textículos - edição especial festival do rio 2007

Ainda Orangotangos, de Gustavo Spolidoro (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente
“Filme todo narrado em um plano-sequência no qual cruzamos por vários espaços da cidade de Porto Alegre, acompanhando uma série de curtos momentos na vida de personagens cujas trajetórias, aleatoriamente, se cruzam.” Este seria um resumo bastante fiel do que é Ainda Orangotangos – e, para o bem e/ou para o mal, é um resumo que contém em si as principais qualidades e as limitações do filme que vemos na tela. As qualidades: uma entrega radical à sua proposta, com enorme frescor e garra deixados bem claros na tela, seja na dinâmica de câmera/produção, seja na atuação do elenco; alguns ótimos momentos (a destacar o começo e o final); um desejo de filiação a um espaço e tempo (Porto Alegre, hoje) pouco explorados no cinema nacional de longa-metragem; um belo trabalho de câmera, nem tanto pela maratona, mas pela capacidade de mudar de escala (close/plano geral) com fluidez considerável. As limitações: uma sensação eventual de que o filme é prisioneiro do seu dispositivo, uma vez que algumas das situações (notadamente o diálogo no ônibus e a cena de bebedeira no apartamento) se esgarçam para além de suas possibilidades, sem permitir o corte, a intervenção (vale mais o conceito do que o resultado); a entrega da idéia de drama a um jogo de cena onde todos os personagens que não se resolvem na lógica do absurdo (o japonês, o professor de canto) ou da rapidez na tela (diálogo entre vendedor e menino de rua) acabam revelando sua fragilidade de construção e interesse. Se, como projeto, Ainda Orangotangos tem muito de apaixonante, como filme na tela parece por demais devedor de determinadas matrizes claras (Richard Linklater e Tarantino, principalmente), matrizes estas que se encontram hoje em pontos tão diferentes nas suas próprias preocupações e carreiras, que acabam dando ao filme de Spolidoro uma curiosa sensação cinematográfica de anacronismo, um quê de anos 90 tardios.

O Antigo Jardim (Orae-doen jeongwon),
de Im Sang-soo (Coréia do Sul, 2006)
por Eduardo Valente
Depois de um começo curiosamente estilizado, com a saída do protagonista da prisão, O Antigo Jardim anda bem rápido, cheio de transições temporais e de cenas, criando uma certa confusão sobre os personagens, principalmente entre os espectadores que conheçam pouco (ou quase nada) da história sul-coreana - como é o meu caso. De repente, porém, o filme chega a um determinado espaço e lá se instala: são os momentos mais fortes de O Antigo Jardim, que quase fazem com que nos perguntemos para que aquela correria inicial. Uma vez no espaço da isolada casa perto do lago, o filme entra numa chave melodramática tradicional, com a relembrança do protagonista da história de amor que viveu ali, 17 anos antes. Há um jogo entre passado e presente bem orquestrado a princípio, mas que depois é deixado estranhamente de lado, e a história ganha um andamento quase linear que, cada vez mais, se mistura com eventos políticos coreanos. O filme volta ao presente e ao melodrama para seu desfecho, e comprova mais uma vez que é a chave em que trabalha melhor. Ao fim, se confirma o olho bastante forte de Im Sang-soo, com alguns planos e sequências belíssimos (destaque para a despedida do casal num ponto de ônibus), O Antigo Jardim é um filme com uma estrutura bastante estranha e nem sempre bem resolvida, que parece atravancar seu andamento.

O Assaltante (El Asaltante),
de Pablo Fendrik (Argentina, 2007)
por Paulo Santos Lima
O Assaltante funciona mais como um exercício. Algo coerente para um cineasta de um único curta-metragem que já está dando seu audaz pulinho para a longa duração. Coerente, saudável, mas não inteiramente louvável: o resultado, no conjunto dos 67 minutos (outro sinal de que este é mais um curta expandido), é um tanto irregular, começando com um ótimo fôlego que vai se tornado asmático no terço final da história, graças a certas gorduras rodantes. O filme acompanha por algumas horas, quase em tempo real, o percurso de um assaltante de escolas (o soberbo Arturo Goetz, de Leis de Família, cuja atuação parece responsável por parte das virtudes deste esforçado filme). Temos, então, uma câmera na mão trepidante, mas bem sintonizada com os espaços e no jeito como modula os espaços (contornando os personagens ou puxando um travelling, por exemplo). E, claro, os planos-sequência, alguns bastante perseverantes, longos, ora colados nos corpos dos personagens, fazendo enquadramentos diferenciados, meio à irmãos Dardenne — e caminho bocadito fácil para exibir virtuosismos no portfólio. Mas há algumas reviravoltas (uma garçonete que atrapalha o itinerário do aplicado ladrão de meia idade) e surpresinhas que poluem aquilo que seria um exercício de fato estóico. Mas o primeiro assalto é a algo a ser notado, pela fluidez e ritmo (ritmo imposto pela mise-en-scène, pois estamos num plano sem cortes) com o qual a coisa se processa, afinado a pequenos detalhes. É um belo momento que pode anunciar um diretor bastante hábil. A aguardar.

Entrevista (Interview),
de Steve Buscemi (EUA, 2007)
por Eduardo Valente
Um homem e uma mulher fechados num quarto (ou melhor, num loft novaiorquino) estabelecem uma relação onde desejos, verdades e mentiras são constantemente redimensionados. É bem verdade que a sinopse acima nos remete a alguns outros filmes (só para ficar no último ano, Incuráveis, de Gustavo Acioli e Na Cama, de Matías Bize), mas, fiel à tradição norte-americana, Buscemi nem mergulha rumo a uma exploração estética mais radical e quase alegórica (caso de Acioli), nem apela para um "realismo vale-tudo", como o da câmera insuportavelmente móvel do chileno Bize. Aqui há uma busca de um "naturalismo posado", que, acima de tudo, jogue para os atores o foco da nossa atenção. E, de fato, a realização permite que nos envolvamos com o drama dos personagens, e principalmente com suas auto-construções ao longo de uma noite cujas situações vão do irônico ao dramático, com diferentes tintas de realismo. Se não chega a revelar nenhuma observação extremamente relevante ou surpreendente sobre as relações humanas no mundo de hoje, pelo menos é um filme que consegue não atentar contra a inteligência do espectador com arroubos de romantismo deslocado ou de niilismo simplista.

A Etnografia da Amizade, de Ricardo Miranda (Brasil, 2007)
por Eduardo Valente
De uma certa maneira, A Etnografia da Amizade, documentário de Ricardo Miranda com (muito mais que sobre) Paulo Cesar Saraceni e sua obra cinematográfica, é uma continuação, um filme-filho (talvez fosse mais adequado irmão mais novo) de Banda de Ipanema, dirigido por Saraceni em 2002. Isso porque Miranda continua aqui o elogio ao conceito mais vivo, mais pulsante da idéia da amizade, de uma existência pautada pela construção dos laços de relação e da felicidade possível nos encontros humanos. Saraceni pouco fala de seus filmes, e muito fala dos amigos: conta histórias, relembra como conheceu, fala dos principais colaboradores e parceiros. No meio tempo, cenas dos filmes entram como que para complementar, mais do que ilustrar, mostrando o que esses homens (sim, porque as mulheres aparecem apenas nas cenas dos filmes e seus makings of, mas não no discurso) fizeram enquanto construíam aquelas amizades. O filme tem uma estrutura propositalmente anti-cronológica, anti-organizacional, que funciona mesmo como um fluxo de memória (e no sentido mesmo da memória, apresenta imagens preciosas dos bastidores das filmagens). É um filme de olhos embargados, um tanto melancólico por retratar seu protagonista já na idade onde vários amigos ficaram pelo caminho – mas nunca pessimista ou simplesmente nostálgico porque parece acreditar no “milagre”, e de que, algum dia, estes amigos se encontrarão de novo. Já se encontraram, de fato, na tela.

Garrafas Vazias (Vratné Lahve),
de Jan Svérak (República Tcheca, 2007)
por Eduardo Valente
Para que serve o cinema, em especial o de ficção? Claro que trata-se de uma pergunta retórica, que permite muitas respostas distintas. No entanto, se acreditamos na que parece ser proposta por este novo filme de Jan Svérak, o cinema serve para pouco mais do que nos remeter a uma realidade que vivenciamos fora dele, sem que a captação desta idéia de realidade por uma determinada expressão artística, composta por variados elementos distintivos de linguagem, signifique em si nenhum gesto relevante. Pois é disso que se trata Garrafas Vazias: sua única relação buscada com o espectador é a do auto-reconhecimento ("poxa, eu conheço gente assim", e/ou "poxa, eu vivi algo assim"). No único momento em que intervém em seu naturalismo quase televisivo (as sequências dos sonhos do protagonista), o faz com fins ainda mais naturalistas: nos permitir perscrutar a mente e os desejos deste, para que não fique um só milímetro de espaço que nos permita interpretá-lo com liberdade. Mais do que um cinema francamente conservador (a ver pelo final, particularmente mal filmado e decupado na viagem de balão), trata-se de um cinema monótono e absolutamente desnecessário - afinal, poderia ser uma crônica de jornal, poderia ser uma história de mesa de bar. Garrafas Vazias prescinde absolutamente do cinema como tal.

La León (idem), de Santiago Otheguy
(Argentina/França, 2007)
por Eduardo Valente
Na medida em que começa com pequenos barcos e canoas que correm por rios argentinos, em lentos travelings laterais e frontais, La León já nos remete a Los Muertos, o filme que projetou há três anos o também argentino Lisandro Alonso. E, de fato, apesar da escolha aqui de uma fotografia cujos tons de cinza nos fazem pensar mais nos filmes do húngaro Béla Tarr, a aproximação faz sentido: assim como no filme de Alonso, em La León o que importa é mergulhar o espectador num ambient cujas regras de sobrevivência no dia a dia ele desconheça. Só que aqui, ao invés de acompanharmos um só personagem, como era o caso com o Argentino Vargas de Los Muertos, Otheguy tenta montar um pequeno filme-tableau de um grupo de personagens envolvidos com situações ao mesmo tempo banais e limítrofes numa região pouco conhecida, na Bacia do Paraná (e aliás um dos problemas de recepção do filme é que ele explica pouco sobre a situação sócio-política local - o que nem seria sua obrigação como filme de ficção, mas que nem por isso deixa de ser algo que sentimos que nos falta para compreender o todo do que se passa). Além da opção pelo PB, há mais diferenças marcantes quanto ao filme de Alonso, como a opção pelo uso de atores profissionais como Jorge Román (o protagonista de El Bonaerense) e Daniel Valenzuela (de Mundo Grua e O Pântano, entre outros) - no entanto, curiosamente nenhum dos dois atinge o carisma na tela que o não-ator Argentino Vargas tinha. E é um pouco este o principal problema de La León: sem um foco real de empatia na tela, a impressão para o espectador é mais a de acompanhar um experimento estético, eventualmente até bem sucedido, do que de mergulhar de fato num outro tempo/tradição como parece ser o desejo do filme.

Meu Irmão é Filho Único (Mio Fratelo è Figlio Unico),
de Daniele Luchetti (Itália, 2007)
por Eduardo Valente
Estaria Meu Irmão é Filho Único nos dizendo que fascismo e comunismo são (melhor seria dizer eram, já que o filme se localiza nos anos 60) pouco mais do que bandeiras intercambiáveis, ideologias assim formatadas e aceitas tão somente por jovens desapegados precisando de algum grupo a que pertencer? Como dizíamos outro dia sobre Tropa de Elite, de novo é questão de não se confundir narração do filme com narração do personagem: pois, tal e qual o filme de José Padilha, este filme de Daniele Luchetti é narrado desde a primeira cena em primeiríssima pessoa por um personagem que, logo entendemos, incorpora e vive o fascismo e o comunismo exatamente como acima descrevemos. No entanto, Luchetti não faz essa a sua visão, uma vez que, para um dos personagens que leva a sério a luta comunista, as conseqüências se mostrarão bem mais sérias do que ganhar ou perder essa ou aquela menina – apenas, neste filme, este personagem é um coadjuvante. Trata-se, portanto, da opção narrativa de se irmanar a um personagem que é, por natureza, um anti-herói, e que vive na contramão do seu tempo. Luchetti faz isso com especial felicidade enquanto trata das pequenas situações da vida deste personagem (o caso com a mulher do seu mentor, a paixão pela namorada do irmão, as brigas com este mesmo irmão e a mãe), e com bem menos sucesso quando amplia o escopo e adquire um certo tom épico da “vida na Itália”. Acima de tudo, faz um filme que anda muito rápido (a notar o prólogo entre os seminaristas), mas que consegue fazê-lo com considerável graciosidade.

Portugal S.A., de Ruy Guerra (Portugal, 2004)
por Eduardo Valente
A sequência que abre Portugal S.A. deixa as portas abertas para um belo filme: no dia do seu casamento, o assessor de uma grande corporação vive cercado de negociatas e cochichos entre membros do Governo, seu patrão, jornalistas. Uma mistura completa da esfera pessoal com a esfera institucional em um jogo alto (e baixo) dos interesses financeiros e econômicos. No entanto, no desenvolvimento da ação, Ruy Guerra faz a opção pela linha menos interessante a explorar: ao invés de apenas filmar os entrechos do poder frontalmente, no que poderia resultar um filme fascinante, ele envereda pelo caminho novelesco, através de um roteiro que mistura jogos de poder, sexo e drogas da maneira mais banal possível (e, em algumas sequências, francamente constrangedora – especialmente as que se referem à personagem de Rosa, numa interpretação muito fraca de Ana Bustorff; mas também no padre manipulador que lê O Príncipe de Maquiavel ao longo do filme). Na medida em que envereda por uma psicologia rasa para explicar seus personagens (a relação do protagonista com a mãe, principalmente), o filme perde a força que há aqui e ali em algumas sugestões (o desejo de vingança do chefão corporativo contra a Revolução de 74 em Portugal, por exemplo, ou seu exílio desejado no Brasil), e fica no nível epitelial da visão do poder – algo que já estava nas fotos still de A Queda, mas que lá se justificava por ser um filme dos operários, onde aquilo é apenas o contraponto. Aqui, quando assume o “centro do palco”, o resultado é bem mais frágil.

Um Verão para Toda a Vida (December Boys),
de Rod Hardy (Austrália, 2007)
por Cléber Eduardo
Nem é preciso pesquisar a filmografia do australiano Rod Hardy para desconfiar de sua alfabetização dramática e visual na TV. Antes de estrear em longa-metragem com December Boys, cujo maior apelo de marketing é a presença (sem bruxarias) do inglês Daniel Radcliffe, o Harry Potter, Hardy dirigiu um amontoado de programas e séries. Pois seu currículo está na tela. Do primeiro ao último plano, sem exceção, parece haver um engano – não apenas da realização, mas principalmente dos programadores do Festival do Rio. Por que um filme como esse passaria nessa programação? Sobre o que informa, se a idéia é amostragem, sobre o cinema contemporâneo? Não estaria melhor abrigado na grade do Telecine Light? Não foi feito com esse objetivo? Pois parece. Para mostrar o verão inesquecível de quatro garotos órfãos no litoral australiano, lança-se mão do narrador memorialístico que, com voz de terceira idade, reconstrói as experiências de infância antes do reencontro com os amigos no mesmo lugar nos momentos finais. Um deles passa esse verão abrindo frentes no conhecimento prático do sexo. Os demais empenham-se em serem adotados por um casal. Molecagens de um lado. Beijinhos de outro. Pequenos riscos, eventualmente, no contato com a natureza. E uma aparição de Nossa Senhora. É sério. A Virgem aparece no fundo do mar.





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