Tetemunha 4,de Marcelo Grabowski
(Brasil, 2011)
por
Pedro Henrique Ferreira
À
abjeção
A influência que os últimos
filmes de Eduardo Coutinho exerceram no jovem cinema brasileiro
é deveras visível. Obras das mais diversas naturezas
dialogam diretamente - por vezes conscientemente, por vezes não
- com o horizonte representativo aberto em Jogo de Cena:
o esquema em palco teatral esvaziado, o tempo dilatado sobre os
rostos de atores (e não-atores) numa dialética entre
encenação e não-encenação,
pondo em tensão as representações e dando
ao filme um aspecto ensaístico de incompletude/esboço
– projeto que casará perfeitamente com aquele de
Enrique Diaz em Moscou.
Marcelo Grabowsky se utiliza desta mesma heurística em
relação à peça O Interrogatório,
de Eduardo Wotzik, para compor seu longa-metragem de estréia,
Testemunha 4, diagnosticando as tensões diegéticas
da representação teatral através de tomadas
de longa duração. Porém, o diretor extrai
desta heurística somente valores determinados que deslocam
todo o projeto para rumos específicos, refrescando os próprios
procedimentos cinematográficos e atingindo um resultado
distinto: o que está em jogo agora é a representação
impossível não do ideal celeste, mas justamente
daquilo que é abjeto, insuportável. A
peça de Wotzik, inspirada no texto original de Peter Weiss,
é uma reconstituição do julgamento de Frankfurt
entre 1963-1965 que resguarda os relatos oficiais daqueles que
sobreviveram aos campos de concentração nazistas.
A proposta era que a “vigília” se repetisse
por 24 horas seguidas, e é justamente sobre esta experiência
limítrofe de exaustão que o diretor irá se
debruçar, acompanhando com inúmeras câmeras
uma das personagens (a tal testemunha 4), interpretado pela mãe
do diretor, Carla Ribas, encenando o drama de ter de relembrar
as vivências mais assombrosas de sua suposta vida.
Testemunha
4 fará desta experiência uma espécie
de prisão voluntária, um exaustivo eterno retorno
à mesma situação inaugural, e ao mesmo relato
irrelatável que assola a atriz – vemos, repetidas
vezes, os mesmos momentos e diálogos da peça, a
mesma canção judáica sendo cantada, as mesmas
lágrimas – com suas pequenas diferenças, mas
sobretudo sua insistente inviolabilidade. Nós, espectadores,
estamos aprisionados junto a Carla Ribas e acompanhamos sua persistência
em vivenciar continuamente (até nos bastidores e intervalos)
o drama. E mesmo os poucos momentos de respiração
e paródia de si mesmo que o filme se permite – um
esbarrão com um “oficial” nazista fora de cena,
uma piada com um gatorade ou outros pequenos e graciosos
truques de montagem – não escapam ao tom de concomitante
sofrimento e cegueira, pois o trauma é pujante demais para
ser lembrado, encenado, vivido. Não sem deslumbre, a questão
é posta do princípio ao fim, do palco à praia
(que em vez de redentora, com seus sons de ondas graves, é
apenas mais um reduto desta impossibilidade de se esquecer), de
forma concisa, certeira, e sem ser comedida: por que é
que aquela atriz e todo aquele espetáculo se lançam
voluntariamente a esta dor?
Pela grandiosidade do tema e pela peculiar
forma como opta por abordá-lo, Testemunha 4 nos
lembra o célebre ensaio de Rivette sobre Kapò,
onde o que está em jogo é justamente a posição
necessariamente moral que um artista estabelece para com seu tópico.
Como diz o crítico, frente a um tema como os campos de
concentração, o realismo-naturalismo absoluto “é
aqui impossível; toda tentativa nessa direção
é necessariamente inacabada (logo imoral), toda tentativa
de reconstituição ou de maquiagem derrisória
e grotesca, toda aproximação tradicional do ‘espetáculo’
deriva do voyeurismo e da pornografia”. Frente à
descrição realista do drama nazista, o espectador
conclui que os atos foram certamente grotescos, horríveis,
porém não intoleráveis. E este realismo-naturalismo
é menos uma forma de confronto, e mais de apaziguamento:
“cada um se habitua sorrateiramente ao horror, isso entra
pouco a pouco nos modos, e logo fará parte da paisagem
mental do homem moderno; quem poderá, da próxima
vez, se espantar ou se indignar com aquilo que terá deixado
de ser chocante?”. Pois
bem: o filme de Grabowsky segue a risca a cartela de recomendações
de Rivette e trata magistralmente, pelo ritmo sufocante e pelo
enclausuramento que promove, o intolerável como intolerável,
o horror como horror, o abjeto como algo impossível de
ser encenado/revivenciado - pois é impossível uma
identificação plena entre o ator e aquele que sofreu,
entre o interrogatório encenado e o interrogatório
factício. Mas o que é então que, mais de
trinta anos depois de Rivette, Pontecorvo e Resnais, justifica
todo este percurso catártico para vivenciar em alguma medida
o que é abjeto e não pode ser vivenciado em plenitude?
O que justifica este eterno retorno que martela na mesma tecla
do quão intragável e insondável é
a experiência do holocausto, e ainda assim persiste em nos
mostrar esta insondabilidade?
A arte de encenação que o olhar passivo de Testemunha 4 encontra é uma que se lança a uma missão fadada à derrota desde o princípio, à jornada de purgação/purificação que aceita perder de partida para poder capturar o trauma neste gesto impossível de encená-lo. E esta seria a única forma de mantê-lo historicamente vivo e pulsante, pois o repugnável, justamente por ser repugnável, não pode ser esquecido ou tampouco purificado. É uma prisão da consciência que, tal qual a experiência daquelas figuras que vivenciaram o holocausto na pele (lembremos do momento em que Ribas desenha os números em seu braço), permanece viva. Adentrá-la e confrontar o fantasma que sempre a espreita é, tal qual nos indica o banho final na praia, filmado como um batismo assombrado e tenso, uma opção que não leva à regeneração, uma forma de martírio sem milagres.
Dezembro de 2011
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