in loco - especial seminário "panorama do cinema mundial"
Tailândia: cinema de mímese
por Cineclube Equipe*,
colaboração especial para a Cinética


Na entrevista realizada por Felipe Bragança em  dezembro de 2006, o cineasta tailandês Apichatpong Weerasethakul diz que “a Tailândia tem uma longa e vasta cultura baseada no sentido da imitação, da mimese e da simulação – esse aspecto nos interessa [ao diretor e sua equipe]. (...) Sobre outros realizadores tailandeses e com o público de filmes tailandeses por aqui: eu nunca tenho certeza exatamente se eu estou entendendo o que eles estão fazendo e prefiro não falar muito... Às vezes, me parece que os filmes tailandeses são muito abstratos, fora da vida, dissociados das coisas a seu redor. Uma tradição de escapismo em que a realidade é ignorada como objeto de interesse.”

Observando o cinema tailandês contemporâneo, podemos notar com certa clareza esta tendência mimética sugerida por Apichatpong – tanto no caráter estético das produções quanto na sua circulação. Segundo o Atlas du Cinéma 2007, publicação da Cahiers du Cinéma, a Tailândia, cuja população atual é de 65 milhões de habitantes, possui apenas 645 salas. Dentre os filmes lançados em 2006, 44 foram tailandeses e, juntos, acumularam 36,2% do público de cinema daquele ano. Além de uma ocupação considerável do mercado, a produção nacional também responde por três dos cinco filmes mais vistos em 2006: a animação infantil Khan Kluay, a comédia metalingüística Nong Teng Nakleng-pukaotong e a comédia de boxe Saep sanit sid saai naa. Em uma breve comparação, no mesmo ano o Brasil, que possui 2.020 salas e 183 milhões de habitantes, lançou 73 produções nacionais, que atingiram apenas 11% do total de público, tendo apenas uma dessas produções entre os cinco filmes mais vistos do ano: Se eu fosse você, da Globo Filmes.

Convém regressar no tempo para entender como chegamos até aqui. A história do cinema na Tailândia não começou diferente da maioria dos outros países: primeira exibição pública no final do século XIX, primeiros filmes nacionais produzidos na década de 1920, filmes sonoros a partir dos anos 30 etc. No entanto, foi somente durante as décadas de 1960 e 70 que o star system tailandês se desenvolveu, a partir do sucesso da dupla popular formada por Mitr Chaibancha e Petchara Chaowaraj, que fizeram dezenas de filmes juntos. Chaibancha chegou ao número de 250 filmes em um período de 15 anos. Marco na cinematografia tailandesa, nos anos 1970, o movimento político estudantil se envolveu com o cinema, gerando uma onda de filmes que tratavam de questões sociais, em sintonia com os movimentos contraculturais do resto do mundo, fazendo uso da cultura popular como principal forma de expressão. Dentre os cineastas deste “cinema de crítica social” (como ficou conhecido no país) está o Príncipe Chatreechalerm Yukol, responsável por diversos dos grandes sucessos de bilheteria local das últimas três décadas, como o drama familiar Sia Dai (e sua seqüência) e o épico histórico Suriyothai (distribuído no Ocidente por Francis Ford Coppola).

A chegada do vídeo em 1985 conduziu a um intenso crescimento de produções adolescentes e comédias românticas populares, relevadas a produto cultural de baixo nível pela parcela urbana da população. Em 1993, forças políticas levaram o governo a baixar as taxas de importação de filmes, inundando o mercado interno com produções norte-americanas e o sistema exibidor com salas multiplex, o que contribuiu para a desvalorização do cinema nacional e diminuição substantiva de seu público. De acordo com os artigos de Anchalee Chaiworaporn (responsável pelo site bilíngüe ThaiCinema.org e autora do artigo dedicado ao cinema tailandês no Atlas du Cinèma 2007), as “produções pobres, performances exageradas dos atores e roteiros nonsense” eram apreciados apenas pelas platéias rurais e, como forma de evitar fracassos de bilheteria, os filmes eram invariavelmente estruturados de acordo com os gêneros clássicos, como comédia, terror, drama e ação”.

O novo cinema tailandês

Em 1997, o mundo assistiu à Crise Financeira Asiática, originada na Tailândia pela inflação da moeda local (baht) e por dívidas externas que levaram o país a uma quase falência. A crise se espalhou por todo o sudeste da Ásia e para o Japão, afetando fortemente a Indonésia e a Coréia do Sul, e o FMI investiu cerca de quarenta bilhões de dólares nestes e em outros países da região. A revitalização da economia tailandesa se deu no mesmo ano de 1997 e o cinema tailandês teve importante papel neste processo. Acreditando que os filmes nacionais careciam de certo “apelo artístico”, alguns diretores de comerciais televisivos, como Pen-Ek Ratanaruang, Nonzee Nimibutr, Oxide Pang e Wisit Sasanatieng, buscaram a ousadia estética como forma de interessar investidores, reconquistar o público nacional – tanto o rural quanto o urbano – e atrair atenção internacional, por meio de exportações e circulação nos principais festivais de cinema de arte da Europa, como Cannes, Berlim e Veneza. Estes diretores marcam o início deste período de renascimento da produção cinematográfica interna na última década, que recebeu o nome de “Novo Cinema Tailandês”.

O cinema tailandês contemporâneo pode ser entendido a partir de três “chaves”, baseadas na imitação e ordenadas sobre um eixo traçado entre dois pólos produtivos: o cinema de Hollywood e o cinema de arte europeu. São eles o cinema de gênero, para o qual Anchalee Chaiworaporn chama atenção em seu artigo para o Atlas 2007 (“ênfase no gênero”), o cinema dos diretores publicitários e o cinema independente.

O cinema de gênero, fortemente influenciado por Hollywood, representa a maior parcela da produção interna e faz bastante sucesso, chegando a competir com a produção norte-americana no mercado tailandês. Os gêneros e temas são os mesmos do cinema tailandês clássico, com o diferencial do avanço técnico. Vale citar três gêneros bastante populares: o horror (exemplificado por Espíritos – a morte está ao seu lado, de 2004, que chegou a ter lançamento no Brasil - foto acima) com massiva presença de espíritos, reencarnações, monges budistas e constantemente adaptados de lendas locais (não por acaso, dada a presença do budismo no cotidiano rural e urbano); a ação, com importante presença de épicos históricos e do boxe tailandês (muai thai), como é o caso de Ong Bak – O Guerreiro Muai Thai, exibido no Brasil na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e em alguns canais de televisão a cabo; e a comédia, o gênero mais popular, porém de difícil exportação, devido ao caráter regional de seu humor.

O "cinema publicitário", de bastante sucesso nos festivais europeus, seria influenciado na mesma medida pelo cinema de Hollywood e Europeu – ou talvez mais precisamente pela grande parcela do cinema independente norte-americano e sua bem comportada “estética Sundance” – com mistura de gêneros, temas, inventividade e forte apelo estético-sensorial: filmes para se gostar, imagens para se comprar. Exemplos desta produção são os primeiros filmes de 1997, como o drama Fun Bar Karoke (foto acima) de Pen-Ek Ratanaruang (destes, o cineasta mais conhecido internacionalmente, diretor do também bem sucedido A Última Vida no Universo, exibido por aqui em festivais), o faroeste multi-colorido Tears of the Black Tiger, de Wisit Sasanatieng e o filme de gângsteres Dang Bailey and the Young Gangsters, de Nonzee Nimibutr.

Por último, o cinema independente, bastante heterogêneo, onde se encaixam todas as produções não realizadas pelas grandes produtoras, com tendência à pesquisa estética influenciada pelo cinema de arte europeu. Neste caso se encontra a produção do já citado Apichatpong Weerasethakul e de seus colegas da produtora Kick the Machine, considerado um dos principais nomes do vanguardismo mundial contemporâneo, com filmes como Mal dos Trópicos e Síndromes e um Século, ambos exibidos por aqui.

Desde a crise de 1997, o cinema tailandês vem conquistando visibilidade nos principais festivais internacionais, talvez pela sua “linguagem globalizada” em filmes que têm circulação (de certa forma) garantida devido ao seu caráter exótico ao Ocidente, mesmo que seja possível assistir a muitos destes filmes sem saber seu país de origem. Daí surge uma questão: a cinematografia de um país deve representar sua cultura, seu povo? No caso da Tailândia, apenas cineastas como Apichatpong Weerasethakul trabalham uma identidade nacional para seu cinema, mesmo que, paradoxalmente, buscando inspiração além de suas fronteiras e não interessando ao seu povo. Neste caso, o que poderia ser excludente, de difícil circulação fora do país, nos diz mais do que filmes que reproduzem fórmulas estruturadas e bem comportadas, pois mantém relações com o mundo e com as pessoas.

Dezembro de 2007

* O Cineclube Equipe é um projeto do Instituto Equipe Cultura e Cidadania, que realiza sessões mensais seguidas de debate, resultado das pesquisas e discussões do grupo de jovens que o organiza. Seu principal objetivo é estender a experiência cinematográfica para além do tempo de duração dos filmes. Fazem parte do núcleo de estudos sobre o cinema tailandês: Júlia Polycarpo (estudante de fotografia), Nina Di Giacomo e Kim Doria (estudantes de cinema) e Ravi Santana (estudante de jornalismo).


Links de interesse
Brief History of Thai Cinema, por Anchalee Chaiworaporn
New Thai Cinema, por Anchalee Chaiworaporn
Thai Cinema, site de Anchalee Chaiworaporn
Cinema Thai
Thai Film Foundation
Criticine
Kick the Machine – produtora de Apichatpong Weerasethaku
Wikipedia: Thai Cinema

Leituras em português
Cinética – “Seis perguntas para Apichatpong Weerasethakul”, por Felipe Bragança 
Cinética - "A divagação e a disritmia como erro e encantamento", por Felipe Bragança
Cinética – Crítica de Síndromes e um Século, por Eduardo Valente
Contracampo – Crítica de Síndromes e um Século, por Luiz Carlos Oliveira Jr.
Contracampo - "Cinema de outros tempos", por Raphael Mesquita
Contracampo – Crítica de Mal dos Trópicos, por Ruy Gardnier
Contracampo - "Cinema Contemporâneo em Debate"
Contracampo – Crítica de Ong Bak - O Guerreiro Muai Thai, por Gilberto Silva Jr.
Contracampo – Crítica de A Última Vida no Universo, por Gilberto Silva Jr.

Filmografia indicada disponível em DVD no Brasil
As Damas de Ferro
(2000, Youngyooth Thongkonthun)
Espíritos – a morte está ao seu lado (2004, Banjong Pisanthanakun e Parkpoom Wongpoom)
Ong bak – o Guerreiro Muai Thai (2003, Prachya Pinkaew)

Filmografia indicada disponível na internet

Apichatpong Weerasethakul
Mysterious Object at Noon (Dokfa Nai Meuman, 2000)
Tropical Malady (Sud Pralad, 2004)
Syndromes and a Century (Sang Sattawat, 2006)

Pen-Ek Ratanaruang
Fun Bar Karaoke (1997)
Last Life in the Universe (Ruang rak noi nid mahasan, 2003)
Invisible Waves (2006)
Ploy (2007)

Prince Chatrichalerm Yukol
Daughter (Sia Dai, 1996)
The Legend of Suriyothai (Suriyothai, 2001)
Kng Naresuan (Naresuan, 2006)

Nnzee Nmibutr
Dang Bareley and the Young Gangsters (2499 Anthaphan Krong Muang, 1997)
Nang nak (1999)

Outros
Kan kluay (2006, Kompin Kemgumnrid)
Nong Teng Takleng-pukaotong (2006, Panich Sodsee)
The Memory (Ruk Jung, 2006, Haeman Chatemee)

editoria@revistacinetica.com.br


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