in loco - cobertura dos festivais
Tablóide (Tabloid), de Errol Morris (EUA, 2010)
por Thiago Brito
Olhos
nos olhos
Errol Morris é como uma
criança inventiva, e Tabloid é um dos filmes
mais intrigantes de sua carreira. A história de Joyce Mckinney,
a Miss Wyoming que, por amor, viaja até a Inglaterra para
“salvar” o homem que ama da manipulação
dos mórmons - a sua religião -, e, para isso, o
sequestra, alojando-se em uma casa de veraneio para um final de
semana de conversão sexual – com direito a amarrá-lo
em uma cama (o famoso “Spread eagled”, que tanto comenta
o repórter Peter Tory, do tablóide que criou sua
fama anglo-saxã, The Daily Express,) – é
tão excêntrica, contraditória e desconcertante
que se torna uma verdadeira aventura.
Diante de uma história com tantas versões, visões
e leituras, como devemos abordá-la? Como devemos, enfim,
olhá-la, interrogá-la - entrevistá-la? Aqui,
a questão não é tanto a veracidade dos fatos.
Não interessa a inocência ou a culpabilidade dos
protagonistas. Como Joyce mesmo comenta, uma mentira, depois de
tantas vezes repetida, em breve torna-se acreditada, tomando o
lugar da verdade. Com os olhos direcionados para nós, Joyce
conta sua saga de forma contraditória, ridícula,
piegas, acreditando piamente na inocência do que diz. Enquanto
isso, Morris vai desfilando versões e provas que reapresentam
continuamente o cenário, elevando cada vez mais aquilo
que se conta a uma excepcionalidade tal que dificilmente conseguimos
acreditar que aquilo é, de fato, real – a bizarrice
dos eventos, e mesmo a maneira como são narrados por seus
protagonistas, é tamanha que mais nos parece estarmos diante
de um mockumentário, como se o documentário
por si só não fosse o suficiente para dar conta
de uma história tão absurda. O que fazer quando
a realidade se reveste das qualidades atribuídas à
fantasia?
O
que é impressionante na figura de Joyce McKinney –
e, aparentemente, o que levou Errol Morris a se apaixonar por
sua história e pessoa – é a sua coragem de
simplesmente viver a partir daquilo que estabeleceu pra si mesma:
queria amar loucamente, desesperadamente, sem medida ou fronteira.
Joyce compreendeu logo cedo na vida que, para se chegar a algum
lugar, é necessário estabelecer seu objetivo, um
ponto de partida/chegada a partir do qual sua vida gravitará
eternamente. Em tudo, Joyce, auxiliada pelo apelo sensasionalista
dos tablóides, alça sua vida a uma condição
ficcional, prepara o chão para uma aventura mágica,
entremeada por imagens e frases de efeito, calmamente erigindo
uma imagem pública que a engole por inteiro.
No entanto, é exatamente quando foi engolida que Joyce
se expele e se reconstrói diante de nossos olhos: afinal,
ela nos interroga, o que há de semelhante entre a mulher
que raptou seu marido mórmon, e aquela que, por amor a
seu moribundo pit bull, guardou seu DNA pra cloná-lo cinco
vezes? E a questão recocheteia diretamente a Morris: como
encaixar essas informações, como extrair disso um
sistema fechado que se justifique por si mesmo e trabalhe internamente
de forma auto-sustentável (como, por exemplo, a estrutura
de um Thin Blue Line)? Aos poucos, sedimenta-se a condição
na qual Errol Morris esculpiu sua obra. Minado, Morris coloca
o documentário em uma situação um tanto extraordinária:
o caso é que não se pode necessariamente
provar nada, seu filme não procura - como em trabalhos
anteriores - a exposição de um estado de coisas,
ou mesmo de uma culpabilidade entranhada e errônea. Tabloid
não é sobre, a favor ou contra tablóides.
Diante de uma temática que se apresenta como tal, Morris
modifica sensivelmente o campo de batalha e centraliza-se naquilo
que foi - na verdade, o que é - o centro de suas preocupações
formais por tantos anos: a entrevista. Pelo uso do interrotron
(um conjunto de teleprompters que possibilita aos entrevistados
que olhem diretamenta para uma tela, onde está o rosto
de Morris, e que é ao mesmo tempo a lente de sua câmera,
ou seja, nós, os espectadores), as entrevistas são
apreendidas de modo quase imersivo. No entanto, ao mesmo tempo
em que busca nos colocar no meio da agitação dos
depoimentos, como que trespassados pelas palavras e ideias, Morris
também nos puxa para fora da entrevista, apostando em um
tipo irônico de comentarismo, elaborando, assim, como que
uma dialética documental que se biparte entre uma vontade
de participar da graça das circunstâncias
apresentadas, ao mesmo tempo que se decide adulterá-las,
irônizá-las, chocando depoimentos, idéias
e visões, de modo a ampliar continuamente o terrível
fosso da verdade.
Na
tela larga, o diretor vai brincando com os depoimentos, a cada
nova frase reposicionando os entrevistados para um canto dentro
do quadro (primeiro ao centro, depois à direita e, então,
para a esquerda). No plano fechado, os olhares inquisidores dos
protagonistas se agigantam em nossa direção, ficamos
face a face com sua versão da história, a sua
verdade. Enquanto acreditamos no que Joyce nos diz, sentimos a
sua mentira. O documentário é a busca de uma verdade,
ou a compreensão de que não há verdade? Ironizando
e se apaixonando: Morris não consegue ignorar Joyce McKenney;
ela está lá, encharcada por discursos falsos e verdadeiros.
Joyce está há anos escrevendo sua auto-biografia.
Mas, com uma vida larger than life, ela nunca consegue
concluir sua narrativa. Parece que Morris desejou, de algum modo,
remediar este problema. Seu filme é um misto de documentário
que quer chegar a algum lugar, com um documentário que
não pode chegar a lugar algum. Ele se interessa pelo mundo
de Joyce pois não tem escolha, está terrivelmente
entretido. Mas, ao mesmo tempo, possui sua ética, sua vontade
de cineasta, e ela está assentada no seu olhar perscritor
e sua câmera que olha nos olhos da personagem. Açoitado
pelo embate, Morris leva seu documentário a uma posição
inusitada: um documentário que de fato documenta. Ao invés
de partir da idéia de algo que está concluido anteriormente,
dando ao cineasta a prerrogativa de se ter um conceito, uma tese,
ao qual o filme possa se reportar para se concretizar enquanto
tal, o documentário de Morris sensivelmente abre espaço
para tentar perseguir esta história, esta mulher,
enfim, esta vida.
Como lidar com o que não podemos expressar cabalmente,
pelo menos sem rebaixá-lo a uma caracterização
irônica, sem historicizá-lo para justificá-lo?
É na história de sua vida que está Joyce?
Juntando todos os dados, todas as informações, ainda
assim o quebra-cabeças parece não ter um sentido.
Ao final do filme, vemos Joyce, na década de 80, recitando
um trecho de sua auto-biografia - seu eterno work in progress.
Escutando, sentimos que sua biografia não é um trabalho
de recapitulação, não é retrospectivo
(uma auto-biografia que se lança ao futuro?). Joyce
descobriu, ainda cedo, aquilo que não queria se tornar.
Disse que viveria deste jeito: amaria eternamente, sem concessões,
deixaria o peito para sempre ardendo. Encabulado, Morris faz de
seu documentário uma expressão: da incompletude,
da incompreensão, de qualquer coisa que arda em brasas,
aberto.
Outubro de 2011
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