Terras, de Maya Da-Rin (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente

Na fronteira

Se a questão de fundo que se coloca enquanto assistimos Terras é uma das mais antigas do cinema (o que é documentar?), na verdade ela se encontra encarnada num modelo de preocupações bem mais contemporâneo. Afinal, se o paradigma “coutiniano” de que tudo que o filme pode documentar é o encontro do seu realizador com o seu objeto parece, em vários sentidos, intransponível como verdade, o que ele não soluciona é o fato de que este encontro também pode ser documentado de inúmeras maneiras. É quase inacreditavelmente adequado para um filme que se debruça sobre uma zona de fronteiras geográficas que Terras escolha como seu método um meio-termo tornado quase indistinguível entre dois modelos, ambos podendo hoje ser chamados de clássicos com sentidos bem distintos.

O primeiro modelo, clássico por natureza, é o da reportagem, em que se vai a um lugar e se busca personagens e depoimentos que o sintetizem até certo ponto, para a necessária redução que é tentar dar conta de um espaço/realidade no formato de um filme de uma hora e meia de duração. O outro modelo tem se tornado cada vez mais clássico na medida em que se torna um padrão adquirido e repetido, muitas vezes sem maiores problematizações – falamos aqui da escola do documentário de matriz observacional que busca um mergulho no espaço através acima de tudo de uma mistura curiosa entre ocultação e exibição da instância da elocução fílmica. Ocultação porque essa instância intervém o mínimo possível na realidade em frente à sua lente, inclusive com poucas perguntas, etc; exibição porque na maneira de trabalhar esteticamente os espaços e personagens e de buscar sempre um tempo estendido, existe ali o desejo de chamar a atenção para o ato de se estar olhando para aquele universo de uma determinada maneira.

Terras transita entre estes dois modelos com grande inteligência e sutileza, parecendo afirmar justamente que não precisa se filiar a nenhum deles como modelo estanque. O faz da mesma maneira que transita entre asfalto e floresta (desde seu primeiro plano), ou que transita entre português e espanhol como línguas faladas na tela. Todas estas acabam sendo uma maneira a mais de chamar a atenção para a tese principal que o filme defende (não por acaso ela está presente no primeiro e no último depoimento ouvidos), a de que tem pouco sentido de fato a noção de fronteira entre nações, e a maneira como esta construção é impositiva por questões políticas e históricas, mas na verdade não é vivida como tal nos lugares onde deixa de ser abstração (linhas num mapa) e se torna real. Também não é nenhum acaso então que Terras realize quase todas as suas conversas em momentos de passagem: com pessoas dirigindo carros, barcos ou em meio a trilhas na floresta. Estas zonas de fronteira que o filme tenta habitar são espaços de constante trânsito, onde a idéia de fixar qualquer coisa parece distante. Até por isso Terras faz questão de incorporar toda a complexidade dos espaços onde se mete: boates de música eletrônica convivendo com a floresta densa, tudo lado a lado.

Habitar, aliás, talvez seja o termo mais feliz para definir a maneira como Terras tenta documentar seu universo. Maya Da-Rin trabalha junto com seu fotógrafo e desenhista de som para dar ao filme um sentido inegável de densidade a cada imagem/som, de maneira que sentimos uma materialidade extrema em cada uma delas. Aliás, trata-se de um documentário onde a forma final de exibição procurada (a cópia em 35mm – a partir de filmagem em HD – e o som 5.1 numa sala de cinema) são essenciais para uma verdadeira experiência do que é filmado. Sem negar em momento algum sua condição de estrangeira ao lugar que nos mostra, a cineasta consegue ainda assim nos fazer partilhar da presença física daquele espaço, daquelas pessoas. É pena só que opte por encerrar seu filme com uma desnecessária coda sobre diversos rostos sob o som de música emocionante, com fins um tanto redundantes para um filme que se pautou até ali por uma sutileza brutal. Nada naqueles rostos afinal nos dirá mais sobre a falta de sentidos das fronteiras impostas aos homens do que já não tenhamos apreendido, por exemplo, dos lindos planos aéreos onde floresta e nuvens desafiam constantemente esta noção. Mas é um deslize apenas, muito pequeno frente à grande força que emana da tela ao longo do filme.

Outubro de 2009

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