocado,
em imagens de construção rasteira – e que conquistou o Leopardo
de Ouro no Festival de Locarno.
A Empregada (Hanyo),
de Im Sang-soo (Coréia do Sul, 2010)
por Fábio Andrade
A
Empregada não deixa dúvidas do
talento possível de Im Sang-soo: há cenas de morte filmadas com
notável vigor, enquadramentos em scope bastante refinados, e uma
meia dúzia de belos planos de estrada. Ainda assim, Im Sang-soo
tem uma dificuldade tão grande em estabelecer o tom do filme que
acaba impedindo que sua refilmagem para o clássico sul-coreano,
dirigido por Kim Ki-young, se firme como mais do que uma mera
curiosidade. Ao mesmo tempo em que temos cenas de timing
bastante preciso, A Empregada é abalado por uma estranheza
de tom que parece se acomodar em um meio do caminho pantanoso
entre o naturalismo e a extrema paródia. Embora essa posição pudesse
produzir um curto-circuito de registros interessante, no filme
de Im Sang-soo ela atravanca a imersão sem produzir nada com essa
opacidade. A se confirmar pelo aberrante final à David Lynch,
A Empregada parece mesmo é disposto a atirar para todos
os lugares que lhe parecerem férteis, mas sem alcançar com isso
uma eficiência mais superficial, ou tampouco um mergulho de corpo
inteiro em cada promessa de esquizofrenia.
Um
Espetáculo Para o Grande Líder (Det Rode Kapel),
de Mads Brugger (Dinamarca, 2010)
por Eduardo Valente
Não
seria nem preciso saber muito sobre os bastidores do cinema, e
portanto identificar a marca que abre Espetáculo Para O Grande
Líder (a da produtora Zentropa), para perceber as digitais
de Lars Von Trier presentes por todos os lados neste documentário
– mas, principalmente, presente no subconsciente do diretor Mads
Brugger, certamente formado pela sensibilidade (na falta de termo
melhor) de seu “mestre”. Assim como é o caso nos piores momentos
de Von Trier, Brugger parece convencido de que o ato de expor-se
no seu filme como um manipulador cínico torna o filme, automaticamente,
“complexo”, quando na verdade o torna apenas mais cínico ainda.
E aí é que entra em jogo a questão principal: o problema não é
nem que Brugger trate seus objetos de filmagem como débeis mentais
aos quais ele é evidentemente superior (inclusive por saber que
isso é “errado”) – o problema de fato é que, mesmo fazendo isso,
ele não consegue tirar nenhum material verdadeiramente forte da
manipulação (como Von Trier já conseguiu, várias vezes). Claro,
tem piadinhas fáceis e constrangimentos a granel para quem acha
isso “potente”, mas é triste ver como, cego pelo próprio poder
(como diretor, mas também como personagem), Brugger não percebe
a oportunidade rara que tinha nas mãos, com aquelas câmeras que
penetram como poucas vezes numa realidade totalmente desconhecida
do mundo (a da vida na Coréia do Norte), mas que o fazem parecendo
apenas conseguir filmar o seu próprio umbigo e sua “genialidade
demente”. É ele, afinal, o “Grande Líder” para quem todo o espetáculo
de uma nação parece ter sido montado.
Uma
Família (En Familie),
de Pernille Fischer Christensen (Dinamarca, 2010)
por Eduardo Valente
Já
a partir do seu título, Uma Família deixa bem clara sua
maior ambição: a de ser um filme sobre “gente como a gente” (leia-se
aí principalmente “gente como você que está na platéia”). É um
cinema, em suma, que não acredita na arte como um encontro de
alteridades que pode levar a um entendimento outro do mundo através
do diferente, mas sim do reconhecimento absoluto: “é assim mesmo
que é a vida – que bom que não estou sozinho no meu sofrimento”.
Claro, porém, que este “assim mesmo” virá embalado em bela fotografia
em scope e trilha sonora constante e emotiva – porque trata-se,
afinal, de um “assim mesmo aumentado” (para justificar seu nobre
estatuto de arte). No entanto, por trás da sua bela lógica do
“não existe o doce sem o duro” (devidamente justificada discursivamente
no filme pela prática como padeiros da tal “família”), Uma
Família se diferencia muito pouco do tradicional “filme de
doença da semana”, uma instituição da TV americana geralmente
importada aqui pelo famoso Supercine: suas emoções são tão cientificamente
estudadas quanto, assim como sua manipulação da linguagem objetiva
o mesmo “mínimo denominador comum”. Sua exploração do espetáculo
da morte é tão obscena quanto, ou na verdade muito mais até (pois
se disfarça de algo mais), do que de qualquer pretenso filme que
“explora a violência” – só que, claro, sendo dinamarquês e em
scope, ele recebe o tratamento nobre do mundo do cinema,
com lugar garantido na competição do Festival de Berlin.
Histórias
Reais de um Mentiroso,
de Mariana Caltabiano (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Nas
entrevistas e apresentações que tem feito do seu filme VIPs,
ficção baseada no livro que deu origem a este documentário aqui,
o diretor Toniko Melo curiosamente diz que “essa história só podia
ser uma ficção”. A julgar por Histórias Reais de um Mentiroso,
talvez ele tenha razão. Porque depois dos primeiros cinco minutos,
em que a diretora coloca em jogo toda uma série de ferramentas
instigantes (como animação, música irônica, falsas imagens de
arquivo) para brincar com a idéia de fabulação, que é intrínseca
ao personagem de Marcelo (protagonista do documentário), o filme
parece se esvaziar de idéias realmente potentes como cinema, e
passa praticamente a fazer uma longuíssima reportagem, ouvindo
principalmente a voz dele. Claro, entendemos que não dá para saber
se essas histórias são reais ou não, mas ainda assim essa constatação
dura somente um certo tempo como de real interesse. A tentativa
da cineasta de se inserir como personagem, limitada como é a praticamente
só o começo e uma “reviravolta” final também parece subutilizada
demais para realmente interessar. O que sobra de real força são
as imagens originais de Marcelo “atuando”, seja no programa Amaury
Jr, seja no caso da rebelião de cadeia. São momentos de brilho
no que acaba passando como uma longa conversa com um pescador
– e aí talvez fosse mais interessante explorar mais longamente
este discurso, e não ficar intervindo e ilustrando ele o tempo
todo.
A
Invenção da Carne (La Invención de la Carne),
de Santiago Loza (Argentina, 2009)
por Eduardo Valente
Desde
o começo, em que a relação entre seus dois protagonistas é estabelecida
a partir de suas ocupações relacionadas ao corpo (ela vende seu
‘pedaço de carne” como cobaia para aulas de medicina; ele, é um
aluno), A Invenção da Carne deixa claro que seu jogo será
conceitual. Se Los Labios, filme seguinte de Loza, parece
seguir a cartilha do “choque entre instâncias documentais e ficcionais”,
este aqui é totalmente calcado na matriz Tsai Ming-liang, aquela
da incomunicabilidade imposta como condição a dois personagens
que partilham uma narrativa. Acontece que em Tsai essa imposição
nunca parece ser uma do diretor sobre os personagens, mas sim
de todo um mundo que os leva a ela, e, até por isso, eles nos
comovem com suas dificuldades (que, não por acaso, incluem considerável
humor). Em Loza, não: tudo é o tempo todo sério, e por mais que
ele tente nos convencer de que o destino daquelas pessoas na tela
deveria nos importar por algum motivo, ou nos revelar algo de
nossa própria existência, só conseguimos mesmo é prestar atenção
no gesto do diretor em precisar fazer com eles passem por um calvário
para, claro, sair dele “curados”.
Jardim
das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Lá
pelas tantas em Jardim das Folhas Sagradas, um dos personagens
ri do andamento da história dizendo que “parece até novela antiga”.
O problema para o filme de Pola Ribeiro é que, mesmo demonstrando
nessa frase um certo grau de auto-ironia (sempre saudável) quanto
ao seu desenvolvimento narrativo, ele parece nunca se dar conta
que é na maioria dos outros quesitos, formais e estéticos, que
o filme termina, sim, parecendo uma novela antiga. Isso se deve
principalmente, num primeiro olhar, à performance do elenco, que
cria involuntariamente um distanciamento brechtiano com
as cenas (curioso que a grande exceção seja a maluca religiosa,
que empresta ao filme um respiro delicioso – justo ela, que devia
ser uma antagonista insana, ganha nossa simpatia por parecer trazer
alguma vida dentro de si). Mas não é difícil perceber que a questão
é anterior, e que boa parte dos problemas de atuação se deve de
fato ao didatismo extremo do texto, que a todo momento pára a
ação para “refletir” sobre ecologia ou intolerância religiosa,
ou para nos ensinar algo sobre os diferentes aspectos do candomblé.
A verdade é que Jardim das Folhas Sagradas é constantemente
sufocado pelo escopo quase absurdo de suas boas intenções, engessado
totalmente por todas as suas “questões” que, se certamente no
papel deviam compor um projeto com justificativas e objetivos
belíssimos (o que se percebe pela quantidade de editais ganhos,
notável nas inúmeras logomarcas do começo da projeção), na tela
do cinema impedem qualquer relação emocional com o material. É
a transposição da máxima de Muricy Ramalho para o mundo do audiovisual:
“a câmera pune”.
Paranã-Puca
- Onde o Mar Se Arrebenta,
de Jura Capela (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Mais
do que seu subtítulo acima, logo no começo de Paranã-Puca
surge uma segunda “sub-alcunha” que nos ajuda mais a entender
todos os limites impostos já por sua proposta: “um panorama das
artes em Pernambuco”. Pois, por mais que sinta necessidade de
criar aqui e ali algumas interfaces de “invenção” (um dos artistas
dá entrevista enquanto pilota sua moto pelas ruas da cidade, surgem
vinhetas de cortes rápidos e sincopados), no fundo o documentário
é bastante convencional na sua aproximação deste grande tema,
entrevistando uma série de representantes de gerações distintas
das artes plásticas pernambucanas e construindo a partir deles
um painel sobre o andamento destas ao longo das últimas décadas.
Registro, diálogo, história. Todo ele voltado para
a palavra dos artistas, Paranã-Puca será tão interessante
quanto seus depoimentos o fizerem ser, tendo como maior qualidade
justamente o acesso a uma quantidade grande de nomes, que surgem
bastante à vontade na tela. Na soma destes depoimentos,
ao mesmo tempo em que se levantam algumas questões interessantes
(como a quase onipresença dos temas do financiamento e dos agrupamentos
geracionais), também impressiona um pouco um ar bastante provinciano
que parece dominar as discussões (todas se voltando o tempo todo
para a idéia de uma “cena pernambucana” girando em torno de si,
e que resulta parecendo quase apartada do resto do mundo). E,
finalmente, uma observação interessante: o uso constante do YouTube
como fonte de pesquisa e registro histórico, incorporado à
própria estética do filme..
Pó
(Dust), de Max Jacoby (Luxemburgo/Áustria, 2009)
por Eduardo Valente
Como
que para facilitar (ainda mais) a vida do seu espectador, Pó
resume todos os seus objetivos como obra já numa epígrafe que
abre o filme: “Como o mundo seria quieto sem a humanidade”, diz
algum antigo filósofo chinês. Pronto, daí por diante o que Max
Jacoby faz é engendrar um micro-drama de três personagens que
transitam por um mundo pós-apocalíptico, no qual todo resquício
de presença humana está ausente. Não seria premissa de forma alguma
desprovida de interesses, mas o diretor parece obcecado em conseguir
retirar qualquer resquício de vida do filme (e aqui não nos referimos
a seres humanos, mas à matéria fílmica mesmo) ao afogá-lo numa
abundância de “elegância”. A opção, por exemplo, de que este apocalipse
não tenha deixado nenhum sinal de cadáveres ou destruição, embora
pudesse ser curiosa, parece apenas se dever ao fato de que uns
ou outra tornariam a imagem muito menos “bela”. E Pó quer
ser “belo” e “significativo” em cada um dos seus planos – apenas
não parecendo se dar conta de como é clichê afirmar sua beleza
pelo uso indiscriminado de travellings laterais e pianinho
minimalista em toda sequência. Em resumo, não é a poesia chinfrim
de sua recriação simplória de Adão e Eva e Caim e Abel que incomoda,
mas sim que Max Jacoby acredite, de maneira tão sem auto-crítica
ou resquício de humor, que está fazendo uma obra “importante”.
É caminho certo para se tornar apenas mais um.
Rubber,
de Quentin Dupieux (França, 2010)
por Eduardo Valente
Steak, primeiro filme de Quentin Dupieux exibido aqui no Brasil apenas pela
Mostra de SP (e sobre o qual escrevemos um
texto) tinha a seu favor o choque de ser pensado na França
efetivamente como um projeto comercial, que usava uma dupla de
comediantes bastante famosa para causar um curto-circuito de gêneros
e expectativas narrativas certamente bastante profícuo no olhar
do grande público. Nesse sentido, Rubber representa um
passo atrás, uma vez que toda sua estranheza parece muito domesticada
e bem pensada para um circuito mais “intelectual” (não por acaso
estreou mundialmente na Semana da Critica, em Cannes). O recuo
metalingüístico que propõe, ainda que jocoso, deixa bem claro
esse seu estatuto por demais “esperto”. Não que o filme não tenha
boas sacadas em encenações ou diálogos, ou que não consiga rir
um tanto dessa sua própria condição híbrida, mas, já que nunca
mergulha de verdade no prazer quase infantil que representa seu
maior interesse (algo como “vamos explodir umas cabeças”), o fato
é que ele não chega a atingir a selvageria que seria necessária
para que passasse de uma compilação de pequenas boas cenas isoladas.
O
Segredo da Rua Ormes (5150, rue des Ormes),
de Éric Tessier (Canadá, 2009)
por Eduardo Valente
Quando
perguntado sobre por que dividir Kill Bill em duas partes,
Tarantino saiu-se com a boa idéia de que um filme que homenageava
alguns dos gêneros mais “baratos” do cinema mundial não podia
durar quase 3 horas e ser fiel a eles. Independente de ser a verdadeira
razão ou não, a frase, para além de muito boa em si, guarda muita
verdade – uma verdade da qual se ressente este O Segredo da
Rua Ormes. O filme até começa prometendo entender parte do
apelo sempre bastante direto do cinema de gênero, apresentando
um “herói” estudante de cinema, e nos revelando que a “rue Ormes”,
em inglês seria “Elm Street” (referência óbvia a Hora do Pesadelo).
No entanto, a referência a Craven ou a metalinguagem entram no
filme apenas como grifes mal usadas, porque O Segredo da Rua
Ormes vai se levando mais e mais a sério, na medida em que
passam seus longuíssimos 105 minutos. A impressão que se tem é
que o diretor teve uma ótima idéia para um huis clos doentio
e radical, mas que resolveu mostrar num filme-portfólio todas
as suas outras capacidades como cineasta – o que inclui algumas
contrangedoras sequências de efeitos digitais grandiosos. Quanto
mais se infla, mais Rua Ormes se afasta do seu centro de
atração, ganhando muito pouco (ou, para ser exato, nada) em troca. Faltou ouvir
Tarantino.
O Senhor do Labirinto,
de Geraldo Motta (Brasil, 2010)
por Filipe Furtado
Logo
nas suas rebuscadas primeiras imagens, o projeto de O Senhor do
Labirinto fica claro: usar tintas fortes e o máximo de mimetismo
para realizar um respeitoso e protocolar retrato de Arthur Bispo
do Rosário. Geraldo Motta não se farta a mão pesada para registrar
a trajetória do seu biografado, e confia na combinação da presença
de cena de Flavio Baruaqui e da fotografia da Katia Coelho para
atingir o espectador. O que falta a O Senhor do Labirinto
é justamente o que sobrava ao seu homenageado: um ponto de vista.
Não há um olhar aqui, somente uma série de pontos importantes
que precisam ser ilustrados de forma correta e edificante. O
que termina tornando o trabalho de Motta pesado e pouquíssimo
fluente. O Senhor do Labirinto não nos diz nada sobre seu
personagem central, porque nunca lhe parece ocorrer que poderia
fazê-lo. È também incapaz de organizar sua história como drama
porque, novamente, não parece ocorrer a Motta que é possível pegar
os fatos e construir uma dramaturgia a partir deles. Se algo impressiona
em O Senhor
do Labirinto, é justamente como em nenhum momento os responsáveis
pelo filme percebem que o cinema pode muito mais que o mimetismo
acadêmico da sua proposta. Arthur Bispo do Rosario (e sua arte)
merecia algo maior que um verbete de Wikipédia ilustrado.
O Sequestro de um
Herói (Rapt), de Lucas Belvaux (França, 2009)
por Filipe Furtado
O
Seqüestro de um Herói acompanha, com um olhar clínico, as
movimentações e múltiplas agendas de interesse entorno do seqüestro
de um grande industrial francês, o que termina causando diversas
revelações desagradáveis sobre os excessos da sua vida privada.
Estão lá seu cativeiro doloroso – o seqüestro se arrasta durante
dois meses -, as tentativas da família de lidar tanto com o preço
do resgate (acima do esperado) como com o escândalo na mídia,
a ação da polícia (que nunca parece muito mais preocupada
com seus próprios interesses do que com a integridade física do
entrevistado ou a saúde mental de seus familiares). Todas
estas ações externas são delineadas com grande precisão por Belvaux,
mas escondem um profundo desinteresse por cada um destes agentes
para além das suas funções de trama. À primeira vista este tratamento
sugere uma radicalização de exercício de gênero como outras a
que o cinema francês se dedica de tempos em tempos, mais um filme
de procedimento do que um filme de suspense. A virada no último
ato após o fim do seqüestro, porém, expõe como o projeto de Belvaux
é eficaz na teoria, mas frágil como experiência cinematográfico.
Fica claro ali que boa parte do tom oco do filme estava ali para
suportar a completa ausência de empatia tanto do protagonista
pelo sofrimento da esposa e filhas, quanto destas pelo dele. No
papel, todo o processo de encastelamento do protagonista orgulhoso
completa muito bem o tom que Belvaux impusera até então, mas ele
termina só por reforçar como o filme é um exercício em opacidade
cuja competência na construção de cenas esconde um centro desprovido
de interesse. Seu grande mérito é seu completo esvaziamento.
A Vida Durante a
Guerra (Life During Wartime),
de Todd Solondz (EUA, 2010)
por Filipe Furtado
Após
o considerável sucesso no circuitinho de Bem Vindo à Casa das
Bonecas e, especialmente, Felicidade, a carreira de
Todd Solondz entrou em crescente irrelevância. O sucesso inicial
destes filmes – sitcoms malvadas com bom ouvido para diálogos
cruéis – diz mais sobre o bom timing do cineasta do que
seu talento. Quando a forma distinta de esperteza em que o cineasta
americano se especializara saiu do gosto do espectador, seu cinema
igualmente desapareceu rumo à completa irrelevância. Visto assim,
A Vida Durante a Guerra não é de fato um filme, mas uma
operação: seu objetivo não é filmar ou iluminar nada, mas simplesmente
reviver seu autor. Trata-se de uma seqüência de Felicidade,
lançando mão do recurso de substituir os atores do filme original
por um grupo novo a reinterpretar os mesmos personagens. Solondz
regurgita com pequenas variações o mesmo material miserável do
seu original (a referência a guerra no título é menos um dado
no filme e mais reflexo de quão desesperado o cineasta se tornou,
e do tom exploitation da empreitada como um todo). O suposto
interesse do filme reside justamente no seu truque central, e
mesmo ali o experimento de Solondz fracassa, justamente porque
seu cinema nunca lidou com personagens, mas somente tipos. Tanto
faz se em cena está Dylan Baker ou Ciaran Hinds, já que a troca
de ator só reforça que o que vemos é uma superfície dotada de
tiques. Se algo interessa neste processo é justamente o quanto
esta opção reflete na posição do cineasta: A Vida Durante a
Guerra é uma operação desesperada, um cineasta tentando desesperadamente
reanimar sua carreira por via de um jogo de marionetes em que
seus bonecos jamais ganham vida.
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