Entre o Amor e a Paixão (Take
this Waltz),
de Sarah Polley (Canadá/Espanha/Japão, 2011)
por Fábio Andrade
A
era da conciliação
Lá se vão oito anos que Closer,
de Mike Nichols, definiu – de maneira ao mesmo tempo precisa
e nefasta – o regime de relacionamentos amorosos deste princípio
de século, com seus casais que muito falavam e pouco faziam.
Em Closer, essa verborragia insuportável ganhava
grifo psicanalista na manifestação verbal do desejo
sexual – desejo, inclusive, não tão distante
assim do que marcava outros filmes mais ou menos contemporâneos,
como A Professora de Piano, de Michael Haneke. O século
XXI se anunciava como um novo regime sensível, mas naquele
momento ele ainda carregava nas costas o esqueleto de um divã
do século XIX.
Ao mesmo tempo, se as personagens e o filme de Mike Nichols torravam
a paciência, ao menos toda aquela torrente de palavras ainda
servia para esconder (e, com isso, manifestar) alguma coisa –
uma ponta de desejo de vida que, mesmo a milênios de distância
de um Trouble Every Day, pulsava, ainda que timidamente.
De lá pra cá, os telefones celulares se esparramaram
e o contato parece ter sido reduzido a uma epidemia da palavra,
exclusivamente. Em um filme como Apenas o Fim, do carioca
Matheus Souza, tínhamos a cristalização do
relacionamento contemporâneo como um duelo verbal, um jogo
de controle, de submissão do outro aos sofismas da cultura
pop. Pegar na mão é coisa do passado; o presente
é feito à distância, com o maior número
possível de obstáculos que impeçam um corpo
de encostar no outro. A fala incessante das personagens de Closer
parecia ainda mais insuportável em sua versão higienizada
pelo pilotis da PUC, quatro anos depois. Mas os tempos mudam cada
vez mais rápido, e Entre o Amor e a Paixão,
novo filme de Sarah Polley, já nasce em um contexto que,
mesmo decorrente, é bastante diferente daquele ano "distante"
de 2008. Os celulares deixaram de servir à fala, trazendo
para a ponta dos dedos a sensibilidade generalizada, compartilhada
com igual entusiasmo por pessoas completamente diferentes, reunidas
na indistinção de uma timeline comum do Facebook.
Se
Closer e Apenas o Fim traziam ainda certo desejo
de submissão, de dominação dentro de um relacionamento
a dois (e o desejo de poder é, ao menos, ainda um desejo),
as personagens de Entre o Amor e Paixão vivem
bem, de maneira equilibrada e saudável. Sarah Polley tem
clara consciência de que a dramaturgia tradicional se alimenta
de crise, pois só a crise permite o turning point
que o espectador cotidiano espera ver quando se tranca em um cinema...
mas a afirmação mais contundente deste seu novo
filme é de que, entre os jovens brancos e de classe média
alta nesta segunda década de século, mesmo as crises
são afetuosas, generosas, equilibradas. Vivemos o estado
mais agudo e avançado de uma síndrome da conciliação.
É neste “redemoinho” que conhecemos Margot,
personagem “adorável” interpretada por Michelle
Williams, com quem estaremos amarrados até o final do filme
(e pararei por aqui com as aspas, sem apagá-las, como testemunho
de que sou também filho inevitável deste mesmo momento
histórico, tão debitário da sensibilidade
de Instagram que colore cada imagem do filme, com baladas folk
em tom maior quanto as pessoas que tanto me aborrecem lá,
na tela do cinema). Como produto exemplar de seu tempo, podemos
acusar Entre o Amor e a Paixão de tudo, menos
de falta de consciência de seus gestos.
Desde o começo, tudo é dado com uma clareza irrevogável:
após um breve prólogo (a ser retomado, por texto
e espectadores, mais à frente), acompanhamos Margot com
seu caderninho de notas, entre turistas com câmeras em punho,
em um breve tour por uma espécie de parque temático
da idade média. Ela vê a reencenação
de uma cena de casamento (pista número 1) e depois é
intimada a participar de um ritual de humilhação
pública (pista número 2), chicoteando, sem asco
ou crueldade, um ator que se passa por public offender.
Com caderno em mãos, Margot talvez só se destaque
dos turistas ao seu redor pelo tom vintage que papel
e caneta trazem em uma era tão midiatizada... ainda assim,
a relação é a mesma: viver as experiências
não mais pela experiência, mas sim pela possibilidade
de relatá-las em seguida. E, se possível, ganhar
um dinheiro com isso. Margot é uma turista profissional,
mas ainda assim uma turista. A adequação completa
à sensibilidade generalizada de sua época lhe garante
uma vaga na assessoria de imprensa na empresa que gere os parques
do Canadá, e ali, naquela mistura desavergonhada e inevitável
entre trabalho e lazer, entre encenação e vida,
entre o colorido das casas de Hopper que povoam o fundo de tela
em todo o filme e o estampadinho miúdo dos aventais de
cozinha, Margot se apaixona por um falastrão exibido que
debocha – de maneira cordial e nada agressiva... efetivamente
como um flerte – de sua participação naquela
cena.
A
clareza é acachapante. Pois as personagens de Entre
o Amor e a Paixão se distinguem justamente por esta
nova volta que dão nas personagens de Closer ou
Apenas o Fim: não se trata mais de falar em vez
de fazer, mas sim de falar sobre o fazer. Margot buscará
esse affair fora de seu casamento, mas o limite do adultério
é o da crença em sua própria ficção.
Neste sentido, uma das cenas mais emblemáticas do filme
é quase uma recriação do famoso falso orgasmo
de Meg Ryan em Harry & Sally, de Rob Reiner... mas,
desta vez, o prazer vem não da simulação
do orgasmo, mas de um verdadeiro discurso sobre o método,
um relato de como seria o contato físico entre os dois
se ele pudesse acontecer. É o triunfo cotidiano da metalinguagem,
só que, aqui, ela – que recentemente tem rendido
filmes tão fortes quanto Pânico 4, de Wes
Craven, e Para Roma com Amor, de Woody Allen
– esvazia o poder da vida como a permanente encenação
prometida pelos punks, na Nova York da segunda metade da década
de 1970, expondo as armações de sua própria
ficção. Se no filme de Woody Allen, ou no Cosmópolis,
de David Cronenberg, a metalinguagem ganha uma eloquência
straubiana (logo, deixa de ser meta e se torna linguagem)
–, quando diluída na vida de maneira tão onipresente
e sincera quanto em Entre o Amor e a Paixão, o
efeito é reverso: expor a armação da vida
como auto-ficção é impossibilitá-la
por completo. Margot não tem medo de avião; tem
medo de ter medo de perder o vôo.
Os jovens, enfim, precisam morrer de alguma coisa. Na ausência
da crença, da política, da ideologia – palavras
que hoje trazem um perfume demodé – resta
cometer suicídio em ficção, anulando a própria
vida na consciência de um papel. Se manifestações
desta mesma malaise podem ser percebidas em filmes brasileiros
recentes como A Alegria, de Felipe Bragança e
Marina Meliande; Era Uma Vez Eu, Verônica, de Marcelo
Gomes; e Elena, de Petra Costa, é porque
o regime sensível dominante no mundo hoje é mesmo
o diagnosticado por Giorgio Agamben em seu Profanações:
vivemos a impossibilidade de profanar. Nesse sentido, é
sintomático que Entre o Amor e a Paixão tenha
uma demorada cena de vestiário, em que várias atrizes
de todas as idades e tipos físicos imagináveis aparecem
em nu frontal, e que a única coisa que gere reação
na cena seja a insistência da montagem em ficar tanto tempo
por ali. Pois se o século XX foi a era dos extremos, o
XXI se encaminha como a da conciliação cotidiana
desses extremos. E quando mesmo o mais doce desenho infantil é
violado por dentro até jorrar um chafariz de sangue, o
que resta – o filme parece nos dizer – é somente
a possibilidade do comentário, de se fazer uma festa para
comemorar a sobriedade de uma parente regada a litros de álcool,
como promessa de uma tirada cool e soberana no discurso
de agradecimento da alcoólatra. O que resta é o
cinismo.
Entre
o Amor e a Paixão ainda traz uma nova dobra nesse
cinismo. Pois se todo o discurso sobre o método leva Margot
a sair de casa e do casamento – uma pessoa pode até
adorar frango, mas não comerá frango todo dia, ela
diz – e vá viver seu novo amor, há duas cenas
nesse esperado turning point que são emblemáticas
da atitude do filme diante do porvir. A primeira é, na
verdade, uma elipse, o término de casamento nunca filmado,
relegado a uma pequena coleção de reações
de seu já ex-marido (Seth Rogen, em péssimo momento),
como um vídeo de casting. A segunda é o
grande momento dó de peito do filme, em que todo o relacionamento
de fato com Daniel (Luke Kirby) se passa em um falso plano-sequência
circular – que rima com uma cena em um parque de diversões,
em outro momento do filme – em que uma sucessão de
cenas de sexo (a dois, no chão; a dois, no colchão;
a três, com outra mulher; a três, com outro homem,
e por aí vai) mina em poucos segundos todas as fagulhas
daquele primeiro interesse do casal, até terminar em uma
cena tão cotidiana quanto qualquer uma vivida por Margot
com o ex-marido. A montagem em truque parece transformar o filme
em uma animação - mas não custa lembrar que,
poucos anos antes, uma sequência muito parecida, e das mais
deslumbrantes do cinema recente, se dava justamente em um longa
animado: a vida do casal que se passa, toda, em poucos minutos,
no inesquecível prólogo de Up, de Pete
Docter. O procedimento é o mesmo, mas o sentimento é
absolutamente inverso: os corpos se parecem bonecos, e os bonecos
se parecem corpos.
O que sobra, em um filme circular, é voltar para o começo.
E aí percebemos que aquela silhueta desfocada atrás
da fornada de cupcakes que abria o filme não era de Seth
Rogen, mas provavelmente de Luke Kirby. Ou, que seja, de um outro
homem qualquer. Não faz diferença. O que resta é
rememorar o próprio trajeto, lamentar pela maneira como
tudo poderia ter sido e nunca foi, e escrever sobre isso em um
caderno como forma de ficcionalizar o ocorrido, transformando
a vida a dois em um Paranoid Park às avessas.
E toda a trajetória, todos os caminhos, as cores, os cheiros,
os temperos, levam inevitavelmente de volta à mesma cozinha.
Margot terá de comer frango pelo resto de sua vida.
Dezembro de 2012
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