emulando Três
sequências: o/um mundo em imagens por
Cezar Migliorin Sur la Plage de Belfast,
de Henri-François Imbert (Bélgica, 2000)
Henri-François
Imbert compra uma câmera super-8 usada e descobre que dentro dela há um rolo de
filme. O tempo passa e um dia Imbert decide revelá-lo. Assim começa Sur
la Plage de Belfast (“Na praia de Belfast”, em tradução exata).
As primeiras três seqüências do filme são as três seqüências encontradas pelo
cineasta dentro da câmera: 1) Uma família na praia; 2) uma senhora caminha em
direção à câmera com um prato de prata; 3) Imagens confusas dentro de um brechó.
Na seqüência da praia há uma música. Com a música, o que vemos não é mais, apenas,
a imagem encontrada. Desde o primeiro momento, Imbert está a nos dizer que aquelas
são imagens dos outros e dele próprio. Este é o princípio do filme do cineasta
belga; fazer suas as imagens dos outros, sem que elas deixem de ser de alguém
em Belfast. Nestas três primeiras
seqüências Imbert narra o que estamos vendo. “Uma série de imagens confusas filmadas
dentro de uma loja de antiguidades”. O que vemos faz sentido ser visto porque
o cineasta, muitas vezes, já passou por essas imagens. Cada imagem traz junto
de si um mistério, uma pista. Como um voyeur por acaso, nos vemos diante
desses pedaços de vida, de intimidade. Em três seqüências, o desejo de saber mais
sobre o universo que cerca aquelas imagens se estabelece. Mas, não se trata do
desejo de saber sobre as pessoas, sobre a família que está na Plage de Belfast, mas sim sobre as próprias imagens: por que filmá-las?;
por que perdê-las?; como resgatá-las? Narrando na
primeira pessoa, Imbert nos explica seu dispositivo. “Me habituei a ver esse pequeno
filme, um dia eu entendi que queria achar essa família”. Créditos iniciais. A
primeira decisão de Imbert é procurar o laboratório da Kodak e tentar saber quando
o filme foi feito. Nesta seqüência há um longo plano em que o técnico da Kodak
assiste em uma moviola as mesmas imagens que abriram o filme. Não há mais música.
Compartilhamos agora o olhar técnico que procura as tonalidades, as saturações.
No laboratório da Kodak as imagens vão se desdobrando, ganhando outros olhares.
Da memória para a matéria: na Kodak vemos as cores, os grãos. A imagem não é mais
projetada, mas analisada por pessoas de luva, em mesas de luz, com lentes de aumento.
Ano de fabricação: 1983. Imbert
vai para Belfast tentar devolver o filme à família. Fazer o filme e tentar um
encontro insólito. No caminho, as imagens de Imbert parecem feitas com a mesma
câmera super-8, novamente com música. O compartilhamento não se restringe às imagens
feitas pela família. Também as imagens de Imbert parecem parte de um mesmo rolo
encontrado em uma câmera deixada em um brechó. 13
de outubro de 1994. Imbert vê Belfast. A imagens,
o cineasta e a família não estão separados de um domingo de ruas vazias, dois
dias depois de um cessar-fogo. Um domingo que é “o primeiro de paz, mesmo que
precária em 25 anos”. O filme está nas mãos de Imbert e o acompanhamos no presente
dos acontecimentos. Se ele achará ou não a família, se aquelas pessoas existem,
ainda não sabemos. Interessa o prazer de estar dentro do filme. A insólita busca
de Imbert é fadada ao fracasso. Como um detetive, ele busca as pistas com o prazer
de continuar filmando a bela paisagem, o campo e os estudantes saídos da escola. Em
Belfast, Imbert chega à rua em que sua namorada comprou a câmera, uma rua com
12 casas de antiguidade. Nessas casas, as imagens de Imbert não diferem das imagens
encontradas. Talvez elas tenham sido feitas por quem vendeu a câmera e não pela
família da praia de Belfast. Vemos as imagens antigas montadas com as novas. Imbert
procura a loja vendo o passado e o presente. O mundo que Imbert procura precisa
de todas essas imagens para continuar existindo. Ir a Belfast não é procurar os
verdadeiros donos do filme perdido ou os cenários reais em que ele foi feito,
mas fazer novas imagens dos mesmos lugares. O filme de Imbert é um remake
de um filme caseiro atravessado pela experiência do cineasta em buscar essas novas
imagens. A loja em super-8,
ontem. Corte. A loja em vídeo, hoje. Agora
é Imbert quem analisa as três seqüências. Microscopicamente identifica uma maçaneta
fora de foco. A imagem continua se desdobrando. Antes era uma família, depois
grãos e números, no laboratório da Kodak; agora ela guarda detalhes, rastros fragmentos.
Na imagem, algo dura. “Quando se reconstitui uma história, quanto mais estranha
for a pesquisa, maior é a chance dela se realizar” – Imbert, no filme. Pela
primeira vez vemos as imagens que o cineasta encontrou, sem nenhum som. “Naquela
noite saí e achei que poderia encontrar com a garota do filme, que hoje teria
uns 18 anos”. Tentamos imaginar a criança, agora adulta. No lugar da música, o
slow. Imbert continua procurando nas
imagens do passado, há sempre uma perda naqueles pedaços de tempo. Ver, rever;
ver novamente. Sobre imagens quaisquer é possível se deter, esperar e mais uma
vez vemos a menina. Na Belfast de hoje aquelas pessoas existem, em algum lugar.
Elas existem nas imagens encontradas, existem nas projeções que Imbert faz com
os restos que tem em mãos. A menina corre em direção ao mar. Off
constante de Imbert. Ele comenta as imagens, exemplifica suas suspeitas com as
imagens, expõe suas dúvidas. Por que estou aqui? Não vou encontrá-los. E mais,
diríamos, e se encontrar? Que invasão é esta? As pessoas não queriam essas imagens.
É com imagens que Imbert encontrará essas pessoas. Que direito tem Imbert de lhes
fazer ver o que um dia jogaram fora? Imbert
apresenta as imagens para pessoas que o levarão até a família que ele busca. Eles
estão a ponto de reconhecer aquelas pessoas. “- Vire-se Mollie!”, uma senhora
pede para a mulher que está na imagem. Se Imbert pode transformar aquelas imagens
como ele vem fazendo, porque ela não poderia? Enquanto houver trem haverá cinema. Idas
e vindas. Imbert encontra a família que aparece nas três seqüências. Que filme
lindo! Na família, o dispositivo
de Imbert circula. Uns dizem para os outros: ele revelou o que havia sobrado na
câmera. A câmera fixa e sem closes não procura mais comparar as imagens. Ficamos
com o entusiasmo das pessoas, com o estranhamento de estarem se vendo 12 anos
depois. Imbert inventa uma circulação acentrada. A alegria daquelas imagens, a
felicidade em compartilharem a loucura de François Imbert. As imagens antigas
não existem mais sem o gesto do cineasta que as achou. Porque o cinema inventa
um mundo. No final do filme eles queriam vê-lo novamente. Doze
anos depois a câmera volta para a praia com as mesmas pessoas das três seqüências
encontradas por Henri-François Imbert: Mollie, Lorraine, Jack e Charmaine. “Uma
pessoa não aparece nas duas seqüências: Alec, marido de Mollie, morto anos antes.”
O último filme de Alec se desdobrava e circulava. Sua ausência não era sentida,
já que estava ausente das primeiras imagens. Era como se sua ausência no filme
antigo fizesse que sua ausência na vida, hoje, fosse mais aceitável, explica Imbert. Sur
la Plage de Belfast é um convite às imagens. Três planos que duram, voltam,
circulam e se multiplicam.
Julho de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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