in loco - cobertura dos festivais
Terraferma, de Emanuele Crialese (Itália/França, 2011)
por
Fabian Cantieri
Terra
em movimento
Usemos uma má comparação como avanço
dos tempos: em Stromboli, de Roberto Rosselini,
uma mulher presa no campo de concentração durante
a Segunda Guerra conquista um refugiado. Ele a leva para sua terra
natal - uma ilha inóspita, cercada de uma população
que respira e conserva a tradição do lugar. Eles
vivem da pesca. Em Terraferma, os mais velhos se confrontam,
diante de um momento de transição, em uma outra
ilha italiana – seu sustento ainda vem da natureza, mas
os peixes vão aos poucos dando lugar à beleza paradisíaca,
cresce exponencialmente o turismo. Antonio fugia com Karin para
construir um lar e se estabelecer em sua terra natal. Karin, sem
conseguir se adequar ao seu entorno, permaneceu fugindo até
se defrontar grávida diante de um vulcão em erupção
– a ilha é o ponto final da personagem, ao menos
metafisicamente; em Terraferma, a ilha perto da Sicília
é ponto de passagem, lugar onde transitam os abastados
(turistas) e os refugiados (imigrantes).
Enquanto
uma ilha é isolada do mundo, outra é aberta ao mundo
e faz dessa abertura seu principal meio de sobrevivência.
O avanço dos tempos se faz no deslocamento entre as terras
cercadas de mar – quando Sara (Timnit T.) aponta no mapa
todo seu percurso, de onde veio e onde quer chegar, pergunta também
onde ela está. Giulietta (Donatella Finocchiaro) avisa
que aquele lugar era tão pequeno que não estava
ali representado no globo. Não estava ali, mas era destino
de muita gente. Destino temporário, mas ainda assim, um
fim. E é esse avanço que os tempos indicam
– Stromboli era um ponto a se estabelecer, um lugar para
se dedicar à construção do lar (e com lar,
digo todo o entorno cultural que isso remete) ou, até mesmo
para os que não se adequam a essa lógica como Karin,
ter com Deus seu instante de revelação. Hoje não
existe mais terra firme e se as raízes não são
fortes o suficientes. Morre o homem e vende-se o barco (não
à toa, a metáfora antiga da viagem) - o fim é
estar em movimento.
Mas é no instante seguinte de o filme apresentar tão
vigoroso insight que ele resolve andar a caminho do porto
seguro. Emanuele Crialese cria um filme-painel sobre a imigração.
Um painel que transcorre como vagões-fotogramas (a cena
do filho imigrante nascendo é o melhor exemplo), num movimento
ininterrupto até apontar um trilho como “questão
a se pensar”. Todos os elementos do novo porto estão
lá – discussão pertinente ao novo mundo globalizado;
a família unida lutando contra a instituição
da lei desigual (mas nunca por seu maniqueísmo e sim por
sua complexidade de aplicação); romance de verão
e até as sugestões narrativas para se cair no clichê
até chegar ao corte de último segundo que o evita,
lembrando a estratégia bem enfática e recorrente
de À Deriva, de Heitor Dhalia.
A
história real de uma imigrante que saiu da África
e chegou à Itália num barco com apenas cinco pessoas,
entre dezenas de mortos pela viagem é, sem dúvida,
comovente. A estratégia de deslocar essa personagem do
eixo narrativo para inseri-la à parte como um bisturi no
corpus fílmico poderia ser bem interessante,
mas logo se percebe que o drama de Filippo (Filippo Pucillo) ironicamente
obscurece grandes impactos da saga de Sara. Assim, de novo, temos
uma perspectiva interessante: o diretor assume seu lugar com o
ponto de vista daquele que vê a imigração
acontecendo e não do imigrante - admite não poder
dar conta do que é passar por aquilo e revolve a questão
como Filippo lida com sua situação. Ele só
age pelo impulso dado por uma estrangeira que, de passagem, não
se conforma com o abismo entre sua condição de convidada
de luxo e daqueles penetras que tentam invadir o barco na cena
propulsora do filme. Com o abandono de sua potencial garota, por
desacordo de atitudes (ela queria informar à polícia),
ao fim, Filippo acolhe a atitude mais “humana” a ser
tomada, independente da lei, e proporciona a Sara a chance de
seguir seu rumo. Para Crialese, a imigração é
complexa, demasiada desumana para se obter uma resposta comum.
Num novo mundo pós colonial onde estar em movimento é
o essencial, ancorar em terra firme é o martírio
de milhões.
Outubro de 2011
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