textículos - edição especial festival do rio 2010

Amigo (idem), de John Sayles (EUA/França, 2010)
por Filipe Furtado
O filme do “bom homem branco culpado” sempre foi uma especialidade de John Sayles e, mesmo hoje quando seu cinema bem particular saiu de moda, ele segue fiel aos seus instintos. Amigo não é um bom filme, mas é um filme honesto como sempre esperamos do seu cineasta. Trata-se de uma espécie de fora de campo do Independência de Raya Martin: uma tropa americana invade um vilarejo nas Filipinas no começo do século XX, guerrilheiros fogem para o mato e os soldados precisam lidar com o resto da população (na sua maioria mulheres e idosos) ao longo de meses de altos e baixos da convivência. Por todas as boas intenções de Sayles, seu projeto jamais deixará de ser sobre o invasor forasteiro. Apesar da figura principal do filme ser o prefeito do vilarejo – o tal Amigo do título –, perdido entre as concessões necessárias para melhorar a situação da população e a lealdade as guerrilheiros na floresta, o olhar que domina o filme é mesmo do tenente americano progressista. Esta incapacidade do filme, a despeito de todo o esforço, para delinear a vida da vila, e em tornar seus ocupados em mais que vitimas abstratas de outra entre tantas guerras imperialistas, limita muito seu escopo e aponta o problema central do cinema de Sayles sempre exacerbado nestes filmes menores. Muito antes de um filme de cineasta, Amigo é um filme de escritor, tudo nele é símbolo e paralelismos. Nada existe aqui para além dos conceitos. Nos seus melhores filmes (como Lone Star ou Limbo), Sayles é capaz de animar estas idéias, num filme como Amigo elas jamais chegam a sair do papel.

Buraco Negro (L’Autre Monde), de Gilles Marchand (França, 2010)
por Filipe Furtado
Se o primeiro longa de Gilles Marchand, Quem Matou Bambi?, era uma diluição de Dario Argento voltada para espectadores que jamais gastariam seu tempo com cinema de horror italiano, este seu segundo trabalho propõe uma variação sobre este mesmo principio (sendo a fonte em questão um cyber thriller muito menos interessante que os melhores trabalhos do mestre italiano). Buraco Negro comprova o quanto a receita de Marchand, e seu habitual comparsa Dominik Moll, é fechada: adiciona-se uma suposta elegância de filme de arte ao material surrado de gênero, acrescenta-se um gancho esperto como verniz extra, e aí é torcer para que o bom elenco segure o filme. Após 4 longas (se incluirmos Harry Chegou para Ajudar e Lemming, dirigidos por Moll) a fórmula ainda não encontrou o ponto.  Aqui, temos um rapaz fascinado por uma garota mórbida ao qual ele salvará do suicídio, e como grande diferencial as seqüências de animação que propõem o videogame à Second Life que ele usa para se encontrar com ela. O que falta a Marchand e Moll é sobretudo imaginação para lidar com um material como este, o que fica claro nas seqüências do videogame-título que nunca sugerem mais que regurgitação óbvia de cada imagem pronta sobre este universo.  Sobra o filme seguir cada passo inevitável da sua trama, enquanto o protagonista se perde num meio cada vez menos saudável, sem que Buraco Negro jamais sugira qualquer olhar sobre o que transcorre para além da regurgitação envernizada.

Ela, uma Chinesa (She, a Chinese), de Xiaolu Guo
(Reino Unido/França/Alemanha, 2009)

por Paulo Santos Lima
Se é fato a existência dos famigerados filmes de festival, ainda assim é sempre louvável observá-los livres desse estigma. Quando surge um Ela, Uma Chinesa, contudo, qualquer distanciamento analítico parece uma impossibilidade. Se nos anos 90 este seria um longa curioso como fenômeno, hoje é escancarado o quanto uma nova diretora chinesa, Xiaolu Guo, repete certos caminhos fáceis para encantar a ala previsível dos júris de festivais internacionais. A trajetória de Mei, bela chinesinha interiorana que, pragmática, aventura-se na cidade grande tomando várias rasteiras dos homens que vai conhecendo e até aproveitando-se de algum outro, virando bolsa e não pendendo a cabeça, é filmada como “filme de arte” chinês, com música pop emulando a ocidentalização oriental, incomunicabilidades típicas do estrangeirismo, volta por cima e desfecho filiado ao de um Noites de Cabiria de Fellini (ou, mais afinadamente, à bobagem Eu Sou Juani, de Bigas Luna). A diretora opta por um registro ágil e com elipses que mais parecem auxiliá-la a falar muita coisa em pouco tempo, como um pocket de encomenda paga por patrões europeus sobre as benesses à mulher por meio da sem-fronteirice do mundo neoliberal globalizado. Em síntese, o caminho de uma jovem mulher do arcaísmo à modernização, entre interior chinês, aulinha em Londres e retorno elevado à terra pátria, já com bebê no ventre, cumprindo o papel de mãe moderna solteira. Um discurso velho e bastante equívocado, em imagens de construção rasteira – e que conquistou o Leopardo de Ouro no Festival de Locarno.

A Empregada (Hanyo), de Im Sang-soo (Coréia do Sul, 2010)
por Fábio Andrade
A Empregada não deixa dúvidas do talento possível de Im Sang-soo: há cenas de morte filmadas com notável vigor, enquadramentos em scope bastante refinados, e uma meia dúzia de belos planos de estrada. Ainda assim, Im Sang-soo tem uma dificuldade tão grande em estabelecer o tom do filme que acaba impedindo que sua refilmagem para o clássico sul-coreano, dirigido por Kim Ki-young, se firme como mais do que uma mera curiosidade. Ao mesmo tempo em que temos cenas de timing bastante preciso, A Empregada é abalado por uma estranheza de tom que parece se acomodar em um meio do caminho pantanoso entre o naturalismo e a extrema paródia. Embora essa posição pudesse produzir um curto-circuito de registros interessante, no filme de Im Sang-soo ela atravanca a imersão sem produzir nada com essa opacidade. A se confirmar pelo aberrante final à David Lynch, A Empregada parece mesmo é disposto a atirar para todos os lugares que lhe parecerem férteis, mas sem alcançar com isso uma eficiência mais superficial, ou tampouco um mergulho de corpo inteiro em cada promessa de esquizofrenia.

Um Espetáculo Para o Grande Líder (Det Rode Kapel),
de Mads Brugger (Dinamarca, 2010)

por Eduardo Valente
Não seria nem preciso saber muito sobre os bastidores do cinema, e portanto identificar a marca que abre Espetáculo Para O Grande Líder (a da produtora Zentropa), para perceber as digitais de Lars Von Trier presentes por todos os lados neste documentário – mas, principalmente, presente no subconsciente do diretor Mads Brugger, certamente formado pela sensibilidade (na falta de termo melhor) de seu “mestre”. Assim como é o caso nos piores momentos de Von Trier, Brugger parece convencido de que o ato de expor-se no seu filme como um manipulador cínico torna o filme, automaticamente, “complexo”, quando na verdade o torna apenas mais cínico ainda. E aí é que entra em jogo a questão principal: o problema não é nem que Brugger trate seus objetos de filmagem como débeis mentais aos quais ele é evidentemente superior (inclusive por saber que isso é “errado”) – o problema de fato é que, mesmo fazendo isso, ele não consegue tirar nenhum material verdadeiramente forte da manipulação (como Von Trier já conseguiu, várias vezes). Claro, tem piadinhas fáceis e constrangimentos a granel para quem acha isso “potente”, mas é triste ver como, cego pelo próprio poder (como diretor, mas também como personagem), Brugger não percebe a oportunidade rara que tinha nas mãos, com aquelas câmeras que penetram como poucas vezes numa realidade totalmente desconhecida do mundo (a da vida na Coréia do Norte), mas que o fazem parecendo apenas conseguir filmar o seu próprio umbigo e sua “genialidade demente”. É ele, afinal, o “Grande Líder” para quem todo o espetáculo de uma nação parece ter sido montado.

Uma Família (En Familie),
de Pernille Fischer Christensen (Dinamarca, 2010)

por Eduardo Valente
Já a partir do seu título, Uma Família deixa bem clara sua maior ambição: a de ser um filme sobre “gente como a gente” (leia-se aí principalmente “gente como você que está na platéia”). É um cinema, em suma, que não acredita na arte como um encontro de alteridades que pode levar a um entendimento outro do mundo através do diferente, mas sim do reconhecimento absoluto: “é assim mesmo que é a vida – que bom que não estou sozinho no meu sofrimento”. Claro, porém, que este “assim mesmo” virá embalado em bela fotografia em scope e trilha sonora constante e emotiva – porque trata-se, afinal, de um “assim mesmo aumentado” (para justificar seu nobre estatuto de arte). No entanto, por trás da sua bela lógica do “não existe o doce sem o duro” (devidamente justificada discursivamente no filme pela prática como padeiros da tal “família”), Uma Família se diferencia muito pouco do tradicional “filme de doença da semana”, uma instituição da TV americana geralmente importada aqui pelo famoso Supercine: suas emoções são tão cientificamente estudadas quanto, assim como sua manipulação da linguagem objetiva o mesmo “mínimo denominador comum”. Sua exploração do espetáculo da morte é tão obscena quanto, ou na verdade muito mais até (pois se disfarça de algo mais), do que de qualquer pretenso filme que “explora a violência” – só que, claro, sendo dinamarquês e em scope, ele recebe o tratamento nobre do mundo do cinema, com lugar garantido na competição do Festival de Berlin.

Histórias Reais de um Mentiroso,
de Mariana Caltabiano (Brasil, 2010)

por Eduardo Valente
Nas entrevistas e apresentações que tem feito do seu filme VIPs, ficção baseada no livro que deu origem a este documentário aqui, o diretor Toniko Melo curiosamente diz que “essa história só podia ser uma ficção”. A julgar por Histórias Reais de um Mentiroso, talvez ele tenha razão. Porque depois dos primeiros cinco minutos, em que a diretora coloca em jogo toda uma série de ferramentas instigantes (como animação, música irônica, falsas imagens de arquivo) para brincar com a idéia de fabulação, que é intrínseca ao personagem de Marcelo (protagonista do documentário), o filme parece se esvaziar de idéias realmente potentes como cinema, e passa praticamente a fazer uma longuíssima reportagem, ouvindo principalmente a voz dele. Claro, entendemos que não dá para saber se essas histórias são reais ou não, mas ainda assim essa constatação dura somente um certo tempo como de real interesse. A tentativa da cineasta de se inserir como personagem, limitada como é a praticamente só o começo e uma “reviravolta” final também parece subutilizada demais para realmente interessar. O que sobra de real força são as imagens originais de Marcelo “atuando”, seja no programa Amaury Jr, seja no caso da rebelião de cadeia. São momentos de brilho no que acaba passando como uma longa conversa com um pescador – e aí talvez fosse mais interessante explorar mais longamente este discurso, e não ficar intervindo e ilustrando ele o tempo todo.

A Invenção da Carne (La Invención de la Carne),
de Santiago Loza (Argentina, 2009)

por Eduardo Valente
Desde o começo, em que a relação entre seus dois protagonistas é estabelecida a partir de suas ocupações relacionadas ao corpo (ela vende seu ‘pedaço de carne” como cobaia para aulas de medicina; ele, é um aluno), A Invenção da Carne deixa claro que seu jogo será conceitual. Se Los Labios, filme seguinte de Loza, parece seguir a cartilha do “choque entre instâncias documentais e ficcionais”, este aqui é totalmente calcado na matriz Tsai Ming-liang, aquela da incomunicabilidade imposta como condição a dois personagens que partilham uma narrativa. Acontece que em Tsai essa imposição nunca parece ser uma do diretor sobre os personagens, mas sim de todo um mundo que os leva a ela, e, até por isso, eles nos comovem com suas dificuldades (que, não por acaso, incluem considerável humor). Em Loza, não: tudo é o tempo todo sério, e por mais que ele tente nos convencer de que o destino daquelas pessoas na tela deveria nos importar por algum motivo, ou nos revelar algo de nossa própria existência, só conseguimos mesmo é prestar atenção no gesto do diretor em precisar fazer com eles passem por um calvário para, claro, sair dele “curados”.

Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro (Brasil, 2010)
por Eduardo Valente
Lá pelas tantas em Jardim das Folhas Sagradas, um dos personagens ri do andamento da história dizendo que “parece até novela antiga”. O problema para o filme de Pola Ribeiro é que, mesmo demonstrando nessa frase um certo grau de auto-ironia (sempre saudável) quanto ao seu desenvolvimento narrativo, ele parece nunca se dar conta que é na maioria dos outros quesitos, formais e estéticos, que o filme termina, sim, parecendo uma novela antiga. Isso se deve principalmente, num primeiro olhar, à performance do elenco, que cria involuntariamente um distanciamento brechtiano com as cenas (curioso que a grande exceção seja a maluca religiosa, que empresta ao filme um respiro delicioso – justo ela, que devia ser uma antagonista insana, ganha nossa simpatia por parecer trazer alguma vida dentro de si). Mas não é difícil perceber que a questão é anterior, e que boa parte dos problemas de atuação se deve de fato ao didatismo extremo do texto, que a todo momento pára a ação para “refletir” sobre ecologia ou intolerância religiosa, ou para nos ensinar algo sobre os diferentes aspectos do candomblé. A verdade é que Jardim das Folhas Sagradas é constantemente sufocado pelo escopo quase absurdo de suas boas intenções, engessado totalmente por todas as suas “questões” que, se certamente no papel deviam compor um projeto com justificativas e objetivos belíssimos (o que se percebe pela quantidade de editais ganhos, notável nas inúmeras logomarcas do começo da projeção), na tela do cinema impedem qualquer relação emocional com o material. É a transposição da máxima de Muricy Ramalho para o mundo do audiovisual: “a câmera pune”.

Paranã-Puca - Onde o Mar Se Arrebenta,
de Jura Capela (Brasil, 2010)

por Eduardo Valente
Mais do que seu subtítulo acima, logo no começo de Paranã-Puca surge uma segunda “sub-alcunha” que nos ajuda mais a entender todos os limites impostos já por sua proposta: “um panorama das artes em Pernambuco”. Pois, por mais que sinta necessidade de criar aqui e ali algumas interfaces de “invenção” (um dos artistas dá entrevista enquanto pilota sua moto pelas ruas da cidade, surgem vinhetas de cortes rápidos e sincopados), no fundo o documentário é bastante convencional na sua aproximação deste grande tema, entrevistando uma série de representantes de gerações distintas das artes plásticas pernambucanas e construindo a partir deles um painel sobre o andamento destas ao longo das últimas décadas. Registro, diálogo, história. Todo ele voltado para a palavra dos artistas, Paranã-Puca será tão interessante quanto seus depoimentos o fizerem ser, tendo como maior qualidade justamente o acesso a uma quantidade grande de nomes, que surgem bastante à vontade na tela. Na soma destes depoimentos, ao mesmo tempo em que se levantam algumas questões interessantes (como a quase onipresença dos temas do financiamento e dos agrupamentos geracionais), também impressiona um pouco um ar bastante provinciano que parece dominar as discussões (todas se voltando o tempo todo para a idéia de uma “cena pernambucana” girando em torno de si, e que resulta parecendo quase apartada do resto do mundo). E, finalmente, uma observação interessante: o uso constante do YouTube como fonte de pesquisa e registro histórico, incorporado à própria estética do filme..

Pó (Dust), de Max Jacoby (Luxemburgo/Áustria, 2009)
por Eduardo Valente
Como que para facilitar (ainda mais) a vida do seu espectador, resume todos os seus objetivos como obra já numa epígrafe que abre o filme: “Como o mundo seria quieto sem a humanidade”, diz algum antigo filósofo chinês. Pronto, daí por diante o que Max Jacoby faz é engendrar um micro-drama de três personagens que transitam por um mundo pós-apocalíptico, no qual todo resquício de presença humana está ausente. Não seria premissa de forma alguma desprovida de interesses, mas o diretor parece obcecado em conseguir retirar qualquer resquício de vida do filme (e aqui não nos referimos a seres humanos, mas à matéria fílmica mesmo) ao afogá-lo numa abundância de “elegância”. A opção, por exemplo, de que este apocalipse não tenha deixado nenhum sinal de cadáveres ou destruição, embora pudesse ser curiosa, parece apenas se dever ao fato de que uns ou outra tornariam a imagem muito menos “bela”. E quer ser “belo” e “significativo” em cada um dos seus planos – apenas não parecendo se dar conta de como é clichê afirmar sua beleza pelo uso indiscriminado de travellings laterais e pianinho minimalista em toda sequência. Em resumo, não é a poesia chinfrim de sua recriação simplória de Adão e Eva e Caim e Abel que incomoda, mas sim que Max Jacoby acredite, de maneira tão sem auto-crítica ou resquício de humor, que está fazendo uma obra “importante”. É caminho certo para se tornar apenas mais um.

Rubber, de Quentin Dupieux (França, 2010)
por Eduardo Valente
Steak, primeiro filme de Quentin Dupieux exibido aqui no Brasil apenas pela Mostra de SP (e sobre o qual escrevemos um texto) tinha a seu favor o choque de ser pensado na França efetivamente como um projeto comercial, que usava uma dupla de comediantes bastante famosa para causar um curto-circuito de gêneros e expectativas narrativas certamente bastante profícuo no olhar do grande público. Nesse sentido, Rubber representa um passo atrás, uma vez que toda sua estranheza parece muito domesticada e bem pensada para um circuito mais “intelectual” (não por acaso estreou mundialmente na Semana da Critica, em Cannes). O recuo metalingüístico que propõe, ainda que jocoso, deixa bem claro esse seu estatuto por demais “esperto”. Não que o filme não tenha boas sacadas em encenações ou diálogos, ou que não consiga rir um tanto dessa sua própria condição híbrida, mas, já que nunca mergulha de verdade no prazer quase infantil que representa seu maior interesse (algo como “vamos explodir umas cabeças”), o fato é que ele não chega a atingir a selvageria que seria necessária para que passasse de uma compilação de pequenas boas cenas isoladas.

O Segredo da Rua Ormes (5150, rue des Ormes),
de Éric Tessier (Canadá, 2009)

por Eduardo Valente
Quando perguntado sobre por que dividir Kill Bill em duas partes, Tarantino saiu-se com a boa idéia de que um filme que homenageava alguns dos gêneros mais “baratos” do cinema mundial não podia durar quase 3 horas e ser fiel a eles. Independente de ser a verdadeira razão ou não, a frase, para além de muito boa em si, guarda muita verdade – uma verdade da qual se ressente este O Segredo da Rua Ormes. O filme até começa prometendo entender parte do apelo sempre bastante direto do cinema de gênero, apresentando um “herói” estudante de cinema, e nos revelando que a “rue Ormes”, em inglês seria “Elm Street” (referência óbvia a Hora do Pesadelo). No entanto, a referência a Craven ou a metalinguagem entram no filme apenas como grifes mal usadas, porque O Segredo da Rua Ormes vai se levando mais e mais a sério, na medida em que passam seus longuíssimos 105 minutos. A impressão que se tem é que o diretor teve uma ótima idéia para um huis clos doentio e radical, mas que resolveu mostrar num filme-portfólio todas as suas outras capacidades como cineasta – o que inclui algumas contrangedoras sequências de efeitos digitais grandiosos. Quanto mais se infla, mais Rua Ormes se afasta do seu centro de atração, ganhando muito pouco (ou, para ser exato, nada) em troca. Faltou ouvir Tarantino.

O Senhor do Labirinto, de Geraldo Motta (Brasil, 2010)
por Filipe Furtado
Logo nas suas rebuscadas primeiras imagens, o projeto de O Senhor do Labirinto fica claro: usar tintas fortes e o máximo de mimetismo para realizar um respeitoso e protocolar retrato de Arthur Bispo do Rosário. Geraldo Motta não se farta a mão pesada para registrar a trajetória do seu biografado, e confia na combinação da presença de cena de Flavio Baruaqui e da fotografia da Katia Coelho para atingir o espectador. O que falta a O Senhor do Labirinto é justamente o que sobrava ao seu homenageado: um ponto de vista. Não há um olhar aqui, somente uma série de pontos importantes que precisam ser ilustrados de forma correta e edificante.  O que termina tornando o trabalho de Motta pesado e pouquíssimo fluente. O Senhor do Labirinto não nos diz nada sobre seu personagem central, porque nunca lhe parece ocorrer que poderia fazê-lo. È também incapaz de organizar sua história como drama porque, novamente, não parece ocorrer a Motta que é possível pegar os fatos e construir uma dramaturgia a partir deles. Se algo impressiona em O Senhor do Labirinto, é justamente como em nenhum momento os responsáveis pelo filme percebem que o cinema pode muito mais que o mimetismo acadêmico da sua proposta.  Arthur Bispo do Rosario (e sua arte) merecia algo maior que um verbete de Wikipédia ilustrado.

O Sequestro de um Herói (Rapt), de Lucas Belvaux (França, 2009)
por Filipe Furtado
O Seqüestro de um Herói acompanha, com um olhar clínico, as movimentações e múltiplas agendas de interesse entorno do seqüestro de um grande industrial francês, o que termina causando diversas revelações desagradáveis sobre os excessos da sua vida privada. Estão lá seu cativeiro doloroso – o seqüestro se arrasta durante dois meses -, as tentativas da família de lidar tanto com o preço do resgate (acima do esperado) como com o escândalo na mídia, a ação da polícia (que nunca parece muito mais preocupada  com seus próprios interesses do que com a integridade física do entrevistado ou a saúde mental de seus familiares). Todas estas ações externas são delineadas com grande precisão por Belvaux, mas escondem um profundo desinteresse por cada um destes agentes para além das suas funções de trama. À primeira vista este tratamento sugere uma radicalização de exercício de gênero como outras a que o cinema francês se dedica de tempos em tempos, mais um filme de procedimento do que um filme de suspense. A virada no último ato após o fim do seqüestro, porém, expõe como o projeto de Belvaux é eficaz na teoria, mas frágil como experiência cinematográfico. Fica claro ali que boa parte do tom oco do filme estava ali para suportar a completa ausência de empatia tanto do protagonista pelo sofrimento da esposa e filhas, quanto destas pelo dele. No papel, todo o processo de encastelamento do protagonista orgulhoso completa muito bem o tom que Belvaux impusera até então, mas ele termina só por reforçar como o filme é um exercício em opacidade cuja competência na construção de cenas esconde um centro desprovido de interesse. Seu grande mérito é seu completo esvaziamento.

A Vida Durante a Guerra (Life During Wartime),
de Todd Solondz (EUA, 2010)

por Filipe Furtado
Após o considerável sucesso no circuitinho de Bem Vindo à Casa das Bonecas e, especialmente, Felicidade, a carreira de Todd Solondz entrou em crescente irrelevância. O sucesso inicial destes filmes – sitcoms malvadas com bom ouvido para diálogos cruéis – diz mais sobre o bom timing do cineasta do que seu talento. Quando a forma distinta de esperteza em que o cineasta americano se especializara saiu do gosto do espectador, seu cinema igualmente desapareceu rumo à completa irrelevância. Visto assim, A Vida Durante a Guerra não é de fato um filme, mas uma operação: seu objetivo não é filmar ou iluminar nada, mas simplesmente reviver seu autor. Trata-se de uma seqüência de Felicidade, lançando mão do recurso de substituir os atores do filme original por um grupo novo a reinterpretar os mesmos personagens. Solondz regurgita com pequenas variações o mesmo material miserável do seu original (a referência a guerra no título é menos um dado no filme e mais reflexo de quão desesperado o cineasta se tornou, e do tom exploitation da empreitada como um todo). O suposto interesse do filme reside justamente no seu truque central, e mesmo ali o experimento de Solondz fracassa, justamente porque seu cinema nunca lidou com personagens, mas somente tipos. Tanto faz se em cena está Dylan Baker ou Ciaran Hinds, já que a troca de ator só reforça que o que vemos é uma superfície dotada de tiques. Se algo interessa neste processo é justamente o quanto esta opção reflete na posição do cineasta: A Vida Durante a Guerra é uma operação desesperada, um cineasta tentando desesperadamente reanimar sua carreira por via de um jogo de marionetes em que seus bonecos jamais ganham vida.


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