in loco - cobertura dos festivais

Na Cidade de Sylvia (En la Ciudad de Sylvia),
de José Luis Guerin (Espanha, 2007)

por Paulo Santos Lima

A imagem vem antes da memória

Surpreendentemente, em se tratando de uma obra que trabalha ao nível do concreto das coisas, En la Ciudad de Sylvia é uma promoção de dúvidas. E será através do engano que o filme partirá da evidência, da exatidão e da clareza das objetos, para então chegar a uma incerteza. No caso, um engano do nosso olhar e também do protagonista, embaralhado por sua memória. Ele, que é desenhista, volta a Estrasburgo a fim de reencontrar Sylvie, a (in)esquecível mulher que conheceu seis anos antes, num bar chamado Les Aviateurs. Esses dados, os mais intocáveis do filme, nos são dados respectivamente por ele e pelo filme (aliás, o nome do bar na primeira imagem do longa, com uma memorabília qualquer com o logo do estabelecimento).

Mas quem, de fato, se engana? Nós? O rapaz? Ambos? E por quem? Pelo protagonista? Pelo filme? Ou ambos? Com perdão do trocadilho: em ambos os casos, por ambos. Porque as coisas embaralham-se nesta certeza “epidérmica” da superfície das coisas captada pela câmera, num filme que jamais trabalha com imagens expressionistas que traduzam a mente do protagonista. É pela sucessão de imagens que fazemos leituras que, a posteriori, se mostram equivocadas – do mesmo jeito que o rapaz, na incerteza de sua memória de seis anos atrás, tomará como Sylvie uma mulher que não necessariamente a é.

Na prática do filme, o que temos é que, em princípio, o que é visto é o que é (até achamos, como ele, que Sylvie é a mulher que ele desata a seguir pelas vielas, e o jogo do campo-contracampo parece nos confirmar isso). Se a sua memória é o que o engana na leitura que faz das imagens de rostos, narizes, olhos, mãos e modos do mulherio que ele observa, será a câmera (que está em lugar x ou y por opção do diretor José Luis Guerín, e que se faz claramente e outras vezes sugestivamente subjetiva, num perverso amálgama câmera-personagem) que nos enganará de vez.

Por exemplo, um enquadramento mostra um homem e uma mulher sentados no café. O que lemos, da imagem, é um casal supostamente em crise, homem à esquerda e mulher à direita do quadro: os dois nem se entreolham. Mais tarde, a câmera em outra posição dará o campo correto: o homem, à direita, estando ao lado de outra mulher que não aquela primeira. Noutra situação: suposto campo/contracampo da garçonete no balcão e do protagonista na mesa; de repente, a moça vira a cabeça para a esquerda e o contracampo mostra o rapaz; ou seja, antes ela estava olhando para coisa outra que não ele. Ao nos enganar desta maneira, o filme deixa em dúvida não a imagem em si, mas sim o sentido dramático dela.

Porque o significado parece o mesmo: temos fêmeas num bar, mendiga deixando uma garrafa rolar pelo calçamento, idoso dando milho aos pombos, um vendedor ambulante, um desenhista que procura por um rosto, por uma imagem ou traço humano que lhe traga uma iluminação – afinal, não é luz que vem a um desenhista que consegue encontrar a paridade entre o modelo e o desenho, entre o real e seu traço? E não é pelo traço, pelos esboços, que este homem tenta resgatar uma imagem dúbia, incerta, instável.

A instabilidade do concreto, do visível, é um dado a ser levado em conta neste filme. Rostos mexem-se, ficam de perfil ou de frente, a luz incide em ângulos variados, um sorriso muda tudo, um corpo sugere-se multiplamente de acordo com o vestido usado, ruídos como o reflexo de uma vidraça ou dos sons, bondes e transeuntes que penetram e perpassam o enquadramento, tudo isso adiciona camadas visíveis à matéria-prima inicial. Matéria-prima cujo início jamais conheceremos, tampouco o obstinado desenhista, cuja imagem primeira de sua musa perdeu-se no mar dos tempos e de sua memória que só pode agarrar à certeza única da incerteza do presente palpável (no frenesi de imagens que se desdobram, se transmutam, que se fazem tão esboças quanto os traços grafites nascidos da relação olhar-teleologia-punho).

A imagem é aquilo que ela mostra. Qualquer emanação, qualquer imagem mental, leitura feita a partir dela, é algo que En la Ciudad de Sylvia não quer saber. O apreço ao tempo dos planos, um valor igual a todas as coisas, do geral ao detalhe, das gentes comuns que transitam ali e, pela visibilidade que vão tendo por nós ao longo da história, acabam ganhando teor personal, assim como a atenção ao rosto do protagonista (de uma beleza de padrão “grego” atentado pelos desgrenhados cabelos e semblante aflitivo) às mulheres (estas, de uma beleza que chega a emocionar opticamente, de tão comum e prosaicamente bem torneada), vielas, muros pichados, pedintes, sóis de primeira manhã e vespertino.

O filme, nessa incursão de três noites (e dias) na qual acompanha o desenhista, faz um exercício observacional, com certo fatiamento de tomadas, planos extensos que nem sempre configuram-se como planos-seqüência, mas sempre respeitam certa extensão do tempo. O que se apreende através da experiência deste pintor – e que coincide com a experiência da câmera e do diretor, uma vez que o filme não o abandona nessa viagem de busca – é a malha humana e, pelo que o filme mostra, um entrosamento magnânimo dos seres naquele espaço da cidade. Celebra-se, enfim, o organismo, nunca ultrapassando o que interessa aqui, que é aquilo que discernível oticamente, e não os seus significados.

Nesse desprezo aos significados, elege-se a não-memória dos objetos, que fazem sua história apenas em tempo real – sendo, apenas, jamais remetendo. Isso está claro na seqüência final do filme, que mostra as pessoas no ponto de espera do trem que cruza a cidade. O som urgindo potente, em suas várias camadas traduzindo a voz da cidade, o tráfego humano, outdoors intercalando as pessoas, tudo compondo um repertório em pleno vapor. Os rostos das pessoas e as páginas do caderno de desenhos e esboços do rapaz fazem par na montagem paralela: ambos embaralham as linhas e formas, fazem collagens justapostas de faces e desenhos distintos. A única identidade possível é a imagem pela imagem, os traços, narizes, curvas, cabelos, olhos, rabiscos, tracejados, desenhos de carne e de grafite. As coisas não têm nome, possuem formas, matéria, imagem e movimento. O que resta a esse aflito homem que busca o modelo de seu desenho afetivo é a imagem: a imagem de tudo, desdobramentos, multiplicações de rostos e corpos mil, peças mutantes de quebra-cabeças chamado mundo… ou cinema.

Novembro de 2007

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