Terra Deu, Terra Come,
de Rodrigo Siqueira (Brasil,
2010) por Fábio Andrade
A
mentira da verdade Terra Deu, Terra Come parte
de uma premissa que, embora nada nova, está na origem de diversos filmes brasileiros
recentes: a verdade pode ser revelada com uma mentira. Essa frase taxativa por
vezes é tomada de forma literal (pensemos em Filmefobia, de Kiko Goifman,
ou no curta cearense Vista-Mar, documentário que só é possível por os diretores
mentirem em tela para as suas personagens), mas na maior parte das vezes ela é
suavizada por uma outra dualidade: alcançar a realidade documental por meio de
uma ficção (pensemos na obra de Robert Flaherty, Jean Rouch ou, mais recentemente,
em Jogo de Cena e Moscou, de Eduardo Coutinho). Esse princípio,
que movimenta o filme de estréia de Rodrigo Siqueira, é o mesmo de Petit a
Petit ou O Homem de Aran: buscar, pela reencenação, encontrar algo
de autêntico (intenção exageradamente explícita nas cartelas finais). Os
problemas de Terra Deu, Terra Come surgem quando se confronta essa idéia
– a rigor, legítima e que já rendeu obras extraordinárias – à maneira que ela
toma corpo dentro do filme. Pois embora haja, no discurso do filme, uma valorização
de uma “mentira” original, ela nos é revelada somente ao final da projeção, em
construção bastante comum na ficção, onde a verdade é encoberta por um spoiler
reconfigurador (O Sexto Sentido, Amnésia, Os Outros e,
mais recentemente, Ilha do Medo). Tudo aquilo que vimos nos é reapresentado
(neste caso, literalmente, com a repetição modificada de um plano) como uma encenação
ao final, o que em tese conduziria o espectador a uma reflexão de o quanto a autenticidade
de uma cena está conectada à sua veracidade, ou tão somente a uma impressão de
realidade. Mas se há uma verdade dentro da mentira, como parece crer o diretor,
por que o impulso de acobertá-la? Se há mesmo uma crença na mentira como um impulso
realizador, como é possível honrá-la (ou mesmo usá-la) que não apresentando-a
como tal?
O que parece uma simples decisão estrutural se torna crucial,
uma vez que a estrutura é absolutamente vital à constituição da proposta. É justamente
na ordem e nas modulações da apresentação dos eventos que Terra Deu, Terra
Come precisa se sustentar, e a escolha infeliz pelo atalho da surpresa efêmera
acaba por sacrificar o que o filme tem de realmente particular. Pois essa opção
pelo farsesco conta com a ingenuidade do espectador diante da situação armada,
uma vez que sua sustentação depende intimamente da crença individual em uma encenação
que não faz o suficiente para preservá-la. Se o espectador pega o filme em sua
mentira logo nos primeiros minutos, ele não é mais possível (ao menos não como
foi desenhado). Perde-se,
com isso, o precioso clima das sequências mascaradas – muitas vezes desperdiçadas
em montagens paralelas bastante descabidas – além de uma frontalidade na relação
entre personagem e diretor que, em época em que toda e qualquer pessoa parece
já ter aprendido a ser personagem profissional, é de rara organicidade. São momentos
em que a projeção ganha força, talvez por eles dependerem mais da realização interna
das cenas do que da sua posição na montagem. Ali, Rodrigo Siqueira consegue construir
um universo de alguma atração – embora o poder de choque mascarado esteja bem
mais íntegro em um filme como Nego Fugido, de Cláudio Marques e Marília
Hughes, e a autenticidade das personagens seja apresentada com maior rigor em
A Falta Que Me Faz, de Marília Rocha. O problema
da mentira, em Terra Deu, Terra Come, é menos ético do que formal. Mais
do que escorar a fruição em um engano, a revelação do método como um plot twist
final contradiz a própria lógica norteadora da obra. Pois o encantamento diante
de filmes como Moscou ou A Pirâmide Humana só é possível porque
a mentira (ou, como prefere Coutinho, “a regra do jogo”) é revelada de antemão.
Sabemos da falsidade (ou melhor, do estatuto) do dispositivo, e ainda assim acreditamos
piamente na veracidade daquilo que ele produz (pensemos, aqui, na perseguição
na floresta de A Vila, de M. Night Shyamalan). Como diz uma das personagens
de Edifício Master, isso só é possível enquanto ato de “um mentiroso verdadeiro”,
reavivando o paradoxo hegeliano onde não há possibilidade de enigma maior
do que a absoluta transparência. Em Terra Deu, Terra Come, a inversão de
estrutura anula qualquer possibilidade de efeito: não há verdade possível se a
mentira precisa ser travestida de verdade. O que há “de mentira” no filme (e que
é sabido como tal pelas personagens) é acobertado do espectador com uma farsa
de montagem, externa à encenação. A partir dela, não há verdade possível. Resta
apenas um golpe à Poirot, onde a solução do caso se encontra em um lugar inacessível
aos nossos olhos, e o jogo de estrutura se resume a produzir, para o espectador,
algum torpor em seu próprio vai-e-vem. Abril
de 2010
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