textículos - edição
especial festival do rio 2008 Ano
Unha (Año Uña), de Jonás Cuarón
(México, 2008) por Fábio Andrade Ano
Unha é introduzido por uma cartela que diz que o filme nasce de um roteiro
ficcional, escrito a partir de fotografias e personagens registrados de maneira
documental. Que o espectador não se engane: não há, aqui, sinal ou intensão do
trânsito no entre-gêneros de um La Jetée, de Chris Marker, mas sim uma
clássica fotonovela, substituindo, apenas, as legendas das revistas por atores
que falam e pensam em off. Nos primeiros vinte minutos, Jonás Cuarón (filho
de Alfonso) faz esforço perceptível para inflar sua opção estilística com “substância”.
O resultado é bastante desanimador: personagens extremamente tipificados, em jorros
de consciências privadas onde toda palavra é escrita com traços que desenham um
discurso. Mas quando o filme reduz sua ambição a uma estória boy meets girl¸
Ano Unha larga boa parte de seu peso pelo caminho, flutuando entre boas
piadas e um feelgood que, até então, não parecia ter lugar entre aquele
desfile de preconceitos. Aos poucos, o registro fotográfico parece responder menos
à intenção de Molly (Eireann Harper, interpretando a menina que viaja apenas para
tirar fotos), e encontra maior simpatia no desejo de Diego (Diego Cataño) quando
diz: “Queria congelar esse momento e vivê-lo para sempre”. Suando o excesso de
pretensão pelo caminho, Ano Unha aos poucos conquista momentos de sincero
engajamento do público. O que, vistos os primeiros vinte minutos de filme, é muito
mais do que qualquer espectador poderia esperar.
A
Boa Vida (La Buena Vida), de Andrés Wood (Chile/Argentina/Espanha/França,
2008) por Eduardo Valente E
lá vamos nós de novo: filme-coral, personagens que se cruzam pela
cidade aleatoriamente (mas não muito porque "estamos todos conectados",
né?), sempre sofrendo o máximo possível - talvez para que
o espectador, do conforto de sua cadeira, possa se sentir mais afortunado e "dar
valor ao que ele tem". Tudo a serviço de um sentimentalismo fácil,
onde o cinema de ficção é pensado tão somente como
mecanismo de exploração do sofrimento alheio (ainda que ficcional),
para catarse do diretor e da platéia. Como cereja do bolo, a opção
por nem dar à personagem pobre a possibilidade de existir na tela para
mais nada que não seja objeto de humilhação dos outros; e
ainda a cara de pau de propor um título "irônico". Conclusão:
antes o cinema de um Ulrich Seidl, que propõe honesta e abertamente que
o ser humano é sujo por natureza e que o espectador é um sádico
voyeur, do que a mesma proposta disfarçada de humanismo exemplar.
Casa
Negra (Geomeun jip), de Terra Shin (Coréia do Sul, 2007) por
Fábio Andrade Primeira
grande produção dirigida por Terra Shin, Casa Negra filia-se à indústria
de gênero conhecida como K-Horror – movimento sul-coreano pensado aos moldes do
novo cinema de horror japonês. Passando longe tanto do teor político de Bong Joon-ho
(O Hospedeiro), quanto do psicologismo gore de um Park Chan-wook,
Casa Negra busca pares no Japão: a mise-en-scène de Terra Shin estaria
em algum ponto morno entre o niilismo exuberante de Takashi Miike e a frieza clínica
de Kyoshi Kurosawa (ambos com filmes presentes no Festival). “Morno”, porém, é
palavra importante: para além de uma mínima eficiência narrativa, Casa Negra
é marcado por uma visível confusão de registros. Oscila entre o horror e o humor,
entre o estático e o pulsante, entre a sugestão e a revelação explícita, gerando
uma pane formal que é mais fruto de uma notável insegurança do realizador, do
que de um desejo mais ousado de retrabalhar as convenções do gênero. Embora cumpra
com alguma dignidade suas intenções, Casa Negra ganha espaço no Festival
mais como um representante aleatoriamente pinçado de um gênero pouco difundido
por aqui, do que como uma experiência cinematográfica digna de particular atenção.
Cordeiro
de Deus (Cordero de Diós), de Lucía Cedrón (Argentina/França/Espanha,
2008) por Eduardo Valente Mais
uma história de lembranças da ditadura militar em países
latinos contada pelo viés da personagem infantil - algo que se mostra muito
recorrente, é claro, principalmente por ser a vivência de uma certa
geração que filma agora. Só que Cordeiro de Deus,
ao contrário de vários outros, se passa no ontem e no hoje, interessado
que está também na dimensão dos traumas da violência
do período nas relações familiares - algo até interessante
como conceito mas que Lucia Cedrón soluciona de maneira, para ser gentil,
claudicante. Isso acontece porque tudo no filme existe para dar sustento a uma
relação de pura informação: por um lado, o peso da
"aula de História"; por outro, um desejo de manipular os dois
tempos narrativos e as relações humanas de maneira a criar um certo
suspense que nunca se manifesta de fato. Falta pulso, falta coração,
falta cinema em suma. Cordeiro de Deus não se diferencia do que
poderia ser uma reportagem de jornal ou um conto literário, porque tudo
nele se basta como dado, e nunca como imagem que tenha vida própria. Um
cinema engessado que faz da História no cinema o equivalente à mais
maçante das aulas de colégio.
Easy
Virtue, de Stephan Elliott (Inglaterra, 2008) por
Eduardo Valente Desde
o desenho dos créditos iniciais, Stephan Elliott deixa claro que, nessa
volta ao cinema depois de nove anos afastado (inclusive por motivos de doença),
ele quer muito se divertir. E esta é a principal virtude de Easy Virtue
- uma, aliás, nem sempre tão fácil assim, com o perdão
do trocadilho. Elliott se aproveita em parte do texto de um Noel Coward ferino
(embora, a bem da verdade, em alguns momentos o texto seja um pouco witty
demais da conta) e em parte de uma mise-en-scène de uma fluidez
notável, entre elegantes movimentos de câmera e uma montagem de cortes
rápidos, mas nada bobos. Fica claro que seu desejo é o de retomar
uma certa tradição da comédia de costumes, não só
no teatro como no cinema dos anos 30-40, e ele consegue reproduzir o que talvez
seja o principal de alguns dos melhores filmes do período: a capacidade
de transformar a diversão na realização em diversão
na tela, que transborda então para o espectador. Por fim, não podemos
deixar de falar de três escolhas sábias no elenco: Colin Firth dando
muita dignidade ao seu personagem; Kristin Scott Thomas se divertindo como a megera
inglesa; e, acima de tudo, uma Jessica Biel que, se não chega a ser brilhante
como comediante, também não faz feio - ou melhor, faz o principal,
que é ter uma presença de tela que dá total veracidade ao
impacto de sua personagem no espaço onde se passa a trama.
Expresso
Transiberiano (Transsiberian), de Brad Anderson (Inglaterra/Alemanha/Espanha/Lituânia,
2008) por Paulo Santos Lima Estamos
diante de um thriller no qual um casal americano (Woody Harrelson e Emily
Mortimer) entra numa enrascada ao conhecer um jovem casal no trem do título. Para
crescer a tensão, o filme nos informará que a Rússia é um país de bárbaros, que
o marido é um perfeito boçal ao passo que sua esposa é uma ex-pervertida tentando
se regenerar mas se assanhando com os recém-amigos de viagem (o rapaz, no caso)
e que eles estarão envolvidos com o tráfico de drogas no trajeto. O tal expresso,
em si, não é nada além de um cenário para a encenação do drama – e estamos falando
de uma das mais notórias linhas férreas do planeta. (bem questionável e esquisito,
aliás). Se em O Operário o norte-americano Brad Anderson indicava ser um
diretor querendo criar uma estética sua, notadamente pelo uso da figura do ator
Christian Bale, esquálido e interagindo com a estilização espacial dos espaços
industriais que criava um “neo-expressionismo”, com este O Expresso Transiberiano,
o diretor simplesmente opta pela convenção total da indústria, deixando suas imagens
sem assinatura e a serviço de um roteiro de causa-efeito bastante ultrapassado.
Involuntário
(De Ofrivilliga), de Rubens Ostlund (Suécia/França/Noruega, 2008) por
Eduardo Valente Vez
por outra acusamos um ou outro cineasta de usarem seus personagens ficcionais
para tão somente ilustrar uma tese ou uma idéia sobre o mundo, esvaziando assim
a ficção de qualquer potência independente frente o “mundo real”. Pois Involuntário
impõe um problema maior, pois esta que pode ser uma conclusão na análise de algumas
obras ficcionais aqui é de fato o objetivo assumido pelo filme desde bem cedo
(como evidenciado numa cena que, de tão didática, se desenrola numa sala de aula
infantil). De fato, aquilo que une as seis histórias que se revezam na tela, mais
do que uma tese, trata-se mesmo de uma acusação ao ser humano: a de que, levado
pelas “leis da convivência social”, ele se acovarda quando em grupo e é capaz
dos atos mais vergonhosos justamente por não querer passar vergonha frente aos
colegas. Para ilustrar a tese, como dissemos, seis histórias, cujas cenas vão
sendo separadas por uma solene “tela negra”, e onde o papel do cineasta e do espectador
é, sob a desculpa de “se colocar no lugar dos personagens”, tão somente observar
quão baixo os seres em cena poderão descer. Logo fica claro que Rubens Ostlund
é apenas mais um novo aluno na escola de Michael Haneke, sem possuir qualquer
talento específico que o distinga ou cause interesse.
M
- Vidas Duplas (M), de Ryuichi Hiroki (Japão, 2006) por
Eduardo Valente Nos
primeiros trinta minutos, M - Vidas Duplas surpreende ao mostrar de uma
sociedade japonesa que, mesmo reprimida na sua relação com a sexualidade
e as drogas, encontra uma forma de burlar as interdições. Trata-se
de um começo onde emana uma forte sensualidade da tela (principalmente
na história de uma esposa que nos lembra a Bela da Tarde de Buñuel),
e onde o espectador é levado a se posicionar, inclusive no aspecto sensorial,
sobre algumas imagens no limite do perturbador. No entanto, com o desenvolvimento
da narrativa e o entrecruzamento entre suas duas histórias, o filme logo
mostra a verdadeira cara: toda a sexualidade descamba para a violência,
assim como a questão das drogas para a marginalidade, e o que no começo
parecia provocação ao espectador logo se revela na verdade de um
proofundo sadismo - com personagens e espectadores. O discurso se superpõe
à forma, e o decadentismo, mesmo que propondo uma suposta "saída
lúdica" ao final, não deixa dúvidas:
mesmo na aparente liberalidade de suas imagens, M é parte do ambiente
repressor.
Na Mira do Chefe (In Bruges),
de Martin McDonagh (Inglaterra/Bélgica, 2008) por
Paulo Santos Lima Após
um conturbado trabalho, dois assassinos profissionais britânicos são enviados
para a histórica cidade medieval de Bruges, a fim de aguardar novas ordens do
patrão. Ainda que elegantemente filmada por câmera classicamente sutil, em scope
alimentando uma exuberância naquela arquitetura, Bruges não será uma questão ao
longo do filme, exceto como ponte cômica para o personagem de Ray (Colin Farrell),
que detesta história (“tudo já aconteceu”, diz) e acha aquele lugar um tremendo
tédio. Esse humor, bastante herdeiro da tradição britânica anti-correção política,
dá respiros formidáveis a este filme que, além da câmera cuidadosa, mantém um
certo tom solene, sobretudo quando envereda pelo drama de Ray, que matou por engano
uma criança na igreja. O resultado é um jogo interessante, de onde uma cena dramática
é implodida por uma frase pescada do ótimo texto ou pelas atuações de Farrell,
de Brendan Gleeson (que faz Ken, o parceiro) e de Ralph Fiennes (cuja aparição,
a horas tantas, é a síntese desse jogo interessante de usar o inusitado para “sabotar”
os momentos dramáticos). Assim, o choro é quebrado por uma noitada a pó, mulheres
e álcool, ou uma terrível morte acaba resgatando (e confirmando) uma piada “politicamente
incorreta”, de anão, feita anteriormente por Ray. É um cinema de ator, mas com
elenco que se presta bem ao serviço da zombaria.
Ninho
Vazio (El Nido Vacio), de Daniel Burman (Argentina/Espanha/França/Itália,
2008) por Eduardo Valente Encontramos
Leonardo num daqueles momentos delicados da vida: dramaturgo de sucesso, casado
com a bela Martha, está chegando na idade em que sua filha mais velha se
prepara para sair de casa. A partir da noite em que se dá conta disso (após
um jantar em que se dá conta também de uma série de inadequações
entre ele e a mulher - e principalmente os amigos desta), ele entra em uma espécie
de parafuso mental (criativo, claro, afinal é um artista) que vai transformando
sua vida num constante estado de desencanto e/ou desespero. Daniel Burman filma
isso tudo com sua habitual mistura de elegância, diálogos inteligentes,
grandes atores, câmera na mão (quase sempre excessivamente), tudo
no lugar - um pouco no lugar demais, inclusive, e as cenas parecem tão
somente servir para ilustrar os problemas de Leonardo de maneiras um tanto óbvias
(ver, principalmente, as que se passam na terapia de casal, ou no caso extraconjugal
que vive com sua dentista). Na verdade, mais do que isso, o problema principal
de Ninho Vazio é que Leonardo é um personagem desagradável
ao extremo no seu egocentrismo infantilizado (e há outro tipo?), e ao fazer
um filme todo sob seu ponto de vista (em mais de um sentido, como confirmamos
no final), Burman impõe-se um desafio nada pequeno: como causar a empatia
do espectador pelo ponto de vista de um homem desagradável? Longe de propormos
que o cinema só trate de personagens simpáticos, mas o fato é
que o tamanho do desafio não é resolvido em mais este exemplar do
cinema humanista-formulaico de Burman, que se sempre foi de altos e baixos, aqui
vê os segundos acabarem sobressaindo-se aos primeiros (ainda que estes existam).
Noites
de Tormenta (Nights in Rodanthe), de George C. Wolfe (EUA, 2008) por
Eduardo Valente O
caminho mais fácil para descartar de saída Noites de Tormenta seria acusar
aquilo que, no fundo, ele não nega ser: um enorme emaranhado de clichês de filmes
românticos com fins “curativos”, embrulhados por uma fotografia e direção de arte
hiper-trabalhadas, com um par de atores (Richard Gere e Diane Lane) claramente
em piloto automático, revisitando suas personas mais que estabelecidas, sem se
preocupar em adicionar nada de novo. No entanto, existe algo de mais profundamente
perturbador no filme do que sua aparência mais imediata deixa antever (ou do que
a quase cópia de As Pontes de Madison que ele é). Muito mais do que sua
opção pelo clichê, o que realmente incomoda é o fato de que toda a lógica de Noites
de Tormenta vem da afirmação de que um momento único vivido e dividido entre
duas pessoas pode movê-las internamente mais até do que suas vidas anteriores
todas – no entanto, o que George C. Wolfe parece não se dar conta é de que como
espectadores nós precisamos, cinematograficamente, acreditar na força deste momento.
Ao encená-lo de maneira ao mesmo tempo tão óbvia e artificializada, Wolfe não
cria um momento humano único e sim um momento cinematográfico já mais do que digerido
e tornado lugar comum. E como podemos nós acreditar, então, que um tamanho lugar
comum pode mudar a vida das pessoas? A resposta é: não podemos. Paisito
(idem), de Ana Díez (Espanha/Argentina/Uruguai, 2008) por
Ronaldo Passarinho O
golpe militar de 1973 no Uruguai serve como pano de fundo para uma história de
amor ou a história de amor serve como pretexto para uma dramatização do golpe
militar? Essa dúvida não é apenas do espectador de Paisito, é da própria
cineasta, que não soube optar por uma das duas abordagens e não descobriu uma
terceira via em que as duas coexistissem à vontade. A narrativa transita, ou,
mais apropriadamente, claudica, entre o reencontro de um jogador uruguaio de futebol,
vendido para um time espanhol, com sua namorada de infância, no presente, e a
história de amor entre os dois, no passado. No presente, concentra-se no casal.
No passado, abandona as crianças a maior parte do tempo e se perde em diálogos
intermináveis e sempre muito didáticos sobre a situação política da época. A narrativa
mal-alinhavada tem sua contrapartida no estilo desleixado da direção: o filme
é basicamente uma sucessão de campos e contracampos captados por câmeras fixas
rodando simultaneamente, como num estúdio de TV. Sem outros méritos artísticos,
Paisito poderia almejar ser uma história bem contada, mas nem isso consegue
ser.
O Sal Desse Mar (Milh Hadha Al-Bahr),
de Annemarie Jacir (Palestina/França/Suiça/Bélgica/EUA/Inglaterra/Holanda/Espanha,
2008) por Eduardo Valente Em
material de divulgação desta sua estréia em longas, Annemarie
Jacir diz que "todo filme feito na Palestina é um pequeno milagre".
A frase, muito mais do que mística, seria a constatação de
um estado de coisas sócio-econômico-político que torna a simples
existência na Palestina um feito e tanto, quanto mais a realização
de um filme (que, de resto, para se concretizar, como podemos ver acima, conta
com o dinheiro de um belo número de países dispostos a ajudar no
"milagre"). Frente ao filme que se nos apresenta, temos assim duas posturas
possíveis: a de maravilhamento frente à realização
deste milagre (que, neste caso, quase prescindiria dos nossos olhos); ou a ida
ao encontro dessas imagens, respeitando-as de forma igual a qualquer outro filme
- o que não só nos parece a posição política
mais adequada, como aquela que um palestino mais desejaria: ser tratado como qualquer
outro. Optando por este segundo caminho, o que constatamos é que o peso
do milagre faz muito mal a O Sal Desse Mar, porque talvez incerta de jamais
ter uma outra chance de realizar um longa, Jacir tenta resumir neste aqui toda
a sua vivência e sentimento sobre o "ser palestino". Ao fazer
isso através dos corpos de dois personagens, ela os torna apenas "cavalos",
quase no sentido espírita do termo, para que encarnem uma série
de discursos sobre o estado de coisas político, social e existencial do
povo palestino, em suas duas vertentes: a emigrada e o isolado. Entendemos isso
bem cedo no filme, e por mais que ele encene algumas sequências de força
(a chegada no país, o assalto ao banco, a visita às ruínas),
elas nunca deixam de ser as unidades isoladas de ilustração de uma
circunstância. Talvez um dia fazer um filme na Palestina já não
seja um milagre, e aí talvez Annemarie Jacir possa se desprender do peso
da responsabilidade sócio-histórica que tanto engessa este seu filme.
O Sangue Brota (La sangre brota), de Pablo
Fendrik (Argentina/França/Alemanha/Holanda, 2008) por
Eduardo Valente Comecemos
pela técnica, já que ela se impõe como questão: é
preciso desconfiar de qualquer filme que "descobre" uma lente que serve
para filmar todos os planos, todos os personagens, todas as situações
dramáticas - e é o que acontece aqui com Pablo Fendrik, que filma
todos os planos de seu filme com uma lente zoom. Entender seu pressuposto
teórico não é muito difícil, uma vez que a lente zoom
isola todos os corpos: os personagens uns dos outros, mas também do espaço
à sua volta. Fendrik quer nos falar, assim, de um mundo onde todos estão
na base do cada um por si, e onde todo contato humano tenderá, de início
ao no fim, à exploração, à perversão, ao jogo
de poder. Um estado de distopia absoluto que, convenhamos, é tão
(ou mais) ingênuo quanto o mais inocente dos filmes utópicos onde
tudo no mundo é bonito, simples, bem resolvido. Mas o uso desta lente acaba
tendo um segundo sentido, que parece mais adequado ao filme: os personagens acabam
parecendo sempre sob as lentes de um microscópio. Se tornam assim bactérias,
vírus, objetos de estudo do cientista do mundo que o cineasta se revela
acreditar ser, e que chama o espectador para partilhar deste seu ponto de vista.
A cada um, então, caberá decidir se aceita participar deste "experimento
cinematográfico" que iguala o ser humano ao mais insignificante dos
micróbios. Sob Controle (Surveillance),
de Jennifer Lynch (Alemanha/Canadá, 2008) por
Eduardo Valente O
maior desejo do crítico ao começar a analisar um filme cuja autoria
remete à filha de um grande cineasta, como é o caso deste aqui,
realizado pela filha de David Lynch, é o de poder ignorar completamente
esta filiação e ater-se ao que nos apresenta a cineasta em questão.
No entanto, Jennifer Lynch não faz este trabalho muito fácil aqui,
pois deixa uma tamanha série de indícios de relação
com a obra do pai, que se torna impossível não pensar nele. Só
que a questão é que enquanto o imaginário sempre rico e um
tanto doentio de seu pai se afirma no cinema como um ato de fé na imagem
e na imaginação, no filme da filha a história se repete como
farsa, e as ferramentas parecem usadas para criar um mundo que, embora eventualmente
divirta e eventualmente crie imagens perturbadoras, parece sempre ao nível
da pele, do pastiche, da impossibilidade de propor de fato um mundo audiovisual
seu, levando à necessidade de habitar num mundo dado, que fascina, mas
no qual não se acredita nunca de todo. De fato, talvez a forma mais enriquecedora
de se ver o filme seja aproximando a cineasta à personagem infantil do
seu filme: uma menina que testemunha os atos mais dantescos de violência,
e que viverá para transfigurar aquilo de alguma forma no seu imaginário.
Pensamos então na jovem Jennifer, passeando pelos sets de filmagem de um
Veludo Azul, por exemplo, e depois tentando lidar com aquilo tudo de alguma
maneira. Visto assim, talvez Sob Controle seja mais interessante do que
como experiência autônoma de cinema.
Um
Segredo (Un Secret), de Claude Miller (França, 2008) por
Eduardo Valente Durante
sua primeira hora, Um Segredo até consegue enfrentar dignamente sua obrigação
de ser um exemplar típico do novo “cinema francês de qualidade”, com atores de
renome, super-produção e narrativa engessada. Nesta primeira hora, Miller demonstra
elegância nas idas e vindas entre 1955 e 1985, conta com o carisma à toda prova
de Cecile de France e mantém o interesse. A partir do momento em que uma terceira
linha temporal é somada, no entanto (a que configura o tal segredo do título),
o filme mergulha de vez no tédio completo, fazendo pouco mais do que ilustrar
com imagens e sons uma narrativa que, para além de ser toda mastigada por uma
narração em off onipresente, já mais do que antecipamos e compreendemos.
É quase triste ver uma Ludivine Sagnier tão apagada e pró-forma em um papel de
sofredora orgulhosa num filme que logo se revela que não será lembrado como nada
além de apenas mais uma obra sobre o sofrimento judeu durante os anos do nazismo.
Sereia
(Rusalka), de Anna Melikian (Rússia, 2007) por
Eduardo Valente Desde
a primeira cena de Sereia, onde conhecemos a origem da personagem principal,
Anna Melikian deixa clara sua aposta num certo tipo de encenação domesticada do
bizarro, com interesse numa cumplicidade fácil do espectador, um sorriso condescendente
que diga “como são humanas estas pessoas tão esquisitas”. Está longe de ser a
única semelhança de seu filme com Amélie Poulain. Melikian segue daí para
a frente o caminho esperado: história agridoce de seres desconectados precisando
de alguma humanidade para encontrarem seu caminho, narrada com a preguiça visual
de quem viu muitas vinhetas da MTV e considera que uma sequência delas equivale
a construir dramaturgia. Tudo sempre, em busca do riso fácil ou da lágrima mais
ainda. De curioso apenas ver como o filme tenta internalizar a questão da linguagem
publicitária e sua relação com os sentimentos humanos no mundo de hoje quando,
no fundo, usa de uma lógica de construção de sentido bem parecida com a facilidade
dos slogans de propaganda. O
Visitante (The Visitor), de Tom McCarthy (EUA, 2008) por
Eduardo Valente Durante
os quinze primeiros minutos de sua duração, O Visitante mantém o espectador
interessado pela sua maneira de seguir um personagem que, a princípio, não conseguimos
entender porque interessaria ao filme. No entanto, se estamos atentos ao logotipo
que abre seus créditos (da Participant Productions, companhia americana especializada
na “ficção liberal”) e a algumas pequenas pistas que vão sendo deixadas pelo caminho,
não podemos deixar de ter uma pontinha de suspeita de que o pior pode acontecer
– só não esperaríamos que acontecesse com a força arrasadora que torna o filme
uma quase comédia involuntária. A partir do momento em que seu protagonista (um
amargurado professor universitário americano sem motivação na vida após a morte
da esposa) conhece um imigrante ilegal sírio em Nova York e se torna o seu “melhor
amigo”, o filme passa a desafiar todos os limites para diálogos constrangedores,
humanismo de almanaque e previsibilidade narrativa. Nem quando Hiam Abbass (“a”
atriz palestina de exportação) entra em cena o filme consegue melhorar, construindo
sua narrativa de “conversão” à humanidade do Homem Branco Americano Comum, onde
este surge sempre com maior interesse para o filme do que os imigrantes (sempre
“dignos” e patéticos na sua dignidade funcional), que servem apenas de pano de
fundo para a expiação de culpa em escala global. Ao fim e ao cabo tudo que o filme
quer dizer é que a pior coisa que pode acontecer para os EUA é se tornar “que
nem a Síria”. Taí uma mensagem politicamente incorreta disfarçada de correção
absoluta. editoria@revistacinetica.com.br
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