in loco - cobertura dos festivais
Take Shelter, de Jeff Nichols (Estados Unidos, 2011)
por
Pedro Henrique Ferreira
Covardia
heróica
É possível
que toda trama apocalíptica seja por excelência uma
narrativa teleológica, elaborada na iminência de
um término inevitável contra o qual o homem irá
se degladiar. Em outras mãos, é plausível
que Take Shelter viesse a se tornar uma fábula
sobre visões delirantes de um herói-profético,
escorraçado ou ridicularizado pelo mundo, marginal ou quixotesco,
que leva ao cabo suas convicções. O ponto de interrogação
talvez girasse em torno de o quão real são estas
profecias, o quanto a loucura é justificada justamente
pelo elemento final que acontece ou não, podendo frustrar
(ou não) a expectativa daquele que irá se consagrar,
ou se descobrir um louco. Ora, é exatamente o contrário
disto que Jeff Nichols, armando-se da trama tradicional, irá
fazer em seu segundo longa-metragem.
Há dois dados que afastam a figura central, o bronco Curtis
(Michael Shannon), desta espécie de profeta trágico:
em primeiro lugar, ele duvida de sua própria sanidade quando
começa a ter os delírios sobre o dilúvio
futuro. Assim, vai se examinando aos poucos (lê um livro
sobre a loucura, freqüenta psicanalistas, toma remédios)
sem jamais justificar a loucura em um porvir. Nem o personagem,
e tampouco o diretor, tratam as visões como um dom sagrado.
Muito pelo contrário, elas são enquadradas como
produto de um temor inexorável que vem de fora, isto é,
o pavor de um mundo violento e caótico que poderia arruinar
a perfeição de sua vida familiar. Não é
à toa que os sonhos girem em torno de alguns dos grandes
traumas da civilização de nossos tempos. Ainda no
princípio do filme, o companheiro de trabalho Dewart (Shea
Whigham) lhe faz “o maior elogio que um homem pode fazer”,
o de que ele tem uma vida boa. O que justifica o salto desta vida
pacata e perfeita, arruinando-a, não são epifanias
proféticas. É um medo absoluto, e aparentemente
injustificável, de que esta vida seja desfeita.
Em segundo lugar, o herói (ou covarde) do filme não
profere suas epifanias em cima de um palanque, berrando o apocalipse.
Muito ao contrário, ele o guarda secretamente, e com uma
praticidade ferrenha, “faz o que tem que ser feito”.
Para realizar este gesto transgressor que o filme desenha como
um projeto inaceitável e símbolo maior da paranóia,
isto é, para construir um abrigo subterrâneo para
proteger sua família do temporal porvir, ele está
disposto a pôr a perder o que preza. O que o move não
é uma convicção inabalável, mas uma
necessidade tremenda, física, de se esconder desta violência.
Consequentemente, a teleologia não é um projeto,
mas um dado necessário e irremovível.
Take
Shelter caminha minuciosamente por estas veredas, diagnosticando
mais profundamente o estado de espírito de seu personagem.
Os delírios nunca viram objetos de histrionismos ou traços
de estilo, mas somente um motor para a trama. Ser esquizofrênico
ou profético, igualmente, deixa de ser o ponto essencial
quando, em realidade, o que importa é se o paranóico
irá conseguir lidar com sua família. Contrapondo
o dentro e o fora por relações de claro-escuro,
a trama tratará este embate com a objetividade mais norte-americana
possível, sem explicações psicologizantes
(todos os psiquiatras do filme são um tanto quanto patetas).
E ao apocalipse, momento ápice da narrativa teleológica,
é reservado um lugar secundário: o vemos apenas
no reflexo de um espelho. Pois a certa altura, não importa
mais que ele seja real ou fictício, mas somente que sua
esposa Samantha (Jéssica Chastain) e sua filha Hannah (Tova
Stewart) também o vejam. A reviravolta final que Take
Shelter executa se torna menos importante do que a impressionante
força do drama deste covarde obstinado e heróico.
Outubro de 2011
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